Aos três anos me vi na condição de órfão e, me adaptei a isso
naturalmente, os colégios em que morei foram minha casa e as pessoas que me
cuidavam, faziam às vezes de meus pais.
Mesmo quando as pessoas diziam que eu não tinha um comportamento típico
de um interno, eu fazia questão de mostrar certo orgulho de sê-lo.
“Permeava na sociedade esse preconceito contra o órfão, esse era pior
que o racismo, vinha carregado de ‘coitadismo”.
Desde criança, sendo negro e órfão, aprendi a me defender dos ataques de
racismo, o dom da palavra me deu as armas e, a palavra, bem empregada, corta
mais que a espada.
De cabeça erguida, percebi que os racistas são, geralmente, pessoas
desprovidas de conhecimentos, com relação ao coitadismo, isso é um mal sem cura
e independe de condição social ou moral.
Por vezes, as palavras não surtiam o efeito desejado, o capitão me
ensinou a colocar um bom golpe no queixo e, sem dentes, fica difícil a
comunicação.
Em 1981, eu completara 14 anos fazia o curso do SENAI e fui, por
questões políticas, convidado a me retirar do Attiê, transferido pra escola
Alcides da Costa Vidigal, o Jardim Peri-Peri era um bairro de classe média,
bairros assim tem população predominantemente branca e, coube a esse seu
criado, a honra de ser o primeiro aluno negro a frequentar esse estabelecimento
de ensino.
Podia falar de coisas de discriminação racial, me fazer de vítima e
coisa e tal e, seria tudo mentira. Nos efervescentes anos 80, até branco, se
dizia negão.
Pouca gente queria saber da cor da minha pele, o que pegava mesmo, era o
fato de eu morar num orfanato. Esse fato contribuía pra minha popularidade, eu
e a Aninha, éramos as pessoas mais populares da escola, eu por ser um interno e
ela por ser a menina mais bela do mundo, desculpe, do planeta.
E, diferente do que sugere todas as canções e filmes de adolescentes, a
moça, além de linda, tinha um enorme coração e, ainda hoje é minha amiga.
Além do perigo do coitadismo, o órfão passa por outro estigma e, esse é
ainda pior, a falta de uma família te associará à marginalidade.
Numa tarde, ao sair para o recreio, empolgado pra dar uns beijos na
Vannerly, saí com a mochila nas costas, quando me dei conta do descuido, voltei
pra sala e guardei o material.
Na sala estavam o Marcio e o Tadeu, eles trabalhavam numa fábrica de
elásticos e mantinham uma enormidade desse material, fizeram uma bola de
elásticos roubados e o exibiam como se fosse coisa de colecionadores. Não dei
importância e voltei correndo pros braços da morena.
Na volta do recreio, disseram que foram roubados e suspeitavam da minha
pessoa, a professora de Português Elizabeth, que já fora minha professora no
Educa e no Attiê e, sabia da minha conduta, adivinhou o que estava por vir e
limitou-se a sentar e apurou os ouvidos.
Um dos meninos exigiu que se resolvesse a coisa toda na diretoria,
calmamente me levantei, eles estavam ao lado da mesa da professora:
_Me deixa entender a coisa toda...
Com toda a calma do mundo, me aproximei dos acusadores.
_Vocês querem que eu vá pra diretoria, por conta de uns elásticos
roubados e eu teria roubado?
Com a cabeça, concordaram.
_E, desse crime, eu sou suspeito pelo fato de morar num orfanato, certo?
A essa altura eu já estava na frente deles, antes que pudessem concordar
ou não, dobrei o dorso e o cruzado de esquerda os atingiu por igual, caíram por
cima das mesas, carteiras e cadeiras e meninos no chão, quando cessa o barulho,
uma bolinha de elástico sai pulando pela sala.
Então, caros amigos... vamos à diretoria.
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