domingo, 28 de dezembro de 2014

A pichação.

   Entre os anos 79 e 80, havia entre nós uma incontestável insatisfação com a política, mas, eu e meus amigos, éramos crianças... pouco, podíamos fazer.Na estrada que levava ao cenáculo, eu enrolava a linha na lata(com todo o cuidado para não embolá-la), o Viana, com toda propriedade, trazia um pipa que fora aparado pela rabiola, nisso ele era mestre.
 Eu não sabia empinar, nem fazia questão de aprender, gostava de pô-lo no ar e, ficava olhando, vendo os movimentos, pura liberdade, o amigo Viana era o oposto da moeda, tinha habilidade pra confeccionar as mais lindas pipas e os manobrava com tal maestria, que, nunca o vi perder um centímetro de linha, bastava olhar prum adversário e, em questão de minutos, já havia cortado e aparado, costumava dizer que, só as pessoas que ele permitia, tinham direito de empinar no seu espaço aéreo.
  O toca-fitas ficava embaixo de uma arvore, bem na curva da estrada, a voz do Milton cantava "Olho d'água", o Viana gostava da sonoridade das músicas do Clube da Esquina, vendo que eu tinha dificuldades em desenrolar a linha, foi me ajudar.
  _Esses nomes... Todos tem um sentido escondidos, né?
  _É, são pessoas que morreram ou desapareceram na luta.
  E, como eu era o outro lado da moeda, tinha a inteligência, que os meninos não costumam ter nessa idade.
  _Cuidado pra não ter seu nome numa canção dessas.
  Nessa altura, não fazia sentido esconder do amigo, que eu frequentava reuniões clandestinas do partidão, o Miguel e o Satírio eram os acompanhantes nessa luta, o Viana que não ligava pra política, disse que ia me proteger, dizia que tinha uma dívida comigo, já que eu havia conseguido o que a escola julgou impossível... alfabetizá-lo.

Embarcamos nessa aventura, isso era muito mais que roubar frutas do Bráulio ou passear no Taboão da Serra, no lombo dos cavalos e, muito mais perigoso.
  Um dia, meu amigo Rogério (que todos chamavam de Punk) deu-nos, em troca de seis pipas, duas latas de tinta spray, ficamos doidos para usa-las.
  Nessa época, o ônibus da Castro fazia o itinerário da Praça da Bandeira, depois de passar em Pinheiros, pegava a Avenida Brasil e seguia até a Nove de Julho... Na avenida Brasil, perto da igreja da Nossa Senhora do Brasil, haviam umas mansões abandonadas, resolvemos que ia ser ali que deixaríamos a nossa marca, o Satírio e o Miguel roeram a corda, sabiam que por esses lados residiam muitos militares e fomos só eu e o Viana.
  Levamos as latas numa mochila verde, dessas que os recrutas ganhavam no exército e vendiam pros civis, descemos em Pinheiros, na Faria Lima e seguimos a pé, se tivéssemos que ser parados, seria nesse percurso, tinha que ser uma que se visse da avenida, essa tinha uma cerca gigante com pontas de lança, escalamos e nos jogamos pra dentro, enquanto eu me escondia no jardim e via o movimento, o Viana abriu a mochila e tirou as latas, ficou com uma e me deu a outra, ele montou guarda, corri até a parede frontal e escrevi: ABAIXO, corri pro muro e o Viana foi escrever o resto da frase, lá fora, uma pessoa que passava no ônibus gritou, o Viana chegou ao meu lado, preparávamos para pular o muro de volta, quando olhei pra parede... que merda, o neguinho havia escrito DITADORA, corri pra parede, fiz duas riscas cruzadas em diagonal e escrevi a palavra certa, pulamos as lanças de volta e ganhamos a rua, jogamos as latas ao lado de uma árvore, o Viana não quis dispensar a mochila, subimos até a Rebouças e seguimos, antes de chegar na metade do quarteirão, fomos emparelhados por uma Veraneio preta e vermelha:
  _Encostem-se à parede!
  Viramos pra parede e colocamos as mãos na nuca.
  _Quais as idades?
  _Eu tenho 12 e ele tem 13_Disse eu, o Viana estava petrificado de medo.

Mandaram e entramos no camburão, a música do Milton me veio à mente, será que ele faria uma, com o meu nome?
  Ficamos em silencio toda a viajem, o carro parou, mandaram que pulássemos e pulamos pra fora, olhamos e conhecemos o local, era o ponto da FOSECO, na Raposo Tavares, meio caminho do E.D. D, assim que chegamos ao banco do ponto, eles ligaram o carro e foram embora.
  Ficamos em silencio parte da viajem e, do nada, o Viana gritou:
  _Que porra que foi isso?
  Sem saber o que dizer, dei de ombros e disse:
  _Sei lá, nosso anjo da guarda fez hora-extra.
  _Moleque, vou sempre andar com você, você é um filho da mãe mais sortudo do mundo.
  E, ninguém entendeu nada, dois guris rindo com gosto.
  Quatro dias, foi o que durou a pichação na Avenida Brasil, mas, todos os nossos amigos viram.
  Dias depois, quando íamos pro centro, vimos, no muro do cemitério da Consolação a palavra DITADORA riscada e corrigida, caímos na gargalhada. 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Inocência

      No bambual, quase colado à piscina, morava um enorme lagarto teiú, verde, com detalhes amarelos, talvez nem fosse tão grande assim, (crianças de 10 anos tem tendências ao exagero mesmo) sei que a lembrança que tenho dele é d'um enorme e ameaçador, animal pré-histórico.
  Às vezes, ele aparecia na parte da estrada, que subia para o SENAI ou subia por trás do teatro, no barranco do 15 ou subia a estrada do 14, se escondia no milharal ou ia pro bananal do 12, mas ele morava mesmo, no bambual que descia pro campão.
  Eu, o Viana, o Téquinha e o Chumbinho o perseguiam, quando ele aparecia nos limites do nosso pavilhão, corríamos como caçadores, ágeis e silenciosos... Agilidade e silêncio que não bastavam, nunca chegávamos perto dele e, já ia o danado, sumindo entre o mato e o bambu.
Sempre que estávamos na perseguição do bicho, encontrávamos o Cidão, o Valdeci, o Dalcides e o Ronaldo, que moravam no pavilhão 13, que geograficamente, era mais próximo do bambual e, quando a busca se dava nos limites do 12, apareciam o Zé Almir, o Fabiano e o Valdevino, a certa altura, isso virou uma disputa territorial, cada turma queria a honra de capturar o lagarto, para o seu pavilhão, ninguém anunciou, mas estava no ar.
  Um dia, quando nós, do 14, carregávamos a padiola com a comida para o lar, ao lado do SENAI, escutamos gritos, descemos a padiola,
Fomos até o barranco da piscina e vimos os meninos do 13 correndo, não vimos o teiú, mas, sabíamos do que se tratava, poucos instantes depois, a turma do 12 desceu, sem perder tempo, escondemos a padiola nos arbustos e nos lançamos à empreitada.
  É claro que, mais uma vez, o bicho nos deixou a ver navios e desapareceu na vegetação... Nesse dia o pessoal do lar 14 achou estranho, entre o frango com batatas, havia a companhia de formigas catiçeiras, perguntado desse fenômeno gastronômico, dei de ombros e disse:
  _O pessoal da cozinha central vai de mal à pior na maior cara de pau.
No recreio da escola, tínhamos o habito de fazer hora ao redor do lago, uns iam namorar, outros iam jogar bola e outros se sentavam nas sombras gigantes que as árvores proporcionavam, coincidentemente estávamos todos, as três turmas juntas, olhando a mansidão das águas do lago, ouvimos um barulho no mato, ficamos atentos, entre os mourões da cerca, ele saiu, à margem da água, sob os nossos olhares incrédulos, bebeu a água e voltou para o mato.
  Aquilo era muito mais que um desaforo, a revolta nos dominou e foi assim que se firmou o pacto de união, naquele momento a caça passou a ser nossa obsessão, em todos os fins de semana, nos juntávamos na empreitada, em todos os fins de semanas, terminávamos do mesmo modo, de línguas pra fora e mãos abanando, capturar o réptil valia para nós, o que valia, pra os exploradores, a tumba de Cleópatra e, nesse meio tempo, tornamo-nos inseparáveis.
  Domingo, a missa era celebrada no teatro, as enormes portas laterais ficavam abertas, o padre Graciano, sempre com seu sotaque italiano de aldeões, se não fosse o folheto, com o seguimento das etapas, ninguém entenderia nada, quando terminava, o padre Paulo, (que era cearense) vinha com os seus intermináveis discursos sobre a caridade cristã e os procedimentos e convivência no colégio, dali a pouco aquilo terminava, as portas laterais eram fechadas, as luzes se apagavam e a igreja virava cinema, assim, da angustia ao prazer, em poucos minutos.
O alarido ia se abrandando aos poucos, até virar silencio total, os meninos se sentavam na ordem de seus respectivos pavilhões, por ordem de chegada, nós ficamos atrás do 12 e do 13, ainda nos perguntávamos qual seria o filme da vez... Mazzaropi. Charles Chaplin ou Bruce Lee?
  Na tela, já começavam a aparecer os crédito: Bud Spencer and. Terence Hill... Gritos unanimes no salão TRINITY.
  Percebi que algumas pessoas saíam, pela lateral esquerda, entre a parede e as cadeiras, meio apertadas, como se não quisessem ser percebidos, já acostumado com a escuridão, meus olhos puderam perceber que se tratava do Cidão e o Dalcides, poucos segundos depois, veio o Ronaldo, cutuquei o Viana, que cutucou o Chumbinho, que cutucou o Téquinha e saímos também, sem chamar a atenção de ninguém, ao passar pela turma do 12, o Zé Almir percebeu a movimentação suspeita e se levantou também, é claro que o Fabiano e o Valdevino fizeram o mesmo.
O filme já começava lá dentro, cá fora o clima era de suspense, o Cidão correu na direção do fundo do prédio e gritou:
  _Ele correu pra lá.
  Ao lado do teatro, havia um pequeno córrego de alvenaria, feito para conter as que desciam do bananal do 14 em época de chuvas, entramos nele e nada, entramos no bananal e o avistamos bem abaixo do abacateiro, quando percebeu a nossa presença parou, o Zé não correra conosco, ele e os outros do 12, haviam feito a volta e, num circulo, encurralamos o lagarto, à medida que fechávamos, ele virava a cabeça em todas as direções, quando o circulo fora reduzido a uns 2 metro de diâmetros, deu uma corrida, pra seu azar, escolheu o lado errado, foi pra cima do Valdeci, com a habilidade de um goleiro, dobrou os joelhos, esperou que o réptil passasse ao seu lado e se jogou uma mão no pescoço e outra nos quadris, o danado se bateu, o Valdeci se levantou sem impulso e o ergueu ao céu, como se fosse um troféu.
  Pulávamos de alegria e cantávamos a vitória e com muito cuidado, passávamos o bicho de mão em mão, o danado era muito grande e brilhava no pouco sol, que os galhos do abacateiro permitiam passar, seu tamanho dava a extensão exata do meu braço, nem me atrevi a segurá-lo.
  Dava pra ouvir as risadas que vinham do cinema e então nos acalmamos, sentamo-nos em círculo, entre as folhas secas do abacateiro e outras, da mangueira vizinha, o silêncio tomou conta.
  Foi o Viana, quem quebrou o silêncio:
  _E agora?
  Surgiram ideias desencontradas de prender, de criar, de tirar o couro, todas sem fundamentos, todas eram seguidas de prós e contras, até que Fabiano disse que seria melhor que o comêssemos, disse que o gosto lembrava a carne de peixe.
  Paramos nessa ideia, íamos comer, agora mesmo, lá no teatro, as crianças riam.
  O Fabiano seguiu, vamos fazer uma fogueira aqui mesmo e asar o bicho... Primeiro, temos que matar.
  O silêncio que se seguiu, logo após a palavra matar, foi, durante toda a minha vida, o mais pesado.
  O Valdeci, que era o mais velho, devia ter uns 13 anos, ao ouvir a palavra, passou o lagarto para o Viana, o Viana o segurou por uns breves segundos, ao sentir o peso da palavra, tentou se livrar do bicho, ninguém quis ficar com a função, uma tristeza tomou-lhe, com o dedo indicador principiava um carinho, vimos à cena e entendemos o amigo.
E, não éramos grandes caçadores como nos intitulávamos, éramos 11 crianças e como, só às crianças, cabe o dom da vida, nos abaixamos com o Viana, quando ele soltou o lagarto no chão, ele não foi embora, ficou ali uns instantes, depois sumiu na vegetação, quando voltávamos para o teatro, ali onde havia começado a aventura, pudemos ver na folhagem um ninho, nele havia quatro ovos, tivemos todo o cuidado para cobri-lo e fomos assistir ao filme.
  Sempre que sobravam umas frutas eu o Viana, depositávamos no bambual, os caras do 12 e do 13 faziam a mesma coisa.