As pessoas costumam dizer que, tem música que
conta história... eu vou mais longe, todo momento que eu vivi, tem uma música para
lembrar, minha memória e a música caminham juntas, a música é o combustível que
ativa as minhas lembranças.
Quando
fui trabalhar na administração do Educandário Dom Duarte, com o seu Tinoco,
pensei que estava sendo punido, não que eu não merecesse castigo, mas, quem
imagina que um guri de 12 anos, vá se entender com um senhor, com mais de 80,
ranzinza e caladão?
No começo,
havia só o silêncio, silêncio propriamente não, arrastava-se no ar aquela música
que vinha do rádio dele, uma música marcial, aqueles acordes inflexíveis,
aquela coisa monótona e repetitiva, muitas vezes, ele percebia que eu fechava
os olhos na minha cadeira, dava um forte tapa na mesa e, eu acordava assustado,
ele sorria feito uma criança, que acabou de cometer uma travessura.
O ajudante do seu Tinoco, diferente
dos ajudantes do seu Reginaldo e do seu Alones, não saía para entregar bilhetes
ou comprar alguma coisa, portanto, eu tinha que ficar ali, naquela guerra de
gerações, lá fora, os outros meninos escutavam The Commodores e Guilherme
Arantes, lá dentro, a trilha sonora era, supunha eu, a de um campo de
concentração.
Na
sala, haviam, além das fotos antigas, troféus enormes, de um tempo de glória da
fanfarra e do futebol Educandariano, a minha curiosidade fez com que ele se
abrisse e, do baú aberto, havia uma riqueza de detalhes, datas e
acontecimentos, aquele velho mal-humorado era um narrador apaixonado, conhecia
todas as histórias que os troféus não mostravam.
Viciado
em leitura, naquele tempo, não abri um livro, toda cultura que adquiri, foi via
oral, minha mente viajava, as histórias eram dum tempo duro, nossa!.... Se no
meu tempo era duro ser interno, imagina no tempo dele, onde reinava uma
disciplina militar e os internos eram tratados como prisioneiros. Aquilo foi tão bom para mim, que anos
depois, fui entrevistar um velho combatente da revolução de 32, como trabalho
de estudos sociais, o pracinha ficou impressionado com o meu conhecimento de
causa que quis me adotar.
Ainda
assim, a música continuava a mesma, certo dia, faltando poucos minutos para o
meio dia, entrei na questão:
_Seu
Tinoco, essa sua música faz pensar em suicídio, eu até que gosto de clássicos,
mas convenhamos... Vagner é de lascar.
_. Ué, eu gosto de Vagner disse isso e sorriu.
_O Hitler também gostava e isso não
fez dele um ser humano lindo.
_E. o que o "programador"
sugere ???_disse ele, ainda rindo.
_Poe aí, umas músicas de negão, falei
isso, mas, já estava saindo da sala e ganhado a garagem, ele saiu até o
corredor e gritou:
_. Amanhã, vou te mostrar o que é música.
No
dia seguinte, ele tinha, em cima da mesa, uma vitrola antiga com um disco de 78
rotações, na capa do disco, que estava em cima da mesa, um nome:
Scott
Joplin, confesso que isso não me impressionou nenhum pouco, o velho segurava o
braço da agulha e com um ar misterioso, começou a narrar:
_. Imagine um mundo, um mundo sem jazz, só havia as polcas e as valsas...
Conforme ia contando a história,
crescia e descia o tom da voz, conforme a emoção, contou que os negros, nos
barcos que navegavam o rio Mississippi, aprenderam a tocar piano, olhando os
brancos, mas, aprenderam do seu modo, usando a parte preta das teclas, isso deu
um som diferente de tudo o que era conhecido e, muito mais rápido no seu passo,
servia mesmo para dançar, essa música, foi dado o nome de Ragtime e, só então,
soltou a agulha no disco.
O som
que ecoou na sala, me conduziu direto ao começo do século XX e a música era
conhecida, aquelas músicas incidentais do cinema mudo.
É claro que fiquei encantado, a evolução
da música foi mostrada, cada dia um disco diferente e nem se eu tivesse um
curso intensivo, eu teria um professor deste gabarito.
Blues, Jazz, isso, no entender dele,
era música de negão e ele conhecia tudo, de Glenn Miller à Sinatra, de Cole Porter
à Nat King Cole, mas tinha uma paixão especial por Billie Holiday.
Quando falava dela, seus olhos
brilhavam, sabia tudo sobre ela, suas músicas e sua vida, todos os dias, ele
trazia um disco de Jazz ou Blues e no final, sempre executava um da Billie.
Minha canção preferida sempre foi Blue
Moon, quer dizer, a canção preferida dele, virou a minha.
Então juntos, chegamos à conclusão que a música perfeita seria ela e, na
voz da Billie.
Na
minha vida, conheci muitos amantes de Jazz, desses, oito entre 10, eram
apaixonados pela Billie... aos poucos, eu me tornei um deles.
Anos
mais tarde, eu já trabalhava na Procuradoria Geral do Estado, passeava para os
lados do Metrô São Bento, quando ouvi a Billie interpretando. Estrange frut.,
jurei para mim que ia comprar esse disco, entrei na loja e havia um senhor
sentado, ouvia a música com os olhos fechados, tinha uma coleção dos discos
dela, passei em revista, disco por disco e, no meio de todos eles, achei um que
me assombrou, peguei-o e levei para o vendedor:
_A
Billie gravou Blue Moon mesmo?
Ele
acenou com a cabeça que sim, não acreditei e pedi que ele a executasse na
vitrola, ele obedeceu, quase chorei de emoção, comprei o disco.
No dia seguinte, fui para o pavilhão
11, que agora estava convertido em asilo, o seu Tinoco sorriu a me ver adulto,
quando lhe entreguei o disco, seus olhos brilharam e gaguejando disse:
_A
canção perfeita.
Essa
foi à última vez que vi, meu velho amigo de infância.
hermosa historia! gracias por compartirla! un abrazo
ResponderExcluirMe encanta el jazz, empezé a escuchar be-bop y dixiland de pequeña y aún hoy es mi música preferida. Adoro Brasil también! me ha encantado tu relato en portugués! Gracias. Puedes seguirme en: www.aguacateabacate.blogspot.com
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