Quando cheguei ao Dom Duarte, em 1977, eu tinha 11
anos e estava no ginásio. Não parece grande coisa, mas, isso me deixava em
vantagem, com relação aos meus amigos, primeiro que eu estava apto a trabalhar
e isso me tirava do pavilhão, não tinha que trabalhar na enxada, trabalhava na
olaria, na parte da manhã e à tarde eu estudava no Grupo Escolar anexo ao E.D. D,
a maioria deles, ainda que fossem mais velhos, estudavam pela manhã, pela
tarde, ficavam no pavilhão, ou seja, enxada e pino.
A outra vantagem era capilar, que também não parece grande
coisa, mas lembre-se que estamos nos anos 70... época de cabeleiras
avantajados, calças boca de sino, suspensórios e chinelos franciscanos. Reparem
que eu comecei a frase com. cabeleiras avantajadas, isso caro leitor, fazia um
negão feliz, em 1977.
Faltando poucos dias para o início das aulas, fomos ao
barbeiro, o Castro cortava cabelos numa salinha, ao lado do teatro, era um
sujeito calmo, que pigarreava a todo instante, pouco falava e ouvia a radio
Jovem Pan, eu também ouvia, só que, à noite, na transmissão do meu Corinthians.
Na sala só cabiam quatro, éramos uns 30, enquanto ele cortava o cabelo de um, três
esperavam sentados nas cadeiras, o resto ficava lá fora, alguns em pânico,
posto que, dali a alguns minutos ficariam carecas, era hábito, na época o corte
do exercito (corte reco), uma pequena faixa de cabelo, no alto da cabeça e o
resto raspado na zero, (Nossa Mãe, só de lembrar, me arrepia).
Sucessivamente, vi meus amigos entrando na sala com cabelos e
saindo sem eles, a cara deles era um misto de saudade e melancolia, entrei na
sala e fiquei na cadeira de espera, na minha sequencia vinham o Viana e o
Téquinha, esse segundo exibia uma juba tão grande, que parecia o próprio Don
King.
O barbeiro acabou de raspar mais um, minha vez, sentei-me
na cadeira, acomodei-me, ele ajeitou aquela camisa frontal e aquela proteção do
pescoço, pigarreou e virou-se para o espelho, pegou a máquina, limpou-a e
ligou, veio em minha direção, com ela ligada e sem pente, quando a maquina ia
encontrar o meu cabelo... Esquivei tranquilo e disse:
_Auto lá, amizade. Aqui é ginásio!
O barbeiro pareceu não acreditar, olhou pros meninos que
esperavam, eles confirmaram com suas cabeças´(ou devo dizer com os seus
cabelos), o barbeiro sorriu, jogou a maquina e apanhou a tesoura, com muito
capricho, baixou e arredondou. Assim começou uma boa amizade.
Por via das dúvidas, fui passear, não queria ver meus
amigos naquela hora, se os visse, iria rir muito... consequentemente, eu iria
apanhar.
As aulas no Grupo Escolar começavam às 03h30min horas da
tarde e terminavam às 8:15 da noite, por conta disso, quando algum aluno
chamava o outro pra brigar na saída, não usava a célebre frase de todas as escolas
(_Vou te pegar na saída), no EDD, quando alguém queria deixar claro que iria
brigar, dizia em voz alta:
_Aí, fulano... Oito e quinze !!! Pronto, assim todos sabiam
que haveria briga na saída.
No final do horário da escola eu tinha que correr pro
pavilhão, era muito divertido percorrer o caminho da escola até o lar 14,
sempre uma aventura, quando eu chegava, enquanto os amigos já estavam na cama,
eu ainda ia tomar banho e jantar, acabava assistindo televisão com os grandes,
que chegavam dos seus empregos nessa hora.
Nos dias de aulas vagas, eu não subia para o lar, ali perto
da portaria, na entrada do campão, existe uma escada de alvenaria, conforme os
grandes chegavam dos seus empregos, ficavam por ali, alguns esperavam os amigos
que moravam no mesmo pavilhão, pra subirem acompanhados, outros ficavam ali pra
conversar, algumas meninas da escola, namoravam com os caras, saíam da escola e
desciam pra lá.
Nós, os menores, ficávamos com eles, porque queríamos ser
como eles.
Numa noite, tivemos duas ultimas aulas vagas, eu, o Brito
do 17 e o João do 24, o ultimo, por ter no queixo o formato de uma nádega, era
chamado de João de Bunda, mas é claro que só os grandes o podiam chamar assim,
o João era forte, bateria em nós.
Naquela noite iria passar uma final de campeonato na televisão,
por conta disso, os grandes não ficaram na escada, como era de hábito, decepção
total, ficamos os três, sozinhos e desolados, num silencio de morte, dava pra
ouvir os grilos no mato.
Eu já ia propor que fossemos embora, a noite estava perdida...
repentinamente ouvimos um barulho alto e vimos um clarão, olhamos pra cima e
vimos aquela maravilha sobre as nossa cabeças.
O balão em formato de charuto sobrevoava o campo em nossa
direção, ficamos em silencio, maravilhados, estupefatos com a beleza do seu
voo, descia feito uma nave que vai aterrissar, a chama a tocar na grama,
corremos na direção dele, não podíamos deixar que ele batesse a boca no chão e
se queimasse, vimos que o Augusto do 17, que havia ido embora, descia o
barranco do campão.
_Tá na mão. Ele gritou.
_Tá na mão o cacete._Respondeu o Brito.
Já estávamos chegando perto, as chamas nos
iluminava, mais uns passos, uns poucos passos, pude sentir o seu calor... de
repente, bateu uma aragem e ele nos escapou, ganhou altura e foi-se, atravessou
o campo e continuou, chocou-se contra o galho do pé de eucalipto, que ficava
depois da linha de fundo, à direita e continuou a viagem, atravessou a estrada
do campão, sobrevoou a Sabesp e saiu do Educandário, nós ainda atrás do bruto,
atravessou a Heitor Eiras Garcia e entrou em território do Cemitério Israelita,
quando invadimos a Sabesp, o Augusto disse que não iria entrar no cemitério e
voltou pro campo, nem olhamos pra trás, não dava pra conversar, proprietários
de balão não ficam de conversinhas.
Na época, não havia um muro naquela parte do cemitério, só
uma cerca de arame farpado, nem paramos, passamos por ela e ganhamos
território, o balão perdia altura e ganhava velocidade, ladeamos o riozinho em
direção à portaria, seguimos a estrada à direita, percebemos uma gritaria e
vinha da direção de onde ele baixara, entre os túmulos do campo santo, ele se
acomodava, alguns meninos o cercavam, quatro meninos maiores que o João, que
era o mais alto de nós.
Desanimados, deixamo-nos ficar ali, sem sermos vistos, além
dos quatro, que já estavam lá, desciam mais cinco na estradinha, eram da favela
da Vila Operária, o Brito, já sentado numa lapide falou:
_E agora? Brigar ou correr? Falou isso quase sussurrando.
_Bora, sair na porrada com todo mundo, pegar o balão e sair
fora. Falei isso de brincadeira, desde cedo eu tenho a mania de fazer piada em
horas impróprias.
O João, que ainda arfava, por conta da corrida, ao ouvir a
minha proposta soltou uma gargalhada, dessas gargalhadas de Exu caveira, sua
voz reverberou no campo santo e repetiu no eco, os meninos que desciam,
puseram-se a correr de medo, os que estavam perto do balão, ameaçaram de
correr, olharam pro nosso lado e os túmulos à nossa frente, impedia que eles
nos vissem, ficaram parados, preparados pra correr.
O Brito, o João e eu, rimos juntos, as vozes juntas
ecoaram, os meninos correram gritando.
Recolhemos o balão, com todo o cuidado do mundo, em silencio.
No caminho de volta, o João, que tremia copiosamente, quebrou o silencio:
_Vamos embora logo dessa porra, tenho muito medo de
cemitérios, só vim por causa de vocês.
Eu e o Brito respondemos ao mesmo tempo:
_Idem.
Voltamos, pelo mesmo caminho, chegamos à escada, passamos e
sentamos embaixo do mastro das bandeiras, voltados pro campão, já não havia
cansaço, a lua cheia brilhando, saía de trás do bambual, como se festejasse
nossa proeza, ficamos ali, conversando sobre tudo aquilo.
Depois do que o João disse, percebi que o medo era igual em
todos, o medo fazia parte de todo ser humano, eu continuei a correr, achando
que eles não tinham medo, eles acharam que eu não tinha medo, no dia seguinte,
iríamos contar a aventura e diríamos que ninguém de nós teve um pingo de medo.
Decidimos que o João levaria o balão pro 24, provavelmente,
o soltaríamos no fim de semana, ouvimos a sirene da escola, os estudantes saíam,
as luzes das salas começavam a se apagar, seguimos a estrada de
paralelepípedos, rumo ao aprendizado, juntamo-nos ao grupo que saía da escola,
em frente ao aprendizado o João se despediu de nós, seguiu à direita, ia
pegar a estrada do 21, entramos à esquerda e seguimos, no jardim do teatro, o
Brito se despediu de mim, ia seguir a subida do 15, rumo ao 17 e eu segui a
estrada da jaqueira, o milharal do 14 não me punha medo algum, a lua cheia
iluminava o caminho, fui pra debaixo da jaqueira e chutei de leve a vegetação,
abaixei-me e resgatei meu material escolar, dentro de uma sacola plástica,
tirei-o e enrolei o plástico, o material embaixo do braço e a sacola no bolso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário