sexta-feira, 27 de julho de 2018

A trágica história de dois Marcos.


A história do Educandário Dom Duarte sempre correu de encontro aos acontecimentos mundanos, é certo dizer que, por muitas vezes não acompanhou assim, com tanta significância, mas sempre mudou.
Durante décadas, se arrastou sem alterações, no passo lento que o seu Tinoco, regular, descia os paralelepípedos para vencer a distancia entre a residência dos irmãos até o prédio da administração, enquanto isso, o Vicente fazia barras apoiado em um só dedo, ao lado do campão, recém-inaugurado, o sol forçava uma fumaça de vapor na relva do gramado.
Esse era um cenário antigo que teimava em não sofrer alterações, mas, no ano de 1979, no final de outubro mesmo, o tecido do espaço tempo foi violado, uma violenta onda de fatos inesperados mudaram o cotidiano para sempre.
Saturada de uma encardida corrupção, a diretoria dos irmãos caiu, o ano de 1980 foi inaugurado com uma administração nova, eram o seu Aristides e a dona Camila que mandavam agora.
O pavilhão 15 que durante muito tempo foi chamado de o pavilhão dos grandes, foi esvaziado por completo, passou a ter somente meninos pequenos, a maior parte deles, entre sete e oito anos.
Esse evento, por si só, já era uma mudança tão drástica que, nem precisava ser precedido de alguma fatalidade.
Os meninos do 15 eram uma sensação, quando desciam do pavilhão em fila indiana sob o comando do Jonas e sua esposa, causavam alarido nos outros mais velhos, todos vinham para brincar com eles na fila do refeitório que, também acabara de ser inaugurado.
Entre esses meninos, havia dois que mais chamavam a atenção de todos, dois Marcos... um era Marco Antônio, cujo apelido era Boi e o outro atendia pelo nome Marco Roberto.
Tem toda uma mistura de coincidência entre esses dois personagens que, por ironia do destino, se encontraram no mesmo colégio, mesmo pavilhão e que, acaba parecendo um conto inventado.
O Marco Antônio era criado pela avó materna e sua mãe era aquela moça que protagonizava na televisão a abertura do programa de humor "Planeta dos homens”... os mais velhos vão lembrar de uma moça que dançava numa banana.
O Marco Roberto e, isso carece de veracidade, era filho bastardo do cantor brega de mesmo nome.
O leitor já percebeu que era tudo novo e inaugurando naquele instante da história, na lateral direita do prédio do SENAI ainda construía um muro de contenção, algumas pedras da obra se encontravam no chão e crianças gostam de brincar com pedras no chão, sempre assim.
Não era muito grande a pedra que o Marco Roberto desferiu em direção do amigo e nem tanta força tinha ele, é absurdo o tamanho de uma pedra que justamente vá se encaixar na mão de uma criança de sete anos, só que ele o atingiu em cheio.
E, mais uma vez a ilha se enrolou no luto e foram dias tristes a espera de um sol melhor.

quinta-feira, 15 de março de 2018

O teatro do Educandário Dom Duarte.

Não quero ser repetitivo, portanto não vou dizer, de novo, o quanto eu apreciava esse prédio, na minha memória, ele só perderá para o lar 14 e para o campão.
Muitos momentos importantes vivi ali e uma vida não se conta com regras de cronologia, se conta em momentos, como flashes que vem ao acaso.
A mangueira do 14 era vizinha do teatro, de cima dela ou a seus pés, eu sempre podia ouvir as músicas que vinham dos seus autofalantes, músicas que ainda ouço e, me transportam para esses tempos felizes e coloridos.
A missa de domingo era celebrada ali, bem como as festas da Liga, depois da missa havia sempre um filme ou um show.
O inesquecível Giuliano Gemma protagonizava o clássico filme "Por teto, um céu de estrelas", faroeste italiano com muitos tiros que conta a história de uma vingança, a pouca luz da noite do Oeste deixava no breu a plateia, nas cenas de suspense dava para ouvir o bater dos corações aflitos dos meninos e, se a cena fosse exagerada, vinha um sonoro NÓÓÓ, seguido de apupos e risadas.
Num domingo desses, um mágico se apresentou para essa plateia, se apresentava como mexicano...Gonzáles ou Morales, confesso que não me lembro do nome da criatura, porém, pelo sotaque não chegaria ao bairro de Santo Amaro.
Logo no primeiro truque, aquele manjado de cartas, deu a primeira mancada, todos os meninos perceberam a falha, um deles denunciou:
_Nóóó, a carta estava na outra mão...nóóóó.
Daí para frente, a coisa ficou pior, ele se desculpou e fez outro truque, esse foi pior que o primeiro e a turma:
_Nóóó, encanei.
Aparentemente, se tratava do pior mágico do mundo, esqueceu o portunhol e se desculpou com os meninos, um adulto e profissional pedindo desculpa para crianças.
Fez mais alguns truques e, a mesma coisa se sucedeu, os nós e as vaias se agigantavam.
O estranho é que ele não parecia apavorado, a cada fracasso, ria um riso cínico, anunciou o último número, para tal precisaria de um voluntário da plateia.
Não tenho bem certeza se o Marco Roberto do 15, que tinha uns oito anos, se ofereceu ou se foi empurrado ao palco.
O mágico infeliz pediu o máximo de concentração de todos e todos riam, estava claro que não funcionaria esse truque, fosse qual fosse a marmota.
Foi aos seus pertences e tirou de lá uma capa preta, uma enorme capa preta, cobriu o guri com ela e, ele não media mais que metro e meio de altura, evidentemente que a capa lhe servia como um cobertor... gritou uma palavra estrambólica e retirou a capa...o menino havia sumido de verdade.
Fez-se um silêncio constrangedor, o mágico saiu rindo do palco, quando estava no meio do corredor que separava as duas metades das cadeiras da plateia, interrompeu a caminhada, cessou a risada e gritou, olhando em redor:
_Nóóóó.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A vingança do Gilberto.

Parte dos meninos que viviam no Educandário Dom Duarte vinham da Casa de Infância do Menino Jesus, esse é o meu caso. outra parte vinha do Quadrilátero, esse é o caso do Viana, uma outra parte vinha do Sampaio Viana, esse é o caso do Valter Spock e uma parcela desses, vinham da casa de suas famílias, caso do Luiz Carlos, o Feliz.
Independentes de onde vinham, em terras educandárianas, para melhor convívio, formavam grupos, quintetos, quartetos, trios ou duplas, as duplas eram mais comuns.
Dificilmente, um interno campeava o vasto terreno do colégio desacompanhado de seu melhor amigo, haviam duplas memoráveis, feito os Valdevino e Lourival do 12, Beréba e Gibi do 19, Valdeci e Dalcídes do 13 e muitas outras, quando você via um integrante, o outro estava por perto.
Geralmente, os integrantes das duplas eram moradores de um mesmo pavilhão, mas, haviam os raros casos de amizades em que, sendo a vivência mais antiga que a data da internação, a barreira geográfica não interferia na convivência das duplas, esse é o caso do Udiney do 11 e o Galito do 13 e o Fernandinho do 17 e o Edson Sena do 19.
Andar em bando era até uma maneira de se defender, na celebração e na hora do perigo, seu melhor amigo estava ali, do lado, na hora que o bicho pegava, corriam os dois, na hora do castigo também.
Haviam, no pavilhão 14, dois Gilbertos, um era o Grilo e já falamos dele em postagem, o outro era o Gilberto Camargo...irmão do Adalberto.
Esse segundo, não era muito fácil de se relacionar, raramente se dava bem com os outros, andava mesmo sozinho, seu jeito de psicopata afastava-lhe as companhia.
Sem parceiros para as aventuras, o menino era um franco atirador, raramente saía dos limites do pavilhão 14, ou ficava no bosque ou no bananal, em cima da mangueira e parecia mesmo feliz.
Era fácil vê-lo nesses lugares agachado e falando sozinho:
_Eu hein neguinho, esse moleque é doido.
_Mano, às vezes, seu melhor amigo é você mesmo.
Um dia de sol, os laristas do 14 estavam de folga, o Luiz emergente cuidava do pavilhão, boa praça que era o filho do seu João do forno, trancou o pavilhão e levou os pequenos à passear no Parque das Hortências.
Bateu, de repente, uma vontade de se aliviar e, o Gilberto correu, constatou que estava trancada a porta e, sem titubear, atravessou a estrada e desceu o bosque, embaixo das sombras dos pinheiros, agachou-se.
Isso, seria a coisa mais fácil do mundo a se fazer, porém e, sempre tem o tal do porém...o infeliz, sem perceber, pisou num ninho de formigas caticeiras.
Rapidamente o Gilberto subiu de volta o barranco e correu na estrada com o calção ainda arriado, nesse momento, uma dupla, o Tutinho e Claudio, estavam sentados no alto do barranco das uválias e, ao verem a cena, caíram na gargalhada.
Eu e o Viana encontramos com o Gilberto minutos depois, ele já havia se refeito e contou-nos o acontecido, a outra dupla ainda se rolava de rir do pobre.
O Gilberto olhou para o Tutinho e o Claudio e falou:
_Estão caçoando de mim??Vão pagar caro.
Não foi para nós que ele disse isso, foi para si mesmo, uma sobrancelha levantada e a outra abaixada, isso foi medonho, deu-nos calafrio.
Bom, essa dupla, para celebrar a velha amizade, tinha o habito de juntar dinheiro, ir ao almoxarifado do irmão José, comprar guloseimas, estender uma toalha no chão e fazer um pic nic embaixo da mangueira do bananal.
O Gilberto não tinha um melhor amigo, nas duplas, existe sempre o que é mais racional, esse que não deixa as coisas ficarem feias e, sendo assim, não houve quem pudesse aplacar a sede de vingança do maluco.
Do lado de fora do pavilhão, no triangulo que formava o primeiro e o segundo dormitório, havia um jardim de plantas ornamentais, no centro dele, um pé de limão frondoso de tamanho médio, no galho do meio um grande cacho de marimbondo havia sido feito e já crescia há meses.
No dia seguinte resolvemos seguir o Gilberto, quando se aproximava da duas horas da tarde, com todo cuidado do mundo, de posse de uma sacola do plástico, fechou a sacola sobre o cacho de marimbondos, quebrou o galho e não perdeu um deles, amarrou a sacola e sorriu para o amigo imaginário.
Seguíamos-o, de longe, ganhou a área do bananal e se acomodou na copa da mangueira, passou a assobiar uma canção "Viva as irmãs de São Francisco".
Na nossa caixa de alvenaria de sempre, podíamos vê-lo feliz, antecipando e saboreando a vingança.
Minutos mais tarde a dupla, sem nos ver, esgueirou-se entre as fileiras de milho seco e desapareceram no bananal, levavam um toalha e as guloseimas num saco grande de papel.
Toalha armado no chão, filão com mortadela cortadas no facão e Kí-Suco numa garrafa de alumínio, sonhos de valsa ornamentavam a ceia da tarde, um bem-te-vi cantou lá pros lados do campo, repentinamente e, uma voz medonha veio do céu:
_Sete merri três para Sete merri quatro...Torpedo lançado.
Sem tempo para olharem de onde vinha a voz, um bomba explodiu no meio da tolha estendida, a queda liberou o conteúdo, centenas de marimbondos os atacou ferozmente e, enquanto corriam, gritavam, cada um para um lado.
_Cara, eu falei que esse moleque era doido.
_Amigo, eu preciso de mais provas.
O Gilberto passou correndo por nós, com a toalha embalando o pão ao ombro, os bombons no bolso, bebeu o suco todo, notou a nossa presença, soltou uma gargalhada, jogou a garrafa no mato e disparou sentido cenáculo.
_Tem razão, esse menino é doidinho de pedra.