É certo que, todo discípulo carrega pra sempre, uma marca, aquilo o difere dos outros, um jeito que vai ficar pra sempre, a marca peculiar do aprendizado, na idade média, todos os cavaleiros de Orleans-norte de França, tinham um modo específico de empunhar a espada, podia-se perceber (por essa sutil diferença) todos os alunos de Pierrette, mestre de armas daquela região, eles não precisavam se identificar, bastava que alguém os visse em batalha e o manejo da espada, denunciava-lhes a escola.
Assim também aconteceu com os atletas do Dínamo, o jeito de chutar a bola
passou a ser uniforme, todos chutavam da mesma forma... 45 graus de
distanciamento, corpo apoiado na perna esquerda, a batida, entre o calcanhar e
o peito do pé e, bola no angulo esquerdo do goleiro. O Victor Luther Zeus, o
Erasmo Anderson, o Maciel Henrique, o Maicon Melo, o Dener Alexandre Camargo
Dos Santos, o José Jose Roberto Sales Roberto, o Lagoa, o Rodriguinho, o Alex,
o Alessandro Diniz, a Adriana Dourado, a Cacilda e muitos outros, batiam faltas
do mesmo jeito, o jeito que eu ensinei-o a fazer, que era o meu jeito, minha
assinatura.
Mas pra se tornar mestre, faz-se imperativo que se tenha de onde aprender, só
se chega a mestre, através da mão de outro mestre. Vou contar como eu aprendi a
bater na bola, ou, como eu me permiti aprender o futebol.
Eu tinha, entre nove e 10 anos e morava num orfanato, o Educandário Dom Duarte,
muito magrinho e com dificuldades no trato da bola, em outras palavras, pereba mesmo.
No campo do lar 14, como em todo lugar, prevalecia a "lei do mais
forte", por conta disso, quando os grandes desciam pra jogar bola, nós
pivete, saíamos do campo e se ficássemos, eles nos atropelariam (simples assim).
Mas, diferente dos outros meninos, eu não ia embora, ficava no barranco,
assistia-os jogar. Procurava assimilar tudo, quando eles cansavam e saiam do
campo, eu descia e os imitava, assim eu fui aprendendo. E por mais que eu me
esforçasse, a evolução era lenta, meus amigos, que já tinham a habilidade
natural, estavam anos-luz, na minha frente, resolvi que tinha que ter uma arma
a mais pra me igualar, ter uma batida potente, me colocaria na vantagem e todos
teriam que me engolir no time.
Entre
os grandes, havia o maior de todos, seu nome era José Aparecido dos Santos, mas
só atendia pela alcunha de Roda, tinha uns 15 anos e era o tuba. Tuba era a
definição que se dava ao mais forte, o bambambã, é uma derivação de tubarão, o
que valia dizer que ele devorava os outros peixes do aquário. Meninos tem, por
habito, admirar os maiores, mas nesse caso não, tínhamos medo do Roda. Ele era
o mau humor em pessoa, gostava de bater, batia em todos, por puro prazer,
vendia sangue, pra comprar cerveja e cigarros, caçava cobras e vendia ao
Instituto Butantã, pra manter o vício da maconha. Era provavelmente a pessoa
mais odiada da face da terra, mais quando começava uma partida de futebol, todo
mundo o amava, jogador completo, tudo o que os outros consideravam ótimos ele
superava e, de longe.
Eu era inteligente, observava tudo e executava
certa manhã, jogando um contra no campinho do 17, nós jogamos contra o time dos
grandes, o Roda observava atendo, do alto do barranco, eles tinham o Moacir, o
melhor de todos os goleiros do E.D. D, simplesmente uma lenda. Não tínhamos a
mínima chance de vencer, mas, não queríamos passar em branco, reuni meus amigos:
O Tequinha, o Spock, o Lucídio e o Feliz, falei-lhes que o Moacir telegrafava
os movimentos e mostrei como fazer para vencê-lo. Toda vez que
contra-atacávamos, fazíamos um triangulo na frente dele, o da frente ameaçava,
o goleiro caía, ele tocava pro cara da direita e quando esse chegava em cima do
Moacir, tocava pro da esquerda, esse só tinha o trabalho de conferir, conhece a
satisfação de um guri de 10 anos, que acaba de fazer gol num goleiro de seleção
e que tinha 16 anos? Não ganhamos o contra, mas fizemos oito gols, do mesmo
jeito, revessando as posições do triangulo, na hora da saída o Moacir, que não
gostou nada de tomar gols dos pivetes, achou que o Tequinha estava muito feliz
e disse que ia nos dar uma lição, veio correndo, pra bater em nós. Já havíamos começado
a corrida, quando o Roda gritou:
-Se
bater nos meninos, vai se ver comigo. E, quando fomos agradecer pelo favor, ele
sorriu e deu uma piaba em cada um.
Pela
primeira vez, vimo-lo sorrir.
Dias depois, eu estava assistindo o jogo da seleção, como de costume, no campão
do EDD, eu ficava sempre no mesmo lugar, na lateral esquerda, perto do fosso,
gostava muito daquele lugar. Nesse jogo, nosso time não estava bem, o time
deles tinha uma defesa muito boa, marcavam em bloco e o Roda tinha três
marcadores, no contra-ataque, eles fizeram um gol, por mais que ele tentasse,
não conseguia vencer a defesa. Quando terminou o segundo tempo, o Moacir acenou
pra mim, quando se dirigia ao vestiário, pensei que fosse ameaça e não fui com ele.
Pouco depois, vieram, ele e o Roda em minha direção, Moacir bateu na minha
cabeça e disse:- Fala sabidão... como é que se faz agora? A Roda se abaixou,
pra poder ficar da minha altura enquanto eu falava:- Todos os seus marcadores
são destros e te levam para o lado esquerdo, sabem que você não usa a perna
esquerda, leve-o pra esquerda e corte pra direita, mas seja rápido, enquanto
falava, mostra o campo e com a mão, mostrava a diagonal. Todo mundo achou
estranho, menos os meus amigos, esses se juntaram a mim, pra ver o que dava.
Começou o segundo tempo, bola
na mão do Moacir, chute preciso, a bola acha o Roda na intermediaria, três
marcadores estão a sua frente, ele dá um leve toque com o pé direito, ajeita
ela no lado esquerdo, com velocidade, põe a bola do lado esquerdo, dominando-a
com a perna esquerda, os marcadores também estão em velocidade, quando a bola
parece que vai sai na linha de lado, ele ajeita o corpo, com a perna direita
corta, no corte, ele tira os três do jogo e está na cara do goleiro, goleiro no
chão e a bola já tinha passado, por baixo dele. Ele fez mais quatro gols, dizem
que esse dia ele virou canhoto, no final do jogo o Moacir foi agradecer, o Roda
deu um sorriso amarelo e foi embora.
Eu não
achava de fato, ele fosse agradecer, a satisfação de colaborar com o meu time
de coração me bastava, a vida segue, eu segui a minha, sozinho no campo do 14,
eu treinava, eu e a trave.
Num
belo dia ele desceu, pegou a bola e na educação, que lhe era peculiar disse:- Olha
aí, seu FDP, é assim que se faz. Doou meia hora de seu tempo no mundo pra me
ensinar e, nunca mais falamos disso e por menor habilidade que eu tivesse, eu
sabia chutar.
...E
foi assim, por causa do chute, que um guri pereba saiu do banco, pra ser o
camisa 10 do Grêmio Educandário.
C
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