terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O Luis Paulo


  Esse era muito popular entre os internos, pelo fato de ter sido um interno e ser muito jovem.
  Negro, d'um negrume que reluzia, num tempo de forte racismo, era a pessoa que contava as melhores piadas de negros.
  Sua função, no colégio era a de emergente, ele substituía o larista em sua folga e nas férias, mas acabava que fazia outras funções, uma delas era a de motorista da Combi.
  Seu porte, esguio e muito magro, rendeu-lhe o apelido de formigão, falava alto e tinha um sorriso contagiante, conseguia ser popular entre os internos, sem cair em desagrado com a diretoria.Quando a diretoria dos "irmãos" foi embora, ele assumir a função, que antes cabia ao irmão Augusto, passou a buscar a comida, no Mercadão Municipal e levando as pessoas pra Liga...e, ele sempre dizia, em tom de piada:_Pra pegar os pés de frango, eu levo os meninos do 14, pavilhão de pretos, pra ir pra festas da Liga, eu levo os branquinhos do 22.
  E, piadas à parte, a divisão de menores nos pavilhões, seguia mesmo essa regra.Com a nova diretoria, o Luis Paulo ganhou o status de intocável, passou a ser o motorista da própria diretora, a dona Camila.Como eu disse, ele era muito querido, em qualquer rodinha que chegava, era bem recebido, até técnico da seleção mirim, ele se tornou.
  Um dia, quando terminávamos o treino de futebol no campão ele me disse que fosse logo pra "casa" e me trocasse rápido, pois iríamos sair num rolê louco, fui correndo pro 14, que nessa época não tinha laristas, o Odilon havia sido demitido e a fama dos meninos do lar 14, dava medos nos pretendentes ao cargo, a responsabilidade ficou nas mãos do Luis Antonio, o mais velho de todos, que tratava à todos como se fosse um irmão mais velho, o pavilhão, nessa época era o paraíso na terra.
  Quando eu estava, de frente do espelho da área, ajeitando o black, ouvi a buzina, olhei pra estrada que levava ao cenáculo e havia uma Mercedes Bens estacionada, o sol das onze horas batia e reluzia no verde metálico do carro importado, o motorista saiu, pra mostrar a roupa, trajava um agasalho completo, verde com duas listras brancas nas laterais e um tênis Nike branco, só professores de educação física os usavam em 1979, uma grande corrente de ouro no pescoço, completava a estica...é, o negão estava em punga mesmo.
  E, fomos ao rolê, dois negrões num carro importado, ao som de Joe Egan e Isley Brothers...sensacional.
  A missão era simples, ir até a outra escola, onde a dona Camila também era diretora, que ficava no Quilômetro 35 da Raposo Tavares, consertar o pé da mesa do altar da igreja e pendurar uns quadros da santa ceia, nas paredes laterais, quando chegamos nas proximidades do colégio, ele me deu o volante e, no banco do passageiro, passou instruções para eu conduzir e estacionar o carro, apesar de ser grande, eu tinha 13 anos.Faltavam uns cinco quarteirões pra chegar ao nosso destino, quando uma viatura preta e vermelha nos abordou, descemos do carro e notamos que os policiais estavam mais nervosos que o normal, abordaram- nos de longe, no que eu abri a porta, o policial que havia se posicionado ao lado, engatilhou a arma e tremia, o cara que estava na porta do Luis Paulo fez pior, quando ele abriu a porta, o policial caiu pra tras e se protegeu, de joelhos, a arma sempre na nossa direção, o terceiro policial se posicionou na nossa frente e portava uma sub-metralhadora, já destravada, o motorista já estava fora da Veraneio e com um pé fora do carro e outro dentro, tinha nas mãos uma escopeta.Eu tinha medo de levantar as mãos, qualquer movimento em falso, seria o nosso fim, barulhos de sirene, mais duas viaturas chegaram, em 3 segundos estávamos cercados por todos os lados, gritaram para que colocássemos as mãos na nuca, todas as armas acompanharam os movimentos, mandaram que nos deitássemos, reparei que apesar de estarem ameaçando os dois, todos davam mais atenção para o Luis Paulo, todos os olhos estavam voltados para ele.
  _Conhece o doutor Toledo? -perguntou o tenente.
  _Conheço, eu trabalho pra filha dele.
  Esse policial saiu, foi fazer uma ligação e levou a carteira do Luis Paulo, os outros ficaram nas mesmas posições, alertas...os dedos coçando, eu soava frio e mentalmente rogava:_Valha-me São Jorge.
  Por incrível que pareça, essa não foi uma cena de racismo...dois pretos num carro importado e coisa e tal, não foi isso, apesar de, nesse tempo a corporação ser totalmente constituída de policiais racistas, afinal era 1979, "pouco preto na TV" e tudo mais.O que aconteceu de fato foi:Nessa época, o cara mais procurado pela polícia era um tal de Chêpa, assaltante de bancos famoso, que fugia da polícia na base do tiro e já virava herói do povo...pra nosso azar, o Luis Paulo(aos olhos dos policiais) era a imagem do bandidão.
  Depois que o tenente voltou com o esclarecimento, mandou que os caras nos liberassem, fixei os olhos no único cara que tinha ficado calmo, o motorista, ele media uns 2 metros e portava uma medalha de São Jorge, lentamente desengatilhou a escopeta e se encaminhou na nossa direção e disse rindo:
  _Menino, você é a cara do meu filho.E, foi-se sorrindo.Isso me desconcertou, fiquei quieto, mas pensei:_Que coisa louca, uns instante atras, um cara ia fuzilar um cara que é a cara do filho dele, Deus me livre, de uma profissão dessas.
  Fomos fazer o serviço da igreja, conversamos calmos e ainda sem acreditar em tudo aquilo, não conseguíamos rir de tudo, o Luis Paulo disse que foi muito azar.
  _Azar ou sorte, tudo depende do ponto de vista._disse eu.
  _Como assim??_perguntou o meu amigo.
  _Você já se esqueceu que era eu que dirigia, quando fomos abordados??
  Ele tomou um susto e voltou a sorrir, terminamos o serviço e saímos, íamos abastecer o combustível do carro, e, por si só, isso já seria uma ótima historia, pra se contar... na altura do Rancho da Pamonha, havia um posto, quando nos aproximávamos do posto de gasolina, ele encostou o carro e trocamos de lugar, disse que era pra gastar mais um pouco da sorte.
  Manobrei e entrei no estacionamento, tudo com perfeição, quando parei o carro, pelo fato da maçaneta da porta de trás estar com defeito, tive que abri-la, pra fazer uma piada de motorista, conforme eu abria a porta, fiz uma mesura, como se abrisse a porta pra rainha da Inglaterra, nesse momento uma mulher muito branca e gorda saía da loja de conveniências, portava  uns sacos de compras, ao ver o Luis Paulo sair do carro, em seu agasalho reluzente, estatelou os olhos e ficou sem fala, de tanto espanto.
  Ai meu São Jorge, ia começar tudo de novo, quase que o Luis Paulo volta pro carro, dessa vez iríamos correr muito.A senhora se recuperou e gritou bem alto:
  _JOÃO DO PULO?!!.e caminhou em nossa direção, o Luis Paulo, tomado de susto, não falou nada, ela o abraçou e beijou-lhe nas faces, antes que o Luis Paulo tivesse chance de se recompor e por tudo a perder, puxei-o dos braços da senhora e disse:_Minha senhora, deixe o João em paz.O Luis Paulo entendeu a situação, sorriu e fez um gesto de calma pra mim, eu soltei a senhora, que agora agarrava ele, nessa altura, outras mulheres e homens saiam da loja, os frentistas se juntaram à pequena multidão.Todos pediam autógrafos, o dono do restaurante pediu que entrássemos no seu estabelecimento, por conta da casa, na hora da sobremesa, ele pediu que um funcionário tirasse fotos dele ao lado do João do pulo.
  A vida é assim mesmo...pela manhã você é confundido com um bandidão, à tarde você vira herói.

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