quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O professor


 
Antes de falar do Max, quero relembrar alguns mestres do grupo do Educa, porque eram corajosos esses, aturar alunos que estavam em classe pra fazer algazarra, não é trabalho fácil.
  Em 1978, havia uma sexta-série terrível, em meus anos de estudo nunca vi uma turma como aquela, eram 32 alunos, 30 internos e dois externos.
  Não vou correr o risco de tentar enumerar todos os alunos, fazendo isso, corro o risco de esquecer algum, porém, se alguém que ler se identificar com os fatos, pode dizer em comentário, que fez parte dessa turma, mas vou lembrar-me da lista de chamada desta sala...
  Havia cinco Joãos... João Pinheiro (do 17), João Rosinha (do 13), João Cavallo (do 19), João de Bunda (do 24) e João Lucena (do 14).

  Entre os meninos, somente dois não eram internos, o Luciano e o Claudio Matão que eram filhos do seu Matos do forno, mas esses, por serem filhos de funcionário, tinham o comportamento igual ao dos internos, portanto, quando a professora Anésia passava um descompostura, eles estavam junto no bolinho.
  Anésia era professora de Educação Artística, daquelas professoras que não tem medo de cara feia, se alguém gritasse ela devolvia na mesma moeda, levava as aulas no cabresto, a grande estatura dela intimidava qualquer aluno mais afoito, não obstante, era de uma ternura sem medida.
  A professora Cristina lecionava Inglês, muito linda mesmo, ensinava fácil e usava sempre uma música pra assimilar a matéria, às vezes, no meio da bagunça, ela parava em sua mesa e fazia um rosto muito triste, a ver a professora desse jeito, a bagunça cessava e ela voltava a sua aula.
  Fala sério, ninguém aguenta uma mulher linda, triste.
  O professor de Matemática era o Nadinho, esse, quando morrer vai pro céu sem escalas... nunca vi um sujeito ter a paciência igual, sempre tinha um aluno que fazia piada de sua careca e ele permanecia calmo e dava aula sorrindo de tudo e, o pior, ensinava mesmo.
  Eram professores que não se vê mais por ai, cujo objetivo maior é o de ensinar.
  Começamos as aulas, na última sala, de quem sai da diretoria e vai ao corredor à esquerda, em dois meses, por conta da bagunça, fomos transferidos para aquela sala que ficava fora da escola, feita de madeira.
  Na época não havia sido construída a cozinha central, todo esse terreno onde agora é a cozinha e o prédio da OZEM, era o milharal do lar 21.
  Sabe-se que, em época de milho seco, é de costume tocar fogo no milharal... alguns meninos aproveitaram o fogo e queimaram a tal sala.
  Alguns alunos alegaram que estavam sendo discriminados, postos numa sala fora da escola.
  Bom, não vou entrar muito nesse assunto pra não fornecer provas contra a minha pessoa... Teve, o diretor Sergio, que voltar a alojar a sexta-série dentro da escola e para que pudesse controlar melhor, realocou-os na primeira sala ao lado direito da diretoria.
  Essa medida não fez muito efeito, posto que, o diretor não punha medo em nenhum aluno.
  Sou sistemático, já à época o era, em qualquer sala que estudo, me sento na segunda cadeira da fileira à esquerda da lousa, se ela estiver ocupada eu negocio até ela me pertencer.
  A coisa estava tão sem saída, que eu já havia me mudado pro fundão, já que ninguém queria estudar, eu é que não seria o único, troquei de lugar com o Augusto e me tornei mais um bagunceiro da sala.
  A dona Aimar lecionava Estudos Sociais, não tinha muita paciência e isso fazia da matéria a menos querida entre os alunos, já tinha certa idade e estava gravida, logo no começo da prenhe, entrou de licença e ficou a sala sem professor... Ótimo, muitas aulas vagas.
  O diretor Sergio se empenhou em procurar um substituto para o cargo, sentados no bambuzal, tendo o lago aos nossos pés, curtíamos nossas folga escolares e especulávamos acerca do novo professor, é claro que a folga já acabaria.
  A solução viria num nome já conhecido, o Maximino era irmão do Domingão, autoridade maior do colégio, isso era o ponto negativo, e como ele já lecionava no Guiomar, fomos lá saber sobre o novo professor.
  Ali, ele tinha a fama de ser o mais querido entre os alunos, disseram-nos que dava gosto as aulas dele e olhe que, lá ele ensinava Matemática. E me desculpe quem gosta, mas, não entra na minha cabeça, achar agradável uma aula de Matemática.
  Outro ponto a favor do Max era o fato de ele ser casado com a mais linda entre as mulheres do Educa, sua esposa era a Lucia, filha do seu João do lar 13.
  Entrou na sala de aula, vestindo um conjunto de blusa e calças jeans, bem despojado pra época, posto que, combinava com o seu cavanhaque e aquelas botas de bico fino, disse boa noite e sorriu com ar de quem está no comando, escreveu o nome na lousa e permaneceu em pé, olhando firmes os rostos dos bagunceiros, a primeira batalha estava ganha.
  Era habito dos meninos da época gostar filmes de artes marciais, bangue-bangue e principalmente de guerra, portanto, em silêncio, esperavam a atitude do professor, conforme as atitudes dele viriam às reações.
  Lá do fundão, observei que ele estava tranquilo, feito alguém que está com uma carta na manga.
  Puxou da mochila de couro, o livro de Estudos Sociais, perguntou em que ponto havíamos parado, perguntou por perguntar, sabia que ninguém responderia, ao acaso, escolheu um ponto e pediu que alguém lesse, assim que alguém lia um paragrafo ele explicava e seguia o texto com outro leitor, ao fim do paragrafo ele explicava, com calma e em palavras fáceis.
  Esse capítulo fazia parte da história da guerra dos emboabas, e esse ponto se chama “O capão da traição”, conforme as coisas se desenvolvem, os meninos vão dando atenção e se envolvendo na narrativa.
  Portugueses e Paulistas numa rivalidade, pra saber a quem pertencia a terra, entram em conflito, toda a sala em silêncio, tentando imaginar a cena, o professor tem os alunos em suas mãos, ninguém fala nada, sentado em cima da mesa ele tem a certeza que todos o ouvem.
  E vai a narrativa, como quem narra um documentário:
  Estão frente a frente, armas em punho, os portugueses na parte mais alta do capão, os valentes paulistas, em menor número e na parte inferior, não se entrega antes morrer a se entregar...
  Os meninos sorriem, entendem a bravura dos seus antepassados, se ajeitam nas cadeiras pra ouvir melhor.
  Nesse instante, o diretor Sergio invade a sala e vê uma cena que jamais imaginaria ver, todos os alunos em sua cadeira e em silêncio, atônito e contrariado não diz nada, o professor sorri tranquilo, o diretor sai coçando a cabeça bate a porta atrás de si.
  Nada, nenhum comentário a respeito da sandice do diretor, todos os olhos ainda estão fixados no professor.
  Os portugueses pedem trégua, se os paulistas abaixarem as armas não será tratado com hostilidades, tudo será perdoado.
  São homens de honra, os paulistas e aceitam a palavra empenhada, depõem as armas...
  No capão existe uma enorme vala, é ali que estão os paulistas, assim que o último paulista entrega a arma, os portugueses abrem fogo.
  Há um descontentamento geral na sala, vaias e indignação por todo lado, um guri mais empolgado grita a plenos pulmões.
 _Portugueses filhos da puta.

  O professor, muito calmo, responde às perguntas que não são poucas, todos querem falar ao mesmo tempo, me levanto do fundão e volto pra minha cadeira.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Rebola Sebastião, rebola.



É um fato que o Sebastião do 14 morreu... Modelou o corpo, pôs peruca, trocou o sexo e nasceu “Lene Summer”, uma mulata que fazia shows e morava do Edifício Copan.

Conheci-o, ainda na Casa de Infância, ambos tínhamos quatro anos, e pra quem acha que a convivência influencia na opção sexual, garanto que não, ele sempre foi assim, um menino com alma de menina e não sofria por conta disso, criança não tem preconceito e as freiras não viam nisso uma falha de caráter, portanto, cresceu assim.
Caçula de uma família que já tinha quatro filhas, o pai com idade avançada e viúvo, resolveu interna-lo num colégio, na esperança que ele virasse homem, do pai, que era palmeirense roxo, herdou o gosto pelo futebol e virou goleiro, mas torcia mesmo pro Santos.
_Por que o Santos, Sebastião?Perguntavam os outros meninos.
_São muito mais lindos, os crioulos da Vila Belmiro.
Jeito de quem não veio ao mundo a passeio, ria com facilidade, em dia de visita, uma de suas irmãs vinha visita-lo com roupas brancas e turbante, como é habito de praticantes da umbanda, ele se aproveitava bem disso, dizia que se o aborrecessem, faria uma mandinga e já era... Crianças criadas no rigor do catolicismo morrem de medo de magia, ninguém ousava discutir com ele.
No último ano neste colégio, tive meu momento de glória, cobrei o pênalti que levou meu time ao título e não vi a bola alcançar as redes, na minha mente ficou o goleiro se esticando no canto, quase rente à trave, quase que ele pega a bola. Na Casa de Infância, haviam 2 grandes goleiros, o outro era o Valdir Lustosa.
Quase chegando o dia da apresentação do nosso show no Educa, a madre Dolores nos mostrou a roupa que usaríamos na ocasião, no alto dos meus nove anos, dono pleno da minha vontade, disse à religiosa:
_Madre, eu respeito e amo a senhora com todo o meu coração, mas, por nada e por ninguém nesse mundo, eu subirei num palco, pra cantar e dançar vestido em meias calças.
Fui enfático, quando terminei de falar, o Gilberto e o Fabiano pularam pro meu lado e,  fizeram deles, as minhas palavras. Ante o olhar triste da freira, o Sebastião olhou-me com o seu olhar de cólera, juntou as mãos nas ancas, bateu o pé direito no chão e com um ar de desprezo, fuzilou:
_Ai Nilton... Como você é grosso.
E garantiu à freira que o show continuaria, fomos substituídos pelo Paulo Régis e o Hélio e assim, deu-se a catástrofe da festa da Liga de 1976.
Quando nos mudamos pro Educa, o Sebastião estava gozando as férias e não chegou conosco na Kombi do Paulo, chegou umas semanas depois, trazido pela irmã.
Quando disseram que havia chegado o “NOVÂO”, fui lá pra, se fosse o caso, defenderia o amigo.
  Logo que ele se despediu da irmã, foi à rouparia, o ajudante da dona Ana era o Téquinha, eu e os outros meninos ficamos perto, quando me viu o Sebastião sorriu, o Téquinha estava com as roupas marcadas com o número, o irônico 124, que ele adotaria dali em diante, entregou-lhe o monte de roupa, o novato agradeceu, saiu rebolando e sorrindo, vendo isso o Téquinha não resistiu e gritou:
_Ei novão, você é viado?
Parou o Sebastião e voltou na direção do ajudante:
_Sou sim, está perguntando por quê? Você também é?
Contrariado, o amigo, vendo que o novato vinha em sua direção, não teve alternativas, a não ser a de correr, os meninos que acabaram de chegar, queriam saber o que havia acontecido, quando souberam, nos acompanharam nas gargalhadas, assim foi o primeiro dia do Sebastião, o esperto que queria fazer a piada, acabou virando a piada.
E então, vem uma coisa contraditória que acontece em internatos, tem graça fazer piadas e galhofas com quem não é homossexual, se xingar um menino de viadinho e ele não é, tem-se no mesmo instante, uma discussão, que pode se levar a uma briga, mas quando o menino é assumidamente, perde-se o clima da dúvida, não tem graça e ninguém fala mais nisso, com o passar do tempo, o Sebastião virou o ajudante da dona Ana, que o tratava com atenção diferenciada, o próprio chefe Odilon sequer brigava com ele, posto que, ele ainda era a babá de seus filhos, sequer pegava na enxada, feito os outros meninos, quase não saía dos arredores do pavilhão.
·... E vai a vida no seu caminhar contínuo e gradual, meninos crescendo igualmente, nas suas diferenças.
Por conta da fama do futebol dos internos, logo que fomos estudar no Attiê, uns meninos da Rua Santa Bárbara, me convidaram a levar um time de internos pra um desafio, valendo Tubaína.
O campo era na verdade um descampado perto da favela do Uirapuru, perto do campo do Palmeirinhas, levantaram duas traves de madeira e, no espaço só cabiam seis de cada lado, cinco na linha e o goleiro.
Topei na hora, chamei o Feliz e o Viana, meus parceiros e fui ao pavilhão 12 pra recrutar o Zé Almir e o Fabiano, o nosso goleiro era o Valdir Lustosa do 24.
Começou assim o time profissional “do Nilton”, o time não era meu de fato, e como não escolhemos um nome pro time, os outros meninos, quando eram interrogados acerca do que iam fazer, respondiam:
  _Vou jogar no time do Nilton.
Profissional, porque jogávamos por Tubaína, nessa brincadeira corremos e jogamos em vários campinhos da região e ganhamos o respeito dos moleques da área, representando os internos.
Um belo dia, me apareceu no 14, uma dupla de guris mal encarados que moravam no Taboão da Serra, queriam marcar um festival num campinho que ficava atrás do Cenáculo, a tomba seria 10 cruzeiros, meu sexto sentido me avisou que tinha coisa errada, chamei o Viana e falei pra ele, como meu melhor amigo, ele sabia que nunca falhava minha intuição, mesmo assim ele fechou com os meninos, aquele neguinho gostava de brigar mesmo.
Tinha que arrumar o dinheiro da tomba, meninos normais pedem dinheiro pros pais, eu não o tinha, a relação mais aproximada que eu tinha de paternidade era com o seu Tinoco.
  Desci na administração e joguei a conversa no seu Tinoco, o velho esperneou, disse poucas e boas, xingou e amaldiçoou, meteu a mão no bolsinho de dentro do colete e jogou 30 cruzeiros na mesa:
_Some daqui, menininho cacete.
No sábado, véspera do jogo soube que o Valdir havia trincado o pulso, bateu o desespero, corremos o Educa todo e não havia um goleiro, sequer um miserável de um goleiro num raio de 300 quilômetros quadrados, resolvi que, ou eu ou o Viana nos revezaríamos no gol, fomos ao 12 e chamamos o Lourival pra completar a linha.
Reunimos a turma na piscina e subimos a ladeira da jaqueira, sem o Valdir estávamos sem confiança, logo num jogo à dinheiro, lamentávamos o azar e eu com a sensação de perigo eminente, com a aproximação do perigo, o Viana esfregava as mãos.
Na estrada, ouvimos alguém cantando no pavilhão 14, olhamos pra saber de onde vinha a música e avistamos o Sebastião varrendo a área de terra batida, tinha uma vassoura feita de galhos de bambu e cantava com euforia:
_Menina, eu sou é homem, menina eu sou é homem...
Não pudemos evitar a gargalhada, pra rir eu fechei os olhos e assim a cena do pênalti me voltou como num filme:
_Ô molecada, o Bastião é goleiro.
Não pararam de rir os guris, depois que falei, riram mais ainda, perguntei então se alguém estava a fim de ser goleiro, cessaram-se os risos, rápida reunião, resolveu-se que, ter um goleiro seria bom, mas a postura do Sebastião iria nos desmoralizar.
Fomos eu e o Viana falar com ele, ele topou na hora, o Viana disse que ele teria que se postar feito homem.

  E, uma prévia aula de masculinidade foi ministrada.
No caminho que levava ao Taboão, passamos no Cenáculo e comemos as bolachas das freiras, com era do nosso costume e fomos procurar o campinho, o Sebastião tentava se postar feito homem e imitava o nosso andar, caminhava uns metros com o andar firme e rebolava outros metros.
O Viana que vinha atrás corrigia lhe a postura:
_Pare de rebolar miserável, pare de rebolar seu viado.
O Sebastião andava feito nós por alguns metros e tornava a rebolar e o Viana tornava a gritar:
_Pare de rebolar moleque. O resto de nós ria todos, com exceção do Viana, sabíamos que ali não haveria conversão.
Chegamos ao campinho, os outros três times já nos esperavam, casamos o dinheiro e fizemos o sorteio, ganhamos os dois jogos e fomos pra final, ganhamos a final nas cobranças de penal, erramos três chutes e o Sebastião defendeu quatro chutes.
Na hora de pegar o dinheiro da tomba, o menino que fez às vezes de mesário disse que não ia dar o dinheiro, enfiou-o no bolso e desafiou quem fosse macho pra tirar o dinheiro de lá, nesse instante os meninos dos três times se emparelharam todos contra nós. Mesmo assim o Viana deu-lhe um safanão e lhe tirou o dinheiro do bolso, ficamos de frente pra eles, além do futebol, tínhamos a coragem dos internos.
Não se deram conta que o Sebastião estava atrás deles, sem aviso deu uma rasteira que caíram três, assentou o pé que usou na rasteira e levantou o outro, esse acertou outros três no rosto, quando fomos perceber o que havia acontecido, havia seis guris no chão e o Sebastião com o dorso abaixado, os braços abertos numa ginga da mais perfeita capoeira, os meninos que caíram e os que ficaram em pé correram.
Ficamos olhando pro goleiro por um tempo, admirados e confusos, quando ele teve certeza que só haviam sobrado nós no campinho, relaxou e disse:
_Ai, esse negócio de ser homem me cansa, vamos embora que quebrei uma unha.
Na volta, a estrada parecia mais longa, fomos em silêncio tentando entender aquilo tudo, perto do parque das Hortênsias o Viana quebrou o silêncio:
_Rebola Sebastião, rebola mesmo.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O grande desafio


Na estrada velha do lar 15, onde Pinheiros antigos cantavam ao vento nas duas margens, meninos que trajavam camisas com cores divergentes se entreolhavam desconfiados, no canto direito, no exato ponto que dividia o território dos dois pavilhões, fora marcada a guerra.
Vestidos com camisas brancas e verdes, os meninos do lar 17 esperavam seu campeão, alguém sem muita perspectiva de crescimento das crianças, na hora da distribuição dos internos, havia juntado todos os nanicos nesse pavilhão e, ainda que fossem da mesma idade dos rivais, eram menores na estatura, mas, eram “marrudos” esses guris e olhavam os maiores com a petulância de meninos grandes.
Vestidos com camisas rubro-negras, os guris do lar 14 tinham por natureza o olhar de quem gosta de brigar, na hora da distribuição dos internos, o critério foi outro, foi racial.9 entre 10, dos meninos que habitavam o 14 eram pretos e sob a tutela de um larista tido como“carrasco”, mantinham-se unidos em qualquer ocasião.
Esse lado do Educa era um vale, acima do ponto que os meninos haviam marcado a guerra, tinha um aclive acentuado, que subia até a igreja, abaixo da estrada o campo do 17, num plano mais baixo, vinha o campo do 15, depois uma depressão maior e um enorme barranco, só então se chegava ao fundo do teatro, era um local ermo, poucas pessoas andavam por lá, ponto certo pra uma guerra.
De frente pra outra, uma turma não conversava com a outra, se olhavam em desafio permanente, num pequeno monte de terra à beira da estrada os meninos de branco se acomodavam, sentados na estrada, os de vermelho esperavam impacientes seu campeão.
Menos de meia hora atrás, as duas turmas haviam se enfrentado no campão pelo campeonato interno, ainda que fossem valentes os meninos do 17, os do 14 eram mais fortes fisicamente e não deu outra, 7 x 0 no placar e, nem se deram ao trabalho de tirar as camisas do confronto, saíram do jogo direto pro local, que já havia sido marcado antes do jogo.
Não se iludiam, os guris do 17 quando foram disputar o jogo de futebol, sabiam da superioridade dos adversários, mas agora seria diferente, o Brito ia lavar a honra dos seus e mostrar com a sua habilidade de mestre, que o 17 era imbatível.
Os guris do 14, sequer comemoraram a goleada no rival, afeitos que eram à uma boa briga e sabendo que seu campeão, o Spoc, que era, reconhecidamente, o melhor na antiga arte, não restaria nada aos meninos vizinhos, que não fosse a obrigação de se curvarem diante do óbvio.
O sol já se avermelhava e caía acima dos pinheiros quando o Brito apareceu no alto da estrada de cima, isso obrigou-nos a usar as mãos para proteger os olhos, descia ele, cercado d’uns quatro guris, tal qual um boxer, com seus assistentes a carrega-lo.
O Brito era meu amigo na escola, daqueles baixinhos desassombrados que não tinham medo de nada, o olhar frio que nos lançou, mostrou que ele não estava ali pra brincar, o Spoc desceu lentamente, vindo detrás do galinheiro do 14, tinha numa das mãos meio abacate cheio de açúcar e na outra uma colher e vinha sorrindo, como era o seu normal, tinha esse apelido maneiro, devido a um defeito na orelha e pra justificar a alcunha, costumava levantar as pestanas e dizer, em som soturno:
_Fascinante.
isso, acreditava ele, o aproximava do imediato da nave espacial “Interprise”.
Quando foi decidido que o Spoc seria o nosso representante na peleja, fui contra, pois achava-o muito brincalhão para o cargo, mas fui voto vencido e ele era o nosso melhor representante afinal.
Enquanto os dois se mediam, alguns meninos limparam o terreno de terra batida, exatamente na divisa dos dois pavilhões, nenhum centímetro a mais pra nenhum dos lados.
Os dois olharam desafiadores e o Brito puxou, da parte traseira do cinto, um enorme saco de pano, abriu a boca do saco e retirou uma bolinha de leite, nem grande nem pequena, branca num tom azulado e com ar de zelo, fixou o olhar carinhoso nela, essa era a matadora.
O Spoc não fez o mesmo mistério, enfiou a mão direita no bolso da bermuda jeans e retirou uma, das muita que tinham lá, não atribuía o mérito à uma bolinha, a habilidade vinha de suas mãos, eram mesmo diferentes os campeões, um era místico, o outro era prático.
Uma risca foi feita com um galho seco no meio da estrada, cada qual jogou a sua bolinha, elas caíram exatamente do lado da outra, ao lado da linha, todos os meninos pularam e foram conferir de perto, alguns se deitaram e encostaram o rosto no chão.
_É, a bolinha verde está mais próxima, gritou um guri do 14 e iniciou um bate-boca com troca de ofensas das duas partes, dedos nos rostos, ameaças de briga e já tinha dois guris se peitando feito galos de briga.
Lá no chão, a bolinha verde estava na frente da de leite por um inacreditável grão de areia, o Brito se conformou e deu a vez pro Spoc.
No triangulo haviam 15 bolinhas, com maestria jogou a bolinha entre o polegar e o médio, a bolinha descreveu um arco e bateu na bolinha da ponta direita, essa sofreu o atrito e jogou mais cinco pra fora, não se deu ao trabalho de recolhê-las, os meninos de vermelho o fizeram, limitou-se a recolher a sua bolinha e como ainda estava na vez, ajoelhou-se e mediu o palmo, acomodou a bolinha entre a unha do polegar e a parte interior do indicador, no desdobrar do polegar soltou a bomba, a primeira bola que sofreu o choque, chocou-se contra as demais e as espalhou, a bolinha usada voltou pro mesmo ponto que havia saído, somente duas bolinha ficaram no triangulo, quando foram recolhidas, só restaram as bolinhas das pontas opostas de onde ele havia começado o jogo.
Já haviam perdido as esperanças, os meninos do 17, toda torcida depositada na retratação e o Brito sequer jogou a matadora...os meninos do 14 riam, pau no campo e pau na bolinha.
Do mesmo lugar o Spoc mirou e acertou uma da bolinhas restantes, queria que a de uma ponta tirasse a da outra e não deu certo, a primeira bolinha triscou mas não o suficiente para arrancá-la da linha, faltava uma única pra decidir o confronto, ria o Spoc, o Brito tinha o olhar perdido, olhos de quem segura o choro.
O riso do Spoc me dava medo, cutuquei o Viana e ele passou as mãos na cabeça, com somente uma bola pra acabar o jogo, o pastel resolveu fazer graça, deu as costas pro triangulo e jogou a bolinha por cima da cabeça, costumava fazer isso o tempo todo, a bolinha subiu e caiu bem na cabeça da outra, do lado contrario.
Ao invés de tirá-la da linha, jogou-a pro meio do triangulo e a sua bolinha ficou pertinho da linha do triangulo, os meninos de branco, que já se preparavam pra ir embora, gritavam agora, o Brito esfregava a matadora entre os dedos e sorria, passamos a xingar o Spoc.
A vez agora estava nas mãos do Brito, um silêncio se fez, deu pra ouvir a algazarra da piscina, restava uma única bolinha no jogo, o Brito beijou a matadora com os olhos fechados, quando abriu soltou-a num repelão com a unha do dedo médio, não buscou a bola do centro, acertou a bolinha do adversário, fim de jogo, os meninos do 17 recolheram todas as bolinhas e carregaram o Brito nos braços.
Ficamos ali uns instantes, remoendo nossa vergonha...a dona Ana chegou-se na quina do pavilhão e gritou:
Nilton, Viana e Spoc...buscar a marmita. 
De castigo, o Spoc teve que ficar na frente da padiola na descida e a atrás na subida, com o caldo do feijão a escorrer nas suas pernas.