sábado, 31 de dezembro de 2016

O lugar mais lindo do mundo.


O lugar mais lindo do mundo.
Nas manhãs de inverno, quando se perguntava se havia mesmo motivo em sair da cama, uma densa névoa cobria a estrada que levava ao cenáculo, uma bruma que dava impressão de se ter chegado ao céu.
Nas manhãs de primavera, antes do sol se firmar, florezinhas amarelas traziam as borboletas coloridas na subida da jaqueira.
Em alguns dias de julho, um bando de guris esperava embaixo da araucária gigante, o momento certo da penca de pinhões despencar.
Na frente do pavilhão 14 havia uma área sombreada, sombra suave produzida por uma fila de seringueiras bem podadas, atrás do pavilhão uma fileira de uvalhas floresciam e traziam as abelhas, do lado de fora dos dormitórios, uma enorme primavera estendia seus galhos com espinhos e dava flores lilás.
Mesmo conhecendo muitos lugares de São Paulo, o Educa nunca deixou de ser o meu cantinho, meu lugar mais lindo na terra.
Vindo de ônibus, de qualquer lugar, no começo da Raposo Tavares se sentia a temperatura amenizar, se podia sentir a mudança de ares, na curva do cemitério israelita o ar melhorava mais ainda, o coração se sentia em casa, quando se entrava na portaria e iniciava-se a subida de paralelepípedos vinha a sensação de se estar em casa, uma subida que valia pela beleza, do lado direito os prédios mais lindo estavam perfilados, do lado esquerdo o imponente campão se exibia, depois vinha o lago sem nome e o bambuzal, no fim do turismo fantástico se ficava em frente ao SENAI, uma curva à esquerda e vinha o teatro, sempre se dava sorte arrancar uma folha do buchinho que crescia em seu jardim em forma de círculo, no lado esquerdo uma longa depressão punha a piscina aos nossos pés e a vista do campão era muito mais imponente e, se iniciava a subida da jaqueira.
À despeito do meu jeito introvertido, os amigos do 14 eram mestres em tudo o que se referia a habilidades de criança, com eles aprendi tudo, de jogar bolinhas à andar de pernas de paus.
O irmão Augusto se referia a eles como índios e quando faltavam cobras no viveiro, recorria a eles para caçá-las.
Raros eram os meninos que ficavam na terra batida da entrada do pavilhão, salvos os meninos que tinham limitações físicas, o Lucídio e o Adalberto eram esses, raramente saíam dos arredores do pavilhão e gostavam de brincar na sombra das seringueiras.
Paralela às seringueiras, num plano mais baixo, corria uma estrada que findava no pavilhão 15, do lado direito tinha o bananal do 14, a poucos passos da nossa caixa de alvenaria, uma enorme árvore havia sido cortada, ficando ali somente a raiz e ela não morreu, no meio da raiz havia um enorme buraco, dentro desse buraco as abelhas fizeram uma colmeia.
Não se tratava de uma colmeia pequena, quem vinha da bifurcação do 12 ouvia o zunir das abelhas e isso contava uns cinquenta metros de distância.
Os guris do 14 dominavam o ambiente e sabiam tudo da terra, do tempo de plantio, época de amadurecimento e comportamento das plantas e dos insetos, só não dobravam o ar...eu e o Ovinho éramos os gafanhotos, os aprendizes.
Enquanto o Viana, o Edson, o Tequinha e o Spock se aproximaram do tronco, nos mantivemos a uma boa distância do perigo.
O sexteto era assim, quatro mestres e dois aprendizes.
Trouxeram uma câmara de bicicleta rasgada em tiras, um saco de estopa, uns pedaços de paus e uma garrafa de gasolina, não tenho certeza, mas, acho que o último artigo foi roubado do Fusquinha do seu Odilon.
Amarraram as borrachas nas pontas dos paus e cobriram com as estopas, quatro tochas, antes de as empaparem na gasolina, o Spock gritou para o Adalberto e o Lucídio se afastarem, eles observavam da parte mais alta do barranco, correram para a área do pavilhão e se esconderam.
O zumbido aumentou quando o fogo foi aceso, a tocha produzia uma fumaça preta e as abelhas começaram a se afastar, os quatro brandiam as tochas na direção do epicentro, em breve saborearíamos o mais puro dos sabores do mel.
Quando o Viana já havia pego um favo nas mãos, houve uma reviravolta e um enxame atacou o Spock e ele começou a gritar soltando a tocha, os outros, tomados pelo pânico, soltaram tudo e correram, eu e o Ovinho ganhamos a dianteira e descemos correndo o bananal, atravessamos e caímos no fundo do teatro, haviam uns guris do 13 ali, nos viram correndo em sua direção e se assustaram, pensaram se tratar de um ataque vietnamita, gritamos:
_Abelhas.
E esses engrossaram a turma de corredores, perto dos buchinhos haviam mais guris, que passaram a correr também, já estávamos longe e as abelhas não desistiam, ganhamos a picada que fica acima da arquibancada da piscina, correndo ao lado do lago a turma já chegava a uns vinte guris, os guris grandes que tocavam violão na arquibancada, entraram no pelotão e nada das abelhas pararem, a colmeia toda estava no nosso encalço, quando vencemos a subida do bambuzal, percebi que na gola longa da camisa do Spock uma abelha maior que as outras jazia tranquila, já atravessávamos os paralelepípedos rumo ao gramado do Grupo Escolar e então eu gritei.
_Spock, tira a camisa.
Ele, que gritava das dores das ferroadas, batia no próprio rosto.
_. Tira a camisa, você está levando a rainha.
E passaram todos a gritar para o Valter se livrar da camisa, no meio da grama, a camisa dele ficou e toda as abelhas foram para lá.
Param todos os guris no jardim da frente da escola e passaram a contabilizar os prejuízos, eu havia tomados umas cinco ferroadas, nenhuma no rosto, o Ovinho havia tomado umas três, todas no rosto e parecia um personagem de filme de terror, foi difícil não rir da sorte do amigo, por umas boas meia hora ficamos ali conversando e rindo, saímos em 6 do 14 e fomos arrastando quem estava no caminho, haviam uns vinte guris agora e história para contar no recreio da segunda feira.
Pelo caminho de volta achamos a terra de formigueiro, molhamos com cuspes e cobrimos a feridas, coisa de índio.
Quando chegamos ao 14, o Lucídio e o Adalberto já haviam enjoado de tanto mel.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Aos amigos do pavilhão 14.


Quando, na Casa de Infância do Menino Jesus, se completava dez anos, ia-se para quarta série. Os meninos que tinham família entravam no último ano de voltar para casa e, sentiriam saudades do orfanato.
Aos órfãos, cabia um ano de expectativa, o último ano dos carinhos das freiras, sair do orfanato, por si só, já era uma tristeza, no entanto, o Educandário Dom Duarte era um caminho inevitável e, se podia prever uma tempestade futura.
O ano de 1976, cursei a quarta série e o São José era o último pátio, último estágio na minha jornada de sete anos, eu tinha vinte e nove amigos e achava que jamais teria amigos tão queridos assim.
Alguns ex-internos vinham, aos domingos de visitas, com novidades sobre a futura casa e pintavam um quadro sombrio, saber que no fevereiro próximo eu desembarcaria no educa me apreendia, em cada comemoração ou festa que eu participava, sabia que seria a última, então eu já vivia no Educandário, um ano antes de chegar lá.
Cheguei com o Hélio, os irmãos Adalberto e Gilberto, o Luís Sérgio e o meu irmão, o Sebastião chegou um mês depois.
O lar 14 era comandado por um casal de monstros e, não havia nada a ser aprendido com esses, briguei e fiquei de castigo no primeiro dia, o desafeto acabou por ser o meu melhor amigo e, mais tarde nos chamamos de irmãos.
O primeiro dormitório era dos pequenos, todos que chegaram comigo foram para lá, à despeito da minha idade, eu tinha tamanho de médio, havia uma vaga no dormitório dos médios, o Sérgio e a dona Ana, ficaram na dúvida se eu devia ficar no dormitório dos médios e, eu disse:
_. Eu estou no ginásio.
Esse era o argumento que faltava, ganhei a terceira cama, à esquerda de quem entra, meu armário ficava do lado direito, guardei minhas roupas, todas elas já estavam com o número 152 carimbado, a minha centena preferida até hoje.
Me lembro de todos os quinze ocupantes, pela ordem, do dormitório dos médios, mas serei aleatório:
O Feliz se chamava Luís Carlos da Silva, os dentes projetados para fora, passava a impressão de um sorriso eterno, o Viana era o Maninho Pequeno, o Floriano era o Maninho Grande, o Valter tinha o apelido de Spock e ele gostava disso, lembrava o imediato do capitão Kirk, o albino Oscar era chamado de Bandido, assim como o Luiz Carlos Dias, os irmãos Lucena(João e Hélio) passavam a impressão de serem opostos, brigavam o tempo todo e, assim mesmo, quem brigasse com um, tinha que brigar com os dois, o Tadeu era chamado de Padal, sem o R mesmo, ele tinha mania de comer algumas letras, se na leitura ela não se destacava, no futebol era um Einstein.
O Lucídio era daquelas almas que jamais farão mal a ninguém, nunca.
O Chumbinho era boa companhia para as aventuras, mas o irmão Edson era a mansidão e a tempestade, tudo ao mesmo tempo, ao mesmo tempo que defendia os menores, enfrentava o seu Odilon...o diabo em pessoa.
Em dias de visitas, a mãe do José Antônio trazia os bodes para todo mundo do pavilhão e o pai do Mamede, que trabalhava na prefeitura de Itapevi, vinha com o basculante e todo mundo subia na carroceria, só de zoeira.

Em pouco tempo, eu entendi que estava errado no que eu havia projetado para o futuro, no 14 eu me senti em casa e, tive os melhores amigos que uma pessoa podia ter tido na vida.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

O irmão Wilson.


Quando estive no Educandário Dom Duarte pela última vez, fiz questão de tirar uma foto com ele, junto dos meus irmãos e, foi o máximo, sempre tive um carinho especial por ele.
Essa pessoa com sotaque carregado do Sul, é o maior culpado pelo fato de eu nunca ter coragem de fazer uma tatuagem, não que eu tenha medo de agulhas, mas, viro a cara para não vê-la penetrar na minha pele.
Periodicamente faço exames de sangue e doação de sangue, esses procedimentos exigem que uma agulha penetre o corpo da pessoa e eu não olho, no caso da tatuagem, são várias vezes, aí não dá, estou fora.
A consideração dos meninos para com o irmão Wilson só não foi para o vinagre, por que ele comandava a banda e a força tarefa, essas duas funções, devolviam a leveza que a Benzetacil tirava deles.
Na assistência médica, tudo, absolutamente tudo, era tratado com a Benzetacil, quando os irmãos foram embora, ele ficou e continuaram a chamá-lo de irmão...a Benzetacil também ficou.
Em qualquer lugar que tivesse uma turma de internos e se um dissesse:
_. Estou com uma dor, acho que vou à assistência.
Imediatamente, os outros, pressentindo o que iria acontecer, punham a mão na nádega e gritavam:
_Aí.
Um dia eu fui correndo da administração até a assistência, carregava um bilhete na mão, a distância não é muito longa, existe uma subida acentuada ao lado do campo de cima que, mesmo sombreada pelos eucaliptos, cansa.
Fiquei cansado e ofegava, a porta estava aberta e não havia ninguém no banco de espera, bati na porta.
O irmão Wilson apareceu na extremidade oposta e me cumprimentou, fiz sinal com a cabeça e não consegui responder, tinha que tomar fôlego, me encostei na parede.
Ao ver o meu estado, ao invés de vir ao meu encontro, entrou na sala de curativos e saiu de lá com uma seringa e uma ampola, arregalei os olhos.
Ainda sem conseguir falar, fiz sinal negativo com os braços e, ele vinha com a danada em minha direção.
Quando ficou de frente a mim e, eu batia em sua cintura, pois eu tinha 10 anos, ele perguntou:
_Prefere no braço ou na bunda???
_Oi?!?!?
_. No braço ou na bunda, não vá me dar uma de mariquinhas.
E me segurou pelo braço, apavorado me desvencilhei e corri, entrei no corredor e entrei na sala do médico e subi na mesa, ele deixou a seringa na mão esquerda e, com grande habilidade, me imobilizou com a mão direita, sentou na cadeira e me trouxe para o colo, meu calção era daqueles de cordão e, já havia se desamarrado, estava no jeito...
Nesse exato instante eu recuperei o fôlego e gritei:
_. Pare irmão, eu só vim trazer um bilhete do seu Tinoco.
Me soltou, leu o bilhete e sorriu, me pareceu que iria pedir desculpas, não deu tempo, eu já havia me mandado dali.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Um homem honesto



Na infância, quando a personalidade ainda não se formou, a criança precisa de exemplos, alguns adultos serão um exemplo a não ser seguidos, poucos deles, passarão a ser um modelo.
Homens e mulheres de posturas corretas, vão marcar a vida de uma criança e, mais tarde, serão a referência para o adulto que vai nascer.
Já falei sobre o costume dos internos do Educandário Dom Duarte, quando se juntavam em bandos e saíam para a escola.
Ainda que, não saíssem da calçada, passavam vaiando e rindo de vizinhos.
Sobre os vizinhos dos arredores também já falei, acaba que eu virei um, quando adulto.
O seu Alfredo morava na Eiras Garcia, no lado oposto da calçada que os meninos passavam e, quase sempre, estava capinando, limpando ou plantando um terreno baldio, mesmo que fosse tempo frio, não usava a camisa, tinha um chapéu de palha, uma calça social e as botas de Sete léguas.
Mesmo sendo engraçada a figura do seu Alfredo, os meninos não caçoavam, pelo contrário, essa figura passava uma profunda admiração.
Em procissão, os guris, naquele ponto da avenida, deparavam com a figura do seu Alfredo e gritavam:
_Bom dia, seu Alfredo.
Dono de uma simpatia cativante, ele soltava uma das mãos da enxada, segurava a ponta do chapéu e a forçava para baixo, gritava de volta:
_Bom dia meninos.
Fora do terreno, ele passava com um carrinho de mão, onde levava o seu produto para vender, ou em frente ao bar do Brás ou ao lado da portaria do Educa, onde passava logo período conversando com o seu Felipe, o porteiro.
Esse personagem fazia parte da paisagem e, era muito simpático, é claro que os guris lhe retribuíam a simpatia, agora que olhei a foto dele, me lembrou o Papai Noel e, bateu saudades do tempo de infância.
Anos depois, eu, o Celso do 13 e o Zé Almir do 12, estávamos no ponto de ônibus da portaria do Educa, tínhamos que pegar o buzão da CMTC e, esse demorava muito para passar, o seu Alfredo vendia o seu produto e sentado na guia, conversava conosco e ainda nos chamava de meninos.
A certa altura, disse que ia falar com o porteiro, não o seu Felipe, o seu Deoclécio, pediu que fizéssemos a gentileza de tomar conta do carrinho, sem problemas.
Se ele demorou uns 15 minutos, foi o tempo que levamos para vender toda a mercadoria...bom, ele não nos disse o preço e quando lhe entregamos o dinheiro, tomou um susto, havia o exato triplo da quantia que ele receberia, se tivesse vendido tudo.
Não deu para explicar, pois logo chegou o ônibus e embarcamos.
Quando voltamos ela ainda estava lá, e ficou plantado na portaria por uma semana, até devolver todo o dinheiro das pessoas que pagaram a mais.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A piscina do Educandário Dom Duarte.









O anjo da minha rua.


A juventude tem momentos que vão te marcar para a vida toda, alguns rostos serão esquecidos e outros serão eternizados, da dona Havanir eu guardo um rosto bonito e sereno, os olhos verdes que cativavam, já surgiam as primeiras rugas e os fios brancos completavam o quadro de beleza singular.
Essa senhora tinha por hábito, cuidar de quem não tinha recursos, enfermeira de profissão, cuidava dos doentes em suas casas e, vez em quando, fazia um parto, como bem cabe à um anjo.
Já tendo vários filhos seus, também assistia aos meninos que não tinham mãe, mesmo correndo, sempre se tinha um tempo para ouvir os conselhos da dona Havanir e, eram poucos, os adultos que mereciam essa consideração de nossa parte, ela olhava nos olhos, via nossas almas e, sempre vinha um conselho.
Claro que crianças crescem e, trilham caminhos perigosos, a estrada do mal exige que o preço da sobrevivência seja a fúria, a inocência dá lugar ao extinto de sobrevivência, via de regra, o mais forte se sobressai e os anjos são esquecidos, a menos que...
Estranhamente, eu nunca vi a dona Havanir em outro cenário que não fosse a rua Osvaldão e, ainda que ela tivesse a sua família e morasse ali, eu nunca entrei em seu quintal, sempre a via e conversava na rua mesmo.
Estávamos em oito, lá para os lados do Taboão e, nos envolvemos numa briga séria, não vou citar os nomes dos outros sete e, no fim da narrativa, creio que você vai entender o motivo.
Eu tinha dezessete e a fúria estalava, nos vimos em menor número e decidimos ir à casa de um dos integrantes da turma, pegaríamos uma arma e mostraríamos nosso valor a balas, em passos acelerados, partimos pra Osvaldão.
Do asfalto do BNH, atrás das arvores principia uma descida, um grosso tronco deitado servia de ponte, por cima do córrego Bota frias, noite sem lua, aquela parte não era iluminada e tivemos que atravessar a ponte, um de cada vez e ganhamos a rua., com o portão do cemitério à nossa frente, na metade da rua chegamos à tal casa, de posse do canhão iniciamos a volta, todos juntos.
No fim da rua, uns barracos acabavam de ser construídos e havia umas famílias novas ali, quando chegamos nessa parte vimos um vulto branco saindo do portão de madeira.
Estacamos diante do susto e permanecemos a olhar, depois da confusão percebemos que era a dona Havanir em seu uniforme de enfermeira, quem estava com a arma escondeu-a, eu dei um passo atrás e me escondi, em vão, ela veio em nossa direção e, mesmo no breu que estava, reconheceu um por um.
E, então???não éramos mais crianças e aquela senhora nos fazia ter vergonha de fazer coisas erradas, eram duas da madrugada, alguns respingos de sangue no avental dela, denunciavam que ela acabara de trazer mais uma alma ao mundo, devia estar muito cansada e mesmo assim, parou para aconselhar-nos.
Como eu disse, ouvi os conselhos desse anjo mais de mil vezes, esse especificamente, me aturdiu. Ela disse numa voz muito serena e não falou do jeito que era seu costume, estranhamente ela disse:
_Meninos, essa vida não dá camisa a ninguém.
Esse tipo de vocabulário não fazia sentido, dito por uma pessoa da geração dela, muito menos cabia à uma pessoa notadamente religiosa, esse discurso demorou uns vinte minutos, quando ela terminou eu já não tinha mais a convicção de abrir caminhos e me impor pela violência, se despediu e se dirigiu à sua, ficamos acompanhando os passos dela e só retomamos o nosso caminho quando ela entrou em casa, quando chegamos à ponte, as palavras dela ainda reverberavam na minha mente, parei e disse aos amigos:
_. Ô gente, não leva a mal não...meu caminho acabou aqui.
No breu daquela escuridão, ninguém disse nada, o Djalma do 15 veio para o meu lado, os outros atravessaram a ponte e sumiram para os lados do BNH, fizemos o caminho de volta ao Educa e, só de manhã o Djalma falou a respeito:
_. Não dá camisa hein?!?!
Era inverno de 1983, estou completando 52, o Djalma é vivo, mas, não curte redes sociais.
Os outros seis, contando seis meses dessa noite, tiveram mortes violentas.
Eu quero acreditar que a dona Havanir, continua a encantar a vida com seus olhos verdes de anjo.

sábado, 26 de novembro de 2016

Um beijo para crescer


Em Outubro de 1978, eu já havia fechado as matérias e ia pro Luiz Elias Attiê só pra cumprir tabela, havia passado o inverno, mesmo assim as mamoneiras, que acompanhavam o lado oposto da horta do Japonês, ainda amanheciam com uma camada de gelo, na metade do caminho o sol as derretia, esse fenômeno natural fazia com que ficasse a impressão de que elas ferviam, por cima da plantação, pairava uma suave névoa e, se saíamos dos pavilhões encapotados, nesse ponto, o calor nos fazia tirar as blusas e as amarrar na cintura.
A minha turma ia se juntando pelo caminho, na altura do lago do 24 já estava em número suficiente para começar o coral, o repertório era composto de sucessos de Fagner e Zé Ramalho e os meninos cantavam com sotaque rasgado, feito os cantores nordestinos:
..."Quanto tempo temos, antes de voltarem aquelas ondas"...
Fora o fato de ser nerd, eu era invisível e, gostava de sê-lo.
Uma turma grande começou um incêndio no bambuzal do lago, eu estava na tropa, o irmão Augusto disse que estava escondido e vira todos que participaram do incidente, uma turma reunida e, ele foi tirando um a um, dos meninos que estavam, quando chegou perto de mim desviou o olhar e.… eu tive a impressão de que, se esticasse a mão na minha direção, ela me atravessaria. Todos os envolvidos foram severamente punidos e, ninguém se lembrou que eu estive por lá, essa era a vantagem de ser invisível.
O Attiê nada mais era que, uma extensão do Educandário Dom Duarte, de ponta a ponta, os internos dominavam as ações, já tinham a fama de serem bons de bola e passaram, por conta de uns, a ter a fama de pegadores, muitos já namoravam e cresceu, entre as meninas da região, a vontade de ter um interno como namorado.
Mas, isso ocorria com os meninos mais velhos que eu, eu dava sempre o azar de ser o amigo das meninas e, amigos são só amigos, não namoram.
Entre as minhas várias amigas, havia a Valdeci, uma amiga de verdade, com quem eu conversava sobre literatura e mitologia, uma parceira de estudos e muitas risadas.
Quando o nome Valdeci era gritado em sala, ela tinha que engolir o constrangimento de atendê-lo, junto com o Valdeci do 13 e o Valdeci do 17.
Minha amiga tinha quatro irmãos mais velhos, todos iniciados na carreira do crime, não era de todo feia, mas era alta, mais alta que o mais alto dos internos, por isso, recebeu o apelido de girafa, num tempo em que as meninas iam à escola com calças jeans apertadas, ela ia de vestido de chita, daqueles que a barra chega no tornozelo...então, esse conjunto de situações, acrescido pelo nome masculino, faziam da minha amiga, a pessoa que ficaria no fim da lista das pessoas que um guri quisesse namorar e, ela só queria um interno pra chamar de seu.
_E eu, não sou um interno???
_. Ah, você é meu amigo.
Em certo ponto, ela colocou aquilo na cabeça, como se fosse uma prioridade, uma meta mesmo, podia ser o Arthur do 19, o Porfírio do 20, o Xodó do 21 ou o Mancha do 17, desde que fosse interno e popular, ela chegou a dizer que só assim ela poderia passar da fase da adolescência.
_. Fala a verdade Niltão, eu sou feia???
_Claro que não, o que te atrapalha é esse seu nome.
_. Esse era o nome do meu bisavô, minha avó exigiu que eu fosse batizada assim.
_. Está vendo, nem conheço a sua avó e, ela já é a segunda pessoa que eu mais odeio nesse mundo.
_. Quem é a primeira???
_O George Foreman.
E por mais que ela desse entrada, ninguém a olhava, ela era aos olhos dos meninos, tão invisível quanto eu e, não gostava disso.
No último dia de aula, haveria uma festa e iriam levar um som para a sala da oitava série e seria a despedida do ano letivo, como eu disse antes, a discoteque não fazia o meu gênero e então eu não participaria daquele baile, eu disse a ela e ela fez um olhar que me deixou com medo, me fez lembrar do filme "Carrie, a estranha", segurou nos meus braços, com os olhos estalados e a boca bem perto da minha disse:
_. Venha querido, vou te fazer uma surpresa, não vais se arrepender.
Era uma sexta feira, o último dia de aulas, arrumaram uma vitrola com grandes caixas acústicas e deixaram o som bem alto, um globo de espelho jogava luzes coloridas na penumbra, no meio da pista o Xodó dava seus passos tresloucados e dominava a atenção de todos, os meninos e as meninas hipnotizados com a dança e eu esperava meu par, doido para aquilo tudo acabar e eu ir jogar rebatida no campo do 14.
Já estava impaciente, quando olhei pra porta da entrada e avistei a Valdeci, fiquei petrificado, ela estava vestida num colante azul com contas que brilhavam, a saia preta colada ao corpo tinha um rasgo lateral e mostrava-lhe as pernas inteiras, toda maquiada e com os cabelos negros esvoaçando e um gostoso odor de alfazema a seguia, eu estava no fundo da sala, para chegar até onde eu estava, ela veio em passos lentos, à medida que ela passava os meninos paravam de dançar, mesmo os que estavam acompanhados, aqueles que sempre a desprezaram, agora a olhavam com olhar de cobiça, a despeito de todos os olhares ela continuou vindo a mim, me desencostei da parede e perfilei, como um cavalheiro que merece uma dama.
Ninguém mais dançava, aquela menina que ninguém conseguia ver, agora os hipnotizava e, diferente das meninas que ali se encontravam, ela tinha um corpo escultural de uma mulher adulta, já do meu lado e me abraçando ela disse ao meu ouvido:
_. Fecha a boca Niltão, quer um babador???
Eu, que costumo dizer besteiras em horas impróprias, fiquei calado, estava tão surpreso quanto todo mundo que me olhava com inveja.
Mas, mesmo que eu não soubesse o que fazer, eu sempre tive amigos e quem tem amigos não morre pagão, o Gibi foi na vitrola e jogou no ar "The Commodores-Easy" e diante de todos olhares, não me fiz de rogado, encostei o rosto no rosto da amiga e rodei um floreado com ela, a mão direita na face e a esquerda na cintura, ao fim da música ficamos ainda com os rostos colados, como vingança já era suficiente, mas nos deixamos ficar assim.
E, os dois amigos invisíveis se beijaram na boca, um beijo demorado, que marcou a despedida de uma fase de suas vidas.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A amizade


Já contei das amizades, entre os internos e entre os funcionários do Educandário Dom Duarte.
É claro que haviam, ocasionalmente, divergências entre os moradores dos pavilhões e, isso seria muito normal, as pessoas tem por costume, esse habito de defender o seu espaço e seus amigos mais queridos.
O Grêmio era o único fator de união entre todos, internos e funcionários, as 3 categorias formavam a seleção do Educa...dentinho, dente e dentão( infantil, infanto e juvenil).
Nessas duas fotos, que foram feitas pelo Udiney, podemos ver acima o time titular, com a camisa verde, que tinha o escudo da Liga das Senhoras Católicas no peito....observação_Esse escudo foi idealizado pelos funcionários Ditinho da gráfica, Nelson do 22 e Roberto do 17.
Abaixo, está o time reserva com seu uniforme de treinos, nele eu me encontro, juntamente com meus amigos do 14, os inesquecíveis Viana e Feliz.
O time de cima era administrado pelo Ditinho e o reserva pelo Luis Paulo, com o aval do professor Claudinei.
O que eu chamo a sua atenção é, pra o fato da repetição de um jogador específico e vou lembrar de um amigo muito especial chamado Matheus.
Já disse em outra postagem, que foi ele quem indicou o trio do 14 ao professor e, ele era tão especial que, além de treinar com os medalhões, treinava também com o time reserva, nas horas árduas, ele competia com o Luis Paulo em palhaçadas.
E então, na foto de cima ele está fazendo pose de pop star e, na de baixo, eu tento fazer pose de quem quer parecer revoltado e ele me abraça, como se dissesse:
_Calma irmão, a coisa vai melhorar.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

O Jacaré.


Aposto que você pensou que eu ia falar da lenda do jacaré, que habitava as águas do lago da pedreira.
Mas, isso era pura lenda mesmo, por aquelas bandas haviam macacos, cobras, preás e fantasmas, esse réptil foi coisa inventada pelos funcionários da pedreira, não fosse isso, os meninos do Educandário Dom Duarte viveriam pulando no perigoso e assombrado lago.
Jacaré não era um réptil e sim um cachorro...o cachorro.
Se corresse o Educa, iria encontrar vários cães que faziam companhia aos internos, perguntando para os meninos do 12 eles te diriam que o melhor de todos os cachorros do mundo era a pastora alemã Laika, os meninos do 19 diriam que o melhor mesmo era o Peri, a maioria dirá que o Viele era o mais querido de todos.
Criadores e veterinários dizem que, com cuidados extremos, um cão não viverá mais que 14 anos, posto isso, sou obrigado a concordar que o Jacaré foi um fenômeno, esse viveu 17 anos e eu, fui testemunha de seu nascimento e morte.
Em 1977 eu trabalhava na olaria, quando vinha para o trabalho, o seu Luís, que era o encarregado da máquina trazia sempre uma cachorrinha, essa o acompanhava sempre e, é claro que os meninos se divertiam muito em companhia dessa nos intervalos e na hora da saída.
No dia que ela deu cria, eu e o Lucídio fomos à casa do seu Luís e vimos a ninhada, foram sete cachorrinhos, deu nomes a todos e, deles todos, o mais fraquinho, o que menos parecia ter chances de vingar, ele batizou com o nome de Jacaré.
Preocupado com a frágil saúde do pequeno cãozinho, o homem passou a levá-lo para a olaria, sempre enrolado em uma toalha, ficava quietinho ao lado da esteira, o seu Luís de quando em quando, passava os olhos.
Devidos aos extremos cuidados do dono e a torcida dos meninos, o Jacaré vingou, da ninhada toda ele passou a ser o maior, de natureza calma, mas, assustadoramente grande.
Não era desses cães que fazem festa ou vão buscar bola ou graveto, quando via um amigo, se sentava ao lado e ficava perto, e acostumou tanto com a olaria que não foi mais pra casa, os arredores da olaria virou o seu lar, era comum vê-lo sentado ao lado do seu João do forno e, num outro momento, ganhando comida do Carlinhos do artefato de bloco, de noite e nos fins de semana ele vigiava todo o complexo, do barranco do 11 até a estrada da assistência, o estranho ouvia um latido forte, que por si só, já metia medo e, repentinamente, um monstro aparecia na sua frente.
Quando a olaria foi fechada, continuei a passear por aquelas bandas e, quando me via, vinha ter comigo, uma amizade silenciosa.
Depois da morte do seu Luís, o Jacaré continuou a guardar o território, quando íamos pescar ou caçar rás, ele vinha e nos protegia, voltávamos pelo lado da mata, ao lado daquela fera, nada nem ninguém nos metia medo, ia conosco até o pavilhão 14 e, quando a luz do dormitório se apagava, ia embora.
Cumpri o meu tempo de Educa e fui embora do colégio, virei adulto, em 1985 fui trabalhar no Cemitério Israelita, na empresa Uni jardins, minha esposa esperava minha filha.
Assim que cruzei o portão do Israelita, um enorme cachorro veio latindo ao meu encontro, fiquei surpreso, pela primeira vez vi o Jacaré me fazer festa.
_. É Jacaré, eu também estava com saudades.
Um dos funcionários me disse que eu estava enganado, aquele cachorro se chamava Bob.
O encarregado Lindolfo, estranhou que aquele cachorro, que não gostava de ninguém, foi fazer festa para um estranho.
Eu disse que esse cachorro eu conhecia desde filhotinho e que ele pertencia ao finado seu Luis.Ele disse que o cachorro havia aparecido fazia já uns anos, ele simpatizou e ficou cuidando dele.
O Educa havia mudado muito e os antigos moradores já haviam saído de lá, o Jacaré atravessou a avenida e foi viver nova vida, tinha até nome novo.
No tempo que trabalhei ali, o cachorro me acompanhava por todo lado.
A vida é evolução e vivi o que ela havia me reservado, em 1994, quando foi inaugurada a nova sinagoga, voltei para o Israelita, agora eu era vigilante, o Lindolfo já havia morrido e o Jacaré me recebeu de novo, se os outros vigilantes faziam rondas em duplas, eu fazia a ronda da meia-noite sozinho claro, na companhia do meu amigo de infância e, como na infância, nem alma me metia medo.
17 anos ele já havia completado, sentou-se, fechou os olhos e se foi...sem dramas, como sempre foi a sua longa vida.

domingo, 13 de novembro de 2016

A conduta

A conduta
Se diz que, "tudo o que aqui se faz, aqui mesmo se paga", sempre acreditei muito nisso, portanto sempre semeei a paz, na esperança de colher mais tarde.
Não fique o leitor enfadado, pensando que vem por aí uma história de conteúdo espiritual, cheia de mi-mi-mis com fundo religioso, não...só vou contar uma história com dois tempos, para mostrar que a conduta certa tem, no final, suas compensações.
Continuando a estrada do pavilhão 14, cerca de uns 800 metros mais, se chega ao Cenáculo, os mais antigos o chamavam de pavilhão 25 e, eu nunca entendi o motivo disso.
Nesse prédio, viviam as freiras e as noviças que praticavam a caridade e acredito que, ainda hoje o fazem.
Era muito comum, por aqueles tempos, essas amaríssimas mulheres, distribuir cestas de alimentos às pessoas necessitadas e enxovais para os bebês que estavam por chegar e ministravam cursos também, por conta disso, vários moradores dos arredores do Educandário Dom Duarte, aos fins de semana, procuravam o auxílio das freiras do Cenáculo.
Como eu disse, para se chegar à caridade das freiras, fazia-se necessário o uso da estrada do 14, parte dos meninos desse pavilhão achavam que a estrada lhes pertencia.
Bom, a Tereza não era uma menina comum, tinha um quê de beleza sim, no entanto se vestia feito moleque e brigava também, tal e qual um moleque.
O parceiro e fiel escudeiro dela, atendia pela alcunha de Muçum, era escuro feito a amiga e tão boca suja quanto ela, uma pessoa que não reparasse bem, pensaria que se tratava de dois guris.
Quando passavam na estrada, geralmente acompanhados de algum adulto, devolviam os palavrões que os internos lhes impunham e, quando desacompanhados, passavam correndo e provocando, na volta, eles passavam pelo caminho da igreja.
Eu nunca concordei com essa besteira de propriedade e, quando os meninos do 14 programaram uma armadilha, eu disse que não participaria, a minha opinião contava pouco e, foi planejada a vingança.
No sábado combinado, os internos ficaram escondidos no bosque à espera das vítimas, eu fiquei no barranco das uvalhas, bem em frente ao pavilhão, não participaria, mas, teria uma visão privilegiada da contenda, como cabe à todo bom historiador.
Eram mais ou menos duas e meia da tarde, quando a Tereza terminou a subida da jaqueira e apontou na estrada, pude vê-la e ao Muçum, eles vinham com os olhares preocupados, pressentindo mesmo o perigo, dessa vez, porém, eles tinham companhia.
Havia com eles um guri menor, se a dupla tinha uns 12 anos, como era a nossa faixa etária, o guri branquinho e magrinho aparentava uns nove, dez anos, no máximo.
Quando o trio chegou à curva da estrada, na bifurcação que faz divisa com o lar 17, os internos saíram de seus esconderijos e os surpreenderam, alguns tinham torrões nas mãos, outros carregavam paus, contava-se sete contra três, pulei do barranco e fiquei no meio:
_Opa, no pequeno ninguém encosta a mão.
Peguei o guri pela mão e, diante dos olhares de reprovação dos amigos, levei-o para o barranco.
Lá de cima pudemos ver a maior comédia de todos os tempos, a Tereza, dava raquetadas feito gente grande, o Muçum se entregou fácil, mas a Tereza dava socos, pernadas e cabeçadas e, com as punhos fechados à frente da cara, chamava os meninos pro pau.
Quando parecia que a menina já estava cansada, ouve-se um barulho vindo da direção do 12, era um barulho característico de motor de fusquinha 1300, imediatamente os meninos do 14 somem no mato, o menino que estava comigo e, juntamente com os dois que brigavam, aproveitam e saem correndo.
Haviam duas opções, podia ser o carro do irmão Domingo ou o fusquinha do seu Odilon e quando o carro aparece, não era nenhum nem outro, era o padre Eduard, o americano.
Meus amigos não me quiseram mal por conta disso, todavia, eu fiquei uns meses rindo deles, sempre que eu ouvia um desaforo, vindo deles, batia no peito e dizia:
_. Pelo menos, eu não apanhei de menina.
Isso, meus caros, se deu no ano de 1979, pegue o calendário e vire as páginas rápido, só pare quando se passarem três anos, pronto... o ano agora é 1982.
Ainda somos amigos, só não somos mais crianças, não brigamos por conta de estradas.
A Tereza agora é uma mulher linda, dança rock samba com uma habilidade sem igual, as largas ancas, a boca carnuda e o colo avantajado, não lembram nada a aparência quase masculina que ela ostentava no passado e não briga mais para passar, sua formosura lhe garante passe livre em qualquer caminho que ela queira, por ela, os selvagens se atracam, agora é chamada de Tereza Aragão, por conta do sucesso do Jorge Bem.
Quando vi a Tereza num baile, morri de rir dos amigos, mas ela nem se lembrava daquele episódio, para a sorte dos amigos.
A primeira vez que estive na casa da Angela Camargo Victorino, havia acabado de lhe propor namoro, recebi um sonoro NÃO, fiquei meio desanimado, mas não ia me entregar fácil mesmo, do lado de fora da casa dela encontrei um rosto conhecido, o rapaz me disse:
_. Hei, você não é aquele cara que me salvou no Educa???
Relembramos a cena e demos boas risadas, disse que era irmão da Ângela e que me devia muito, um dia iria pagar.
É claro que prontamente eu respondi:
_E para pagar é muito fácil, está vendo a sua irmã???fala bem de mim para ela.
Bom, aquele molequinho virou tio dos meus filhos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O curso de natação


Sem saudosismos, é que, eu já havia escrito uma postagem a respeito e, ela sumiu.
Então, vou reescrevê-la e, não tocarei mais no assunto, pelo menos, farei o possível.
A piscina do Educandário Dom Duarte era o lugar que eu mais gostava de frequentar, depois do campão e do teatro ...e, estranhamente, eles estão desenhados numa linha reta se, se continuar a linha, tem o campo do 15 e a igreja.
Sempre gostei da piscina e, entrava n'água mesmo em dia de frio. Mas, gostava tanto que, na adolescência, me orgulhava de ser um dos ajudantes do Luís Paulo, a vantagem era que, enquanto os outros guris usavam a piscina, cada um no horário do seu pavilhão, o ajudante e o Luís Paulo ficavam dentro dela, o dia todo.
Outra coisa que o Formigão também fazia, era ensinar os guris a nadar, com ele aprendi a salvar pessoas em vias de afogamento e, ao longo da minha vida, devo ter salvado umas 13 pessoas, no mínimo.
Aprender nadar levava um tempo, coisa de uns dois meses, para ter certeza mesmo do aprendizado, uns quatro meses, no entanto, nadar eu não aprendi com o Luís Paulo, foi com o Salvador, um valentão...senta que lá vem história.
Na primeira semana de Educa, eu com a idade de dez anos, tive a honra de conhecer o Salvador, esse tinha uns 15 ou 16 anos, cuja a maior diversão era importunar os meninos menores, o problema comigo é que nunca tive o perfil de uma boa vítima e, sempre dei trabalho aos valentões, devolvia tudo na mesma moeda, quase sempre, com troco desproporcional.
Enquanto os meninos de um pavilhão faziam uso da piscina, os outros aguardavam o seu horário, a arquibancada e os arredores ficavam apinhados de internos que esperavam sua vez.
Esperando na arquibancada, estávamos eu, o Viana e o Feliz, o Salvador passou por nós e fez uma piada ofensiva que se referia a nós, claro que tal piada, se fosse feita por um guri da minha idade, geraria um bate-boca e, consequentemente, uma briga seria a consequência.
Mas, um menino de dez anos jamais briga com um de dezesseis, fisicamente não se pode nem imaginar, então eu fiz a única coisa que um guri que não leva desaforos pode fazer, levantei-me desafiador e respondi:
_. É a vaca da sua mãe.
No mesmo instante da minha frase, deu para ver os olhos do valentão, crispavam de ódio, antes que ele precipitasse a corrida, eu e os parceiros já estávamos correndo, do lado de fora do banheiro da piscina uma trilha estreita antecedia o barranco que leva ao teatro, corremos e ganhamos as arvores que circundavam o lago, em desabalada corrida passamos pelo bambuzal e demos a volta completa no lago, com o Salvador em nosso encalço.
Quando chegamos na frente da piscina, a porta já estava aberta e os guris do 14 já entravam, entramos junto.
O problema é que, o valentão também era do 14 e, é claro, entrou também, fila para o banho de mangueira e o pulo na piscina, eu não sabia nadar, pulei para o lado raso e fiquei ali, a minha esperança era que, pela presença do Luís Paulo ali, o Salvador fosse fazer uma trégua.
Por uns cinco minutos me deixei ficar tranquilo e, me esqueci do ocorrido, num susto, me vi erguido no ar, acima da água.
Do lado de fora da piscina, o Salvador andava comigo levantado pelo calção, cruzou ela toda, subiu na prancha do trampolim e me jogou na parte funda.
De olhos abertos senti que havia chegado nos azulejos do fundo, joguei o corpo para cima, respirei e dei umas braçadas descoordenadas, ajeitei o corpo e passei a bater os pés, feito isso, percebi que já havia chegado na parte rasa, podia pôr os pés no chão, dei meia volta.
Quando me jogou na água, o Salvador pulou também, para garantir que eu não me afogasse, nadou ao meu lado, quando percebeu que eu voltava pro fundo em vigorosas braçadas, saiu pela borda e se sentou abismado, cheguei no lado fundo e subi, alguns meninos, junto com o Luís Paulo, aplaudiam a minha façanha, subi no trampolim e não fiz pose, lá estava o Salvador sentado na borda, pulei justo do lado dele, com as pernas cruzadas, pior que o banho, foi a vergonha que ele passou.
Quatro, no máximo cinco segundos, foi o tempo que durou o meu curso de natação e, nunca mais alguém me viu naquela parte rasa da piscina.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Terra do futebol.


Me causou espanto saber que, haviam internos que não gostavam de futebol, me soou como se eu tivesse lido a história de jeito errado, e ou, visto o que eu queria ver.
Sempre me pareceu que o Educandário Dom Duarte fosse uma ilha com produção monocultural e agora, olhando bem, não era bem assim.
É claro que a maior parte dos internos e funcionários viviam e respiravam futebol, mesmo aqueles que tinham algum impedimento físico, feito o Aparecido do 13, que amarrava os óculos à cara, para praticar o esporte, ou mesmo o Naldinho do 17, que era coxo e, mesmo assim, um grande goleiro.
Quem se destacava dos demais, o fazia por conta do futebol, por exemplo...dos filhos da dona Júlia da lavanderia, o Vicente impressionava a todos, quando mostrava o corpo esculturado e, na barra que ficava ao lado do campo, fazia mais de 500 flexões na ponta dos dedos, o Reinaldo também era muito conhecido, boa praça e ai Jesus das meninas, no entanto, seus nomes sempre vinham seguidos de "o filho da dona Júlia".
O João Carneiro, que também era filho da simpática senhora, por ser craque, tinha a autonomia que a fama confere e, era chamado apenas de João.
Quando o meu amigo Alfredo Ruy Cardoso, me disse que não gostava de futebol, forcei a mente e descobri que, de fato, haviam algumas pessoas que não praticavam o esporte mesmo, sequer desciam ao campão, lembrei de pelo menos uma dezena dessas pessoas e, fui obrigado a mudar a minha opinião, quanto à monocultura.
O Vander do 12, era uma dessas pessoas que não possuíam qualquer impedimento físico pois, ser doido, não é classificado como impedimento físico e, mesmo assim, não gostava da bola.
Bom, a dona Dulce, assim que pisou em terras educandárianas, mostrou-se preocupada com esse fato, foi comandar um pavilhão que todos os moradores, incluindo o seu próprio marido, pensavam, dormiam e sonhavam, falando de futebol.
Isso, à incomodava tanto que, tomou uma atitude radical.
Comprou um vídeo game, retirou a televisão da sala e a levou para a área do fundo do pavilhão e, foi um alvoroço só.
Em 1980, ter um vídeo game, era um luxo para muito poucas pessoas, a dona Dulce elevou os meninos do 14 ao mais alto nível da modernidade e tecnologia, vira e mexe, algum daqueles índios lhe beijava a mão.
Tudo isso, ela fez, para colocar nas cabeças dos meninos algo mais que o futebol e, por um tempo, o campo do 14 ficou às traças.
O jogo era simples, dois jogadores se enfrentavam, o mesmo controle, servia para os dois, um botão para cada, uma bolinha aparecia na tela e, se batia nessa bolinha, quem errasse a batida permitia que a bolinha ultrapassasse o seu canto da tela...muito sofisticado à época.
No campo do 14, o mato crescia e, com 45 meninos para jogar, a fila era enorme, a febre pelo jogo eletrônico crescia.
Bom...o problema da febre é que, se ela não te matar, ela vai passar, enquanto esperavam a sua vez no jogo, passaram a brincar de bobinho no quintal do pavilhão, a espera era tão grande que a brincadeira com a bola fez com que a velha paixão voltasse, alguns não apareciam mais e se deixavam ficar no campo.
Ao cabo de um mês, a dona Dulce recolheu o jogo, achando que haveriam reclamações, não houveram reclamações, alguns meninos nem se lembravam de qualquer referência, de alguma coisa que não fosse o velho e bom futebol.

sábado, 29 de outubro de 2016

O sexteto infernal


Cheguei ao Educa em 17 de Fevereiro de 1977, era uma terça feira, já fui descendo da Kombi e pegando na padiola, nas marmitas veio o almoço ao pavilhão...fígado com batata.
No tempo que faltava pro fim de semana, conheci o pino e a enxada, tinha que viver esse mundo novo e aprender com os que já moravam por ali.
No primeiro sábado, depois da enxada, tive um dia de folga e sentei-me debaixo da araucária, que ficava no bosque, alguns meninos desciam o barranco, sentados na folha da palmeira, me convidaram pra brincadeira e eu me recusei, queria ficar sozinho, queria assimilar esse mundo novo, não estava acostumado com tanto espaço.
Nem bem havia fechado os olhos e ouvi os gritos que vinham da estrada que levava à olaria.
_Ei novão, ei novão.
Eram o Edson Martins, o Viana, o Tequinha, o Ovinho e o Spoc, a turma do quarto dos médios.
_Bóra, vamos ali catar umas mixiricas...
Sem saber onde ficava esse lugar que eles iam buscar frutas, fui com eles, descemos a estrada e ladeamos a horta do japonês, no fim dela dobramos à direita, era uma turma estranha aquela.
O Téquinha, apesar de ter a nossa idade, era um preto alto e brincalhão, o Viana era um preto baixo, desconfiava de tudo e todos, o Edson era daqueles brancos queimados de sol, que quando nervoso gaguejava, o Adilson(Ovinho) era branco, deles todos, o mais simples e o Valter(Spoc) era de cor indefinida, um índio com traços de negros, um mulato com cara de branco.
Enquanto seguíamos a estradinha que ladeava o lago, o Ovinho perguntou pros outros se podia contar, pra mim, alguma coisa.Todos acenaram negativamente e, me passou a sensação de que estavam me aprontando alguma e, já havíamos entrado na mata fechada, resolvi ficar esperto no movimento deles.
Vencida a mata, chegamos ao Bráulio da Silva...um imenso pomar, um paraíso na terra, havia jabuticaba, ameixa amarela, cana e mexericas.
Pulamos a cerca e partimos pra pilha, nos espalhamos e, eu e o Ovinho fomos direto nos pés de mexericas, eu derrubava e ele recolhia.
Pronto, já havíamos enchido as camisas e ouvimos os latidos, dois pastores alemães, os outros quatro já seguiam em carreira, quando o Adilson gritou:
_Era isso, que eu ia dizer.
Com a minha camisa cheia às costas, abri a corrida, o Adilson ficou pra trás e gritava, os outros riam.
Do outro lado da cerca, já livres dos cachorros paramos pra descansar e rir da bermuda rasgada do Ovinho, na volta pra casa caminhamos felizes, essa turma participaria de muitas aventuras mais e, esse foi o ponto de partida.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O All Star importado.



Depois de um tempo, garrei uma raiva tão grande de tênis que, passei a só usar sapatos, os tênis tinham tendência a me dar azar...acabavam me colocando em cada situação que, Deus me livre.
Diferente daquele Tiger que a fofa da dona Djalmira havia me dado de presente, esse eu comprei com o meu suor.
Bom, quem viveu os anos 80 sabe da dificuldade que era, se possuir qualquer artigo fabricado fora do Brasil.
Refrescando a memória de quem viu e explicando aos mais jovens, a nossa nação tinha os portos fechados, os cidadãos dessa terra eram obrigados a engolir todas as porcarias que eram fabricadas aqui, tudo o que vinha de fora, por conta das taxas abusivas, eram quase impossíveis de se obter.
Se esse tênis, nos Estados Unidos, era usado pelos pretos pobres dos guetos, aqui era um luxo para poucos, um luxo que dava status e, por ser um neguinho da moda...claro que eu merecia um desses.
Morando no 22 e trabalhando no almoxarifado da Procuradoria Geral do Estado, juntei exatos quatro meses do meu salário e ainda faltou dinheiro, que remédio, tive que recorrer ao seu Tinoco, que me passou outro sermão, mas me deu o dinheiro.
A coisa funcionava desse jeito, na Faria Lima ou em outro ponto de Pinheiros, havia um cara, que atendia pelo nome de Ananias, ele abria o capô da Variante e exibia seus artigos importados, ou contrabandeados, como se dizia na época.
Essa era uma atividade ilegal, por isso ele vivia mudando de ponto, os seus fregueses sabiam do risco e falavam baixo, a qualquer momento poderiam dar de cara com o Dops, aí o bicho pegava.
Bom depois de dar o dinheiro ao Ananias, tinha-se um prazo de 3 meses de espera, isso era o tempo de ele viajar, comprar o produto e te entregar a mercadoria, se acontecesse algo diferente nesse período...o azar era seu.
Peguei meu but no sábado e depois de calçá-los, o exibi aos amigos do segundo dormitório do pavilhão 22, os amigos comemoraram e ficou de eu os usar no domingo, na matinê da Chic Show.
Pinheiros, rua Paes Leme e coisa e tal e eu de tênis zerinho.
Nesse dia, entramos com a galera de sempre, chegamos juntos eu e o Viana e esperamos o Valdevino, que parou na lanchonete com a namorada dele, dentro do salão o DJ anunciou com orgulho que aquela equipe de som já dava bailes naquele local, para mais de 11 anos e não havia tido nenhuma briga, nesse período todo.
O Tadeu tinha uma namorada que não era muito certinha, fomos ao bar para tomar umas brejas e o Tadeu ficou com ela, o Valdevino também ficou com a mina dele, pudemos ver os dois de longe.
A menina que estava com o Tadeu deu entrada prum carinha de Osasco, o Tadeu não gostou, partiu para o pau, a turma de Osasco enquadrou o Tadeu, o Valdevino foi socorrer e começou a briga de dois internos contra uns vinte...historicamente falando, a primeira treta do salão da Chic Show de Pinheiros.
Nós, o resto da gangue, estávamos a uns 40 metros do epicentro, assim que começou a troca de murros, o resto do povo fechou a roda e, por mais que tentássemos, não conseguimos chegar até eles e, de longe com as luzes piscando, pudemos ver a mais linda luta de todos os tempos, nem o cinema poderia reproduzir essa cena fantástica, o Valdevino bailava e desferia golpes, juntava as mãos em defesa e quando dava um soco, caíam uns 4.
Quando finalmente conseguimos alcançar os amigos, a treta tomou proporções de guerra, por segurança abriram as portas de emergência, lá fora não haviam mais o Butantã contra Osasco, virou mil contra mil e só acabou quando a tropa de cheque dispersou todo mundo, correndo na ponte Eusébio Matoso, enquanto ria, via meu tênis azul ainda limpo.