Passos não tem endereços certos,
caminhos são escolhidos na hora propícia, alguns hão de escolher o lado de lá
da ponte, outros vão ficar deste lado, onde as águas são claras e límpidas e,
ainda existem os que não escolherão caminho algum, penderam pra sempre entre o
bem e o mal.
Uns poucos, muito poucos, podem abrir
um portal e ver o seu futuro e, talvez assim, podem mudar os passos que a vida
lhe reservou.
Fui criado pra ser católico, amar
como Jesus amou e tal e coisa... mas a percepção, me deu o livre arbítrio, e
vendo que a maioria dos pregadores da palavra se perdiam na vaidade mundana,
entre a escravidão e a devassidão, me tornei um cristão reservado, depois da
primeira comunhão abri mão dessa condição e, se Maria substituiu a minha mãe,
virou meu símbolo de fé.
E, sempre houve uma Maria a
endireitar o meu caminho ou virar o meu olhar na hora exata do perigo, todas as
freiras da ordem que administrava a Casa da Infância tinham Maria no primeiro
nome, os olhos castanhos de uma Maria me salvou da morte no baile do Pombal e,
outra Maria seria decisiva na hora crucial.
Quando deixamos a brincadeiras dos
pavilhões e o futebol parou de mover nossas vidas, crescemos e nos juntamos
todos no 22, a infância havia passado e viramos adultos de uma hora pra outra,
veio o tempo de fúria, em bailes mostrávamos poder e conquistávamos
territórios, o número maior servia pra aniquilar e amedrontar a quem se pusesse
no caminho.
Alguns de nós já andavam armados e já
faziam suas vítimas, as noites de São Paulo passaram a oferecer perigo, saindo
do Asa Branca, dois caras correram em minha direção e pararam, sacaram os
revólveres e descarregaram-nos, surpreendido com a rapidez da ação, só deu
tempo de fechar os olhos, os doze estampidos me ensurdeceram, quando abri os
olhos, a multidão havia se espalhado e um corpo jazia na calçada da Rua Paes
Leme, desse amigo eu sabia pouco, que morava no Campo Limpo e tinha 14 anos de
idade, imaginei que houvesse uma mãe pra chorar a perda.
Ainda que ele estivesse a menos de um
palmo de distancia de mim e, isso fosse um grande argumento pra eu sair dessa
vida, me deixei ficar, a Sorte é um espírito que anda ao seu lado e te promete
fidelidade eterna, o outro espírito se chama Medo e, ele não fala, por vezes
sussurra.
Ainda que os amigos fossem os mesmos
da infância, muitos deles já não eram os mesmos, uma sombra havia tomado suas
almas e tudo indicava que eu seguiria o mesmo caminho.
Na festa da primavera do colégio
Vidigal, tiveram a infeliz ideia de me convidar pra encenar uma peça,
argumentei que não ficaria bem de príncipe, meu porte e a minha cor não
combinavam com tal personagem, o argumento da turma era exatamente esse mesmo,
apresentar um príncipe negro seria uma quebra de tabu, relutei o máximo que
pude e, no fim aceitei.
A princesa da peça era a Ana Maria e,
chamar a Aninha de princesa era a coisa mais natural do mundo, tal era a beleza
da moça.
Sequer havia um beijo na cena, apenas
um abraço rápido e a plateia delirou, os amigos do Educa apareceram por lá e
puxavam o coro, o tio da moça estava lá e não gostou de nada daquilo, me
fuzilava com os olhos.
Quando terminou a peça, ficamos ali
pelo pátio a conversar e o cara ainda a encarar, incomodado com essa situação,
resolvi que iria tirar satisfação, desse o que desse.
Antes que eu saísse do bolinho e
caminhasse na direção do homem, um revólver foi posto no bolso da minha
jaqueta, enfiei a mão no bolso e o segurei pela coronha sem tira-lo de lá.
A Aninha e a mãe dela seguravam o
homem, ele tentava vir na minha direção, notei que a Aninha começava a chorar.
A arma pesava no bolso e meu dedo
indicador já dormia no cão, só faltava o impulso pra partir, subitamente
percebi que uma força me impedia de andar, naquele pátio lotado o tempo avançou
e eu vi o futuro.
Como se eu não estivesse no meu corpo,
vi as coisas de cima.
As pessoas corriam pra se proteger, o
homem caído na escada de saída e o sangue a escorrer nos degraus, guardei a
arma quente no bolso e desci a escada correndo, não tinha como não pisar na
poça vermelha, ganhei a rua e corri em direção à Raposo Tavares, quanto mais eu
me distanciava da escola, os gritos da Ana Maria se faziam mais altos.
Quando voltei pro presente, as duas
já haviam arrastado o homem pra escada, sabia que a Aninha estava me
defendendo, virei de frente pros amigos e entreguei a arma pro Viana.
_Vai ficar por isso mesmo?
_Vai.
_Talvez fosse até o certo a se fazer,
mas tem um, porém.
_Qual é?
_Eu jamais faria Maria chorar.
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