Eu não sabia empinar, nem fazia questão de
aprender, gostava de pô-lo no ar e, ficava olhando, vendo os movimentos, pura
liberdade, o amigo Viana era o oposto da moeda, tinha habilidade pra confeccionar
as mais lindas pipas e os manobrava com tal maestria, que, nunca o vi perder um
centímetro de linha, bastava olhar prum adversário e, em questão de minutos, já
havia cortado e aparado, costumava dizer que, só as pessoas que ele permitia,
tinham direito de empinar no seu espaço aéreo.
O toca-fitas ficava embaixo de uma
arvore, bem na curva da estrada, a voz do Milton cantava "Olho
d'água", o Viana gostava da sonoridade das músicas do Clube da Esquina,
vendo que eu tinha dificuldades em desenrolar a linha, foi me ajudar.
_Esses nomes... Todos tem um
sentido escondidos, né?
_É, são pessoas que morreram ou
desapareceram na luta.
E, como eu era o outro lado da
moeda, tinha a inteligência, que os meninos não costumam ter nessa idade.
_Cuidado pra não ter seu nome numa
canção dessas.
Nessa altura, não fazia sentido
esconder do amigo, que eu frequentava reuniões clandestinas do partidão, o
Miguel e o Satírio eram os acompanhantes nessa luta, o Viana que não ligava pra
política, disse que ia me proteger, dizia que tinha uma dívida comigo, já que
eu havia conseguido o que a escola julgou impossível... alfabetizá-lo.
Embarcamos nessa aventura, isso era muito mais que roubar frutas
do Bráulio ou passear no Taboão da Serra, no lombo dos cavalos e, muito mais
perigoso.
Um dia, meu amigo Rogério (que
todos chamavam de Punk) deu-nos, em troca de seis pipas, duas latas de tinta
spray, ficamos doidos para usa-las.
Nessa época, o ônibus da Castro
fazia o itinerário da Praça da Bandeira, depois de passar em Pinheiros, pegava
a Avenida Brasil e seguia até a Nove de Julho... Na avenida Brasil, perto da
igreja da Nossa Senhora do Brasil, haviam umas mansões abandonadas, resolvemos
que ia ser ali que deixaríamos a nossa marca, o Satírio e o Miguel roeram a
corda, sabiam que por esses lados residiam muitos militares e fomos só eu e o
Viana.
Levamos as latas numa mochila
verde, dessas que os recrutas ganhavam no exército e vendiam pros civis,
descemos em Pinheiros, na Faria Lima e seguimos a pé, se tivéssemos que ser
parados, seria nesse percurso, tinha que ser uma que se visse da avenida, essa
tinha uma cerca gigante com pontas de lança, escalamos e nos jogamos pra
dentro, enquanto eu me escondia no jardim e via o movimento, o Viana abriu a
mochila e tirou as latas, ficou com uma e me deu a outra, ele montou guarda,
corri até a parede frontal e escrevi: ABAIXO, corri pro muro e o Viana foi
escrever o resto da frase, lá fora, uma pessoa que passava no ônibus gritou, o
Viana chegou ao meu lado, preparávamos para pular o muro de volta, quando olhei
pra parede... que merda, o neguinho havia escrito DITADORA, corri pra parede,
fiz duas riscas cruzadas em diagonal e escrevi a palavra certa, pulamos as
lanças de volta e ganhamos a rua, jogamos as latas ao lado de uma árvore, o
Viana não quis dispensar a mochila, subimos até a Rebouças e seguimos, antes de
chegar na metade do quarteirão, fomos emparelhados por uma Veraneio preta e
vermelha:
_Encostem-se à parede!
Viramos pra parede e colocamos as
mãos na nuca.
_Quais as idades?
_Eu tenho 12 e ele tem 13_Disse eu,
o Viana estava petrificado de medo.
Mandaram e entramos no camburão, a música do Milton me veio à
mente, será que ele faria uma, com o meu nome?
Ficamos em silencio toda a viajem,
o carro parou, mandaram que pulássemos e pulamos pra fora, olhamos e conhecemos
o local, era o ponto da FOSECO, na Raposo Tavares, meio caminho do E.D. D,
assim que chegamos ao banco do ponto, eles ligaram o carro e foram embora.
Ficamos em silencio parte da viajem
e, do nada, o Viana gritou:
_Que porra que foi isso?
Sem saber o que dizer, dei de
ombros e disse:
_Sei lá, nosso anjo da guarda fez
hora-extra.
_Moleque, vou sempre andar com
você, você é um filho da mãe mais sortudo do mundo.
E, ninguém entendeu nada, dois
guris rindo com gosto.
Quatro dias, foi o que durou a
pichação na Avenida Brasil, mas, todos os nossos amigos viram.
Dias depois, quando íamos pro
centro, vimos, no muro do cemitério da Consolação a palavra DITADORA riscada e
corrigida, caímos na gargalhada.