quarta-feira, 30 de março de 2016

Mais um dia, mais uma lição.


Sempre fui contestador, quando algo não me parece justo ou está fora do lugar, finco o pé e faço disso um motivo pra brigar, minha natureza de ser, não suporta as coisas sem contestação, meto o pau mesmo.
Poderia colocar isso como uma das minhas virtudes e sair com uma auréola de superior, mas, prefiro as simples palavras da minha filha:
_É pai, você é chato mesmo.
Já fazia tempo que não se dava missa na linda igreja do Educandário Dom Duarte, aquela verdadeira obra de arte neoclássica estava se deteriorando e só servia mesmo como morada de morcegos e longe dos olhos do público, um salão enorme, onde os meninos batiam pino e confeccionavam grampos, duas atividades, que mais tarde seria denunciada como escravidão infantil.
O ano era 1980, disso eu tenho plena certeza, pois foi o ano da morte de John Lennon.
Desde a minha chegada, a missa sempre havia sido dada no teatro, devido ao italiano macarrônico do padre Graciano, quase não se podia perceber a hora de se sentar ou se levantar e a hora do sermão, vinha o padre Paulo ao microfone, entre uma parábola da Bíblia, ele desfiava boçalidades do cotidiano educandáriano, coisas escabrosas, que nos matava de vergonha e rezávamos pro padre Graciano reassumir o comando.
E então, sem mais nem menos, resolveram reativar a velha igreja e, como eu não era mais criança, participei ativamente da reforma, fui ajudante de todo mundo que estava trabalhando lá, tipo: o seu Pimpa, o seu Josué do 15 e o Biriba do bloco.
Havia um clima de expectativa no ar, a primeira missa seria dada na véspera do natal e contaria com a presença do Dom Evaristo Arns. Dois dias antes, estava novinha a igreja e o padre Paulo dava os últimos retoques no altar, umas poucas mesas ainda sobravam e uns meninos batiam pino e, isso tirava o brilho do momento.
De quando em quando, o Zezinho gritava, exigindo eficiência dos meninos, a minha vontade era subir o gás do Zezinho, mas me contentei com o meu esporte predileto da época, aborrecer o padre Paulo.
_E, então Padre, sempre foi assim a santa igreja católica, lutava contra a abolição enquanto mantinha seus adeptos na escravidão.
A cada ataque desses, vinha o padre com a réplica e eu contra-atacava e assim, nossas contendas duravam horas, esse tinha tudo pra ser igual, mas não foi.
_É essa a sua opinião sobre as pessoas da igreja?
É claro que eu confirmei já preparado pra defender meu ponto de vista, muito calmo ele disse:
_Muito bem, se prepare esse natal vais passar comigo.
Foi linda e reestreia da igreja, lá fora ainda choravam a morte do John, a missa de primeira eucaristia dos guris do Educa foi celebrado por Dom Evaristo, um dos comandantes do movimento das Diretas Já.
E era véspera de natal, não fui com os meninos pro 14, o Pepê morava na Avenida 9 de Julho, algum tempo mais tarde, eu iria morar ali, do outro lado da calçada.
Depois da missa de natal, na igreja da Consolação, fomos à casa de uma das beneméritas, um gigantesco casarão na Bela Vista, a senhora detinha o título de baronesa e não pareceu se incomodar com o fato de eu não ter eira e nem beira.
Na hora da distribuição dos presentes, me deu um envelope com um maço de dinheiros, disse que ia me comprar um par de sapatos e soube que eu gostava de encomendá-los sob medida.
Eu estava pra dizer que não estava impressionado, mas como havia sido convidado a passar a noite por lá, achei que seria indelicado.
Fiquei num quarto que tinha um aparelho de som quase do tamanho da parede e paredes à prova de som, com toda a coleção do Dizzy Gillespie, aquilo não era um quarto, era o paraíso na terra.
De manhã, fui chamado, lá pelas 9 horas, a própria baronesa foi me acordar e, pra meu espanto, trajava uma roupa sem luxo, pra falar a verdade, a moça da faxina tinha as roupa mais glamourosas que as dela, me deu uma tesoura de cortar cabelos, disse que sabia que eu era bom no traçado, fiquei sem saber o que fazer, enquanto tomávamos café na enorme mesa, reparei que ela tinha a seu lado uma máquina de cortar cabelos.
Descemos as ruas do Bexiga e todos os moradores a cumprimentavam, velhos e novos, embaixo do viaduto Jacareí nos juntamos a um grupo de pessoas e passamos, mais de 8 horas, a cortar cabelos de moradores de rua.

Depois disso, nunca mais julguei um livro pela capa.

segunda-feira, 28 de março de 2016

E o coadjuvante vira artista principal.


É certo que eu gosto de falar de mim na terceira pessoa e, por um bom tempo, eu fui expectador das proezas dos meus amigos, as amizades da infância são pra sempre.
Não obstante, um dia eu teria que seguir o meu próprio caminho, ser o norte da minha vida.
Logo na primeira semana que desembarquei em terras Educandárianas, veio o Jordão e disse pros guris do 14:
_Estão vendo esse gurizinho, tratem bem dele, esse guri é meu primo.
Lógico que isso não era verdade e, esse favor eu fiquei devendo pro Jordão, que já cuidava de mim, desde a Casa de Infância, isso me deu um respeito que eu jamais conseguiria, me livrou de ter um caminho difícil.
Eu vinha de um colégio de freiras e nunca havia pisado descalço no barro, a adaptação à nova vida foi rápida, mas eu gostava de ser, da turma, o que menos chamava atenção pra si.
Já houveram pessoas que disseram conhecer todos os meus amigos de infância e assim mesmo, não se lembravam de mim.
Não me magoa, era assim que eu gostava de viver, quase invisível e, isso tinha uma vantagem.
Quando o caldo entornava, ninguém sabia que eu estava lá e, sempre escapava das consequências.
No fundo, eu era triste, e esses novos amigos me ensinaram que a alegria está nas coisas mais simples da vida, andando com eles, eu aprendi a ser feliz e, pra aprender, eu tive que ser um observador quase invisível.
Gostava de ficar observando o pessoal do teatro, não por ser fã das artes cênicas e sim pela música, essa turma gostava de peças musicais.
Por não ter idade suficiente, não poderia estar em cena, eu ia assistir na esperança de aprender e ficava ali, sem que os atores me notassem.
Sempre tive facilidade com as letras, um dia entreguei uma pilha de papéis ao Jordão e recomendei:
_Se perguntarem, diga que é de sua autoria.
E assim foi feito, a peça foi ensaiada e o Jordão musicou as parte de poesia, disse pra todos que a autoria era dele.
Eu tinha certeza que, se soubessem, que tinha sido escrita por um guri de 13 anos, jamais encenariam, alguns dos atores tinham o rei na barriga.
Às vésperas da festa da Liga, o Jordão foi me procurar, disse que a peça seria representada no dia e que precisava de uma poesia inédita, pra ler no dia.
Escrevi um poema que falava dos caminhos do Educa, um poema quase parnasiano, dei-o ao amigo, quando eu ia fazer a recomendação, me disse o Jordão:
_Tá bem, vou dizer que os versos são meus.
E, diante da presença das senhoras da Liga, com o teatro lotado, os meninos com suas calças jeans azuis e suas camisas brancas, cada um com o saco de "bode" na mão, a peça foi encenada e até elas aplaudiram com entusiasmo, é claro que eu aplaudi mais que todo mundo.
Depois da palestra do padre Paulo, pra encerrar a festa, veio o Jordão com ar imponente, tomou o microfone e interpretando com fervor, recitou o poema.
O amigo era tão bom que, o poema empolgou a plateia, ficou o Jordão a esperar o termino dos aplausos, uns cinco minutos.
Quando se fez o silêncio, o Jordão falou:
_Senhoras e senhores, tanto a peça como o poema que acabei de recitar não são meus, são de um amigo.
Entre as cadeiras da turma do 14 não havia como me esconder, assim mesmo, eu tentei.
A expectativa se fez no público e o Jordão me procurava na plateia, como não me achou, gritou em alto e bom som:
_O autor é Nilton Victorino Filho.
Ainda abaixado, ouvi a salva de palmas, os meninos do 14 aplaudiam mais que todos, na saída todos me olhavam e cumprimentavam.

Depois desse dia ficou difícil passar pelas pessoas e não ser reconhecido passou duns 50 amigos pra mais de 200 e nunca mais fui invisível.

sábado, 26 de março de 2016

Zabé, o anjo negro.


Como todas as crianças que cresceram no Educandário Dom Duarte, vivi sob as regras duras do cristianismo e o irmão Augusto falava da tal alma branca...
Acostumei ver o Carlos Alberto no seu caminho diário de pegar água na bica ou a esperar em frente ao aprendizado, sereno e sorridente, sempre a cumprimentar a todos, sem discriminação.
Sempre vi o neguinho como um lago de águas tranquilas, como quem vive num plano superior, onde os seres não se matassem entre si, só sorriem, como se o simples fato de sorriem, fosse o bastante pra iluminar e contaminar os outros viventes.
Nunca soube que o Zabé tenha se alterado ou dito uma palavra que ofendesse alguém, somente o sorriso plácido de quem não tem nada e, não tendo nada, tem tudo.
Na parte direita do grupo escolar, restava uma parte de terra, que era usada como área de recreação dos guris da escola, ainda não era cercada e se avizinhava ao Aprendizado, no centro, uma extensão pequena de terra batida.
Cavamos um buraco e marcamos um circulo em volta, uns 12 meninos e suas bolinhas à ganha, alguns carregavam as bolinhas, alguns eram donos das bolinhas, os outros eram meros torcedores ou arranjadores de confusão.
O Spock era o campeão do 14, o Miguel representava o 13, eu era o assistente do Spock e o Avelino vinha com o Miguel, porque bolinha de gude era um patrimônio e, não se sai por ai sem proteção.
Sabe-se que o Spock era debochado, quando fazia a limpa numa vítima, costumava fazer a dançinha da vitória, o Miguel se sentiu humilhado, perdera toda a sua riqueza e aquele esquisito ainda ria dele, partiu pro pau, a missão do carregador era, em caso de briga, entrar pro lado do chefe e eu entrei também na briga, o Avelino fez o mesmo, os outros meninos ficaram a atiçar.
Veio lá do Aprendizado, o Zabé, entrou no meio da briga principal, segurou os dois e sem dizer palavras, deu um sorriso.
Até pode ser, que tenha falado alguma coisa, mas todos aqueles meninos que na época tinham uns 10 anos, de vergonha, saíram, cada um pro seu lado.
E cresci, sempre a ver o amigo em seu caminhar sereno e a cumprimentá-lo em qualquer lugar:
_Arrê Zabé. Como se o sorriso desse anjo completasse o dia.
Anos mais tarde, como se a vida se mostrasse madrasta, gritou o revoltado Viana:
_Nesse mundo não existe uma pessoa que não tenha má índole e desafio a quem me diga o contrário.
Fez-se um silencio a turma não sabia o que dizer, ele se sentia bem em ganhar uma contenda e já abria o riso irônico de vencedor. Muito tranquilo, esperei que ele saboreasse a vitória, ao cabo de uns segundos fuzilei:
_E o que você me diz do Zabé?
A turma toda visualizou o Zabé em suas mentes e se sentiu aliviada, como se o mundo estivesse salvo.
Mas, o Viana não se deixava vencer assim fácil, depois de pensar bem e coçar a cabeleira, disse:

_Desculpa, eu falava de gente de carne e osso, o neguinho Zabé não existe.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Os pavilhões do Educa.


Um dia desses, quando me lembrava de momentos da infância e tentava ver se podia eterniza-los, me toquei de um detalhe.
Nunca vi a entrada do pavilhão 12. Todos sabem que eu morei no 14, os guris do 12 eram nossos vizinhos e, naturalmente, nossos amigos de aventuras.
Em todas as vezes que estive no pavilhão vizinho, foi pela parte do fundo, onde havia uma grande área de terra batida, a cerca viva e as casinhas dos dois pastores alemães, o bananal começava à esquerda de quem chegava e se estendia até quase a piscina, ao lado do milharal do 14.
Bom, talvez apareça alguém que diga:
_Todos os pavilhões são iguais, portanto, todas as frentes são idênticas.
O pior é que não, cada construção tem uma diferença, caprichosamente, nenhum pavilhão é igual, pra falar a verdade, nenhum dos prédios do Educa é igual ao outro, incluindo nisso, a administração, o almoxarifado, a residência e o grupo escolar.
Cheguei à conclusão, na próxima visita à Sampa, vou com uma máquina e vou tirar fotos de todos os prédios, frente e verso.

terça-feira, 15 de março de 2016

O capitão


Se eu fizesse uma pesquisa entre os meus muitos alunos (e, eu já fiz) descobriria que, o que eles mais gostavam em mim, não seria a minha postura ou os ensinamentos.
A grande maioria, diria que a melhor lembrança que guardam de mim é o jeito explosivo e os meus gritos durante os treinos e partidas.
Sempre obtive resultados assim, aliado ao bom conhecimento sobre estratégias, sempre gritei pra mostrar comando.
O que eles não sabem é que, isso foi um personagem que eu criei, na minha vida, raramente grito e meu temperamento está mais próximo de um frade que de um general.
Meu mestre foi o capitão Pazelli que, quando eu era guri, parecia um gigante, quando o encontrei adulto, vi que, se medisse 1,60 cm, era muito, contudo, a postura continuava a mesma, agora ele já era coronel.
Ah... meu caro leitor posso adivinhar-te agora, você acaba de se ajeitar na cadeira e pensar:
_Caramba, lá vem mais uma história de futebol.
Enganou-se redondamente, lá vem uma história de boxe.
O capitão não era desses mestres velhinhos, com enormes barbas e ensinamentos orientais, muito menos, ensinava a nobre arte do pugilismo com a esperança que seus praticantes saíssem pelo mundo espalhando a paz.
Eu e o Celso do 24 tínhamos, entre nós, uma aversão gratuita e isso já vinha de muito tempo, cedo ou tarde, iríamos acertar as nossas diferenças.
A casinha do campão era o local mais apropriado pra a prática do boxe, pouco antes do capitão chegar, iniciamos uma pendenga e ficamos em posição de brigar, nós no meio e o resto dos guris sentados nas amuradas e atiçando a briga, no entanto, vimos o capitão descendo da administração e nos separamos, o capitão fez que não vira.
Ao lado da casinha, formamos filas e, o professor comandou o aquecimento, agachamentos, flexões e polichinelos.
Voltamos à casinha e ele começou uma palestra, a princípio, despretensiosa:
_Sabem por que a União Soviética e os Estados Unidos jamais entraram em guerra entre eles?
A pergunta era retórica, nenhum guri era doido o suficiente pra interromper o capitão, depois do fôlego ele continuava:
_Um tem medo do outro, a terceira guerra mundial jamais se dará, por conta desse fato, o medo é o maior aliado da paz.
Na vida, façam as pessoas te respeitarem, ande sempre de cabeça erguida e, o mais importante, façam seus inimigos terem medo de você, por medo de você, eles jamais o atacarão.
Enquanto abria a caixa com o material do boxe...
_Meninos, o boxe não é um esporte, é uma arte, a arte de dominar os elementos, contrário ao que parece só o mais inteligente ficará em pé. A quem ache que, num confronto desproporcional, o mais forte vencerá, ledo engano, quem assimilar melhor as regras e souber usá-las, vencerá a luta.
Separou dois pares de luvas e simulou uma escolha aleatória, fechou os olhos e, na coincidência, escolheu a mim e o Celso.
Eu era magrinho, o Celso tinha o dobro de corpo e meio palmo a mais no tamanho, calçamos as luvas e ficamos frente a frente, não precisamos simular uma rivalidade, fervilhavam os nossos olhos.
De olhos grudados no Celso, ouvia as instruções do capitão.
_Fechem a guarda, mantenham a distancia com o braço e jebeiem pra furar o bloqueio...
Com os pés fincados no chão e os olhos atentos, jebeei e dei um passo à frente, furei a guarda fiz uma sequencia de jebs no rosto dele e saí.
De trás da minha luva de defesa, pude ver que o olho esquerdo dele havia inchado e lagrimejava, o capitão continuava na instrução:
_Mantenha o adversário no seu raio de ação.
Sem poder me ver direito, o Celso bufava e baixou a guarda, dei um sorriso de escárnio e levantei as luvas, os ouvidos no mestre:
_Nunca deixe o rosto à mostra e mantenha a calma, a pressa é a pior inimiga.
Facilitado pela falta de proteção, joguei mais uma sequencia de jebs no rosto dele, o Celso perdeu a calma e partiu pro confronto, tentou me agarrar, sem distancia de corpo mandei um uper no queixo e ele me largou, quando preparava a mão esquerda pro cruzado final e, seria fulminante a pancada, o capitão segurou a minha mão. O Celso cambaleava e só não caiu no chão, porque o capitão o amparou.
Abraçado ao Celso e segurando a minha luva, o capitão deu a luta por encerrada.
_E, meninos, só assim é que se fala de paz... a paz é o medo da derrota.
E como eu era o seu assistente, fui levar os materiais pra administração, ao invés de nos despedirmos, disse pra eu acompanhá-lo ao bar do Brás, disse que eu ia pagar uma cerveja, disse que não possuía níquel algum, me tranquilizou dizendo que amanhã eu pagaria.
No balcão pediu uma Caracu pra ele e uma Tubaína pra mim, elogiou a minha conduta e disse que eu procurasse tentar ser professor, tinha certeza que eu iria me dar bem na profissão.
Naquela tarde, ficamos, eu e o Celso, jogando pedras no lago na disputa de quem fazia a onda mais perfeita,
A inimizade havia acabado e ficamos amigos.
No dia seguinte, a aula era de atletismo, já veio gritando o capitão:
_Todo mundo na pista, seis volta no campão e é pra já.
Cara, seis voltas no campão era muito pesado, enquanto encaminhávamos pra pista, passamos pelo capitão, a sua figura imponente lembrava uma estátua verde.
_Aliás, o Nilton não vai dar as seis voltas, ele me deve... ele correrá 12 voltas.

sábado, 12 de março de 2016

Velho é o seu passado


A sala do seu Tinoco era um elo perdido, todos os troféus da banda e do futebol estavam lá, ele ainda usava polainas e relógio com corrente, devidamente guardado no bolso interno do colete e, as fotografias mostravam com requinte pessoas que viveram no começo do século.
Quase às portas de um novo século, o velho contador se recusava em admitir as evoluções, pra quase tudo que se mostrava moderno, ele tinha uma maneira de desqualificar, reduzia tudo e rotulava como inútil.
Eu tinha 12 anos e ele, mais de oitenta, se o brilho dos meus olhos mostrava a fascinação pelo conhecimento, os dele se fechavam de tédio, típico de uma pessoa que já viu tudo.
Sempre que eu entrava na sala, ele estava em sua cadeira com os olhos fechados, mantinha as mãos enfiadas nos bolsos do paletó, ao meu cumprimento ele respondia com um grunhir e, sem abrir os olhos, perguntava sobre o meu fim de semana.
Eu lhe servia o chá e contava de conquistas no futebol ou sobre aventuras pelo espaço do Educa, não parecia se impressionar com as minhas narrativas, mas as ouvia até o fim, de quando em quando, parava-me e corrigia o português.
_Ontem assistimos o Massister no cinema, o senhor gosta do Massister?
_O certo é dizer “Assistimos ao filme do Massister”... Não, não gosto de Massister.
_Por que não gosta.
_Vivem eles em idade da antiga Roma, certo?
_Creio que sim.
_Então, por essa época, não se fundiam o metal tão bem assim, é inconcebível que uma espada pesasse menos que 10 quilos.
_Ainda que fosse a pura verdade e a lição me fosse preciosa, tinha que dar o troco.
_Eu sempre rezo, não quero ficar velho e ser como o senhor.
_Muito inteligente?
_Não, chato.
Ao falar isso, era sempre prudente se esquivar, ainda que tivesse a idade muito avançada, muitos meninos foram vítimas do tapão rápido do seu Tinoco.
E. podeis rezar o quanto quiseres, se está em você, você será.
Têm já uns anos, uma série fez muito sucesso na televisão, chamava-se Hércules e, quase todo mundo assistia, eu não.
Minha filha queria saber o motivo e eu disse:
_Na série, os fatos se passam na antiga Grécia, certo?
_Certo, e daí?
_Ora, nessa época, mal se usava o couro, não havia como trabalhá-lo.
_Sim, e daí?
_Como é que pode o herói desfilar por ai com uma bela sandália com tiras?

_Pai, tomara que eu não seja chato feito você, quando for velha.

segunda-feira, 7 de março de 2016

A nossa bandeira


Montar um grupo é fácil, basta juntar umas pessoas que dividem gostos similares por um determinado assunto e pronto, postar umas fotos de pessoas e encher de coraçõezinhos...
Não estamos aqui simplesmente pra isso, nos propusemos a algo mais, falamos de convivência e contamos nossas histórias, histórias de amigos e aprendizados e prestamos homenagem a um espaço especial.
Com boa vontade, todos os personagens das histórias se aproximam de pessoas com quem convivemos, se algum fato não corresponde exatamente ao que se passou com cada um de nós, resta o cenário, e esse é comum a nós todos.
Nosso intento não é atacar um grupo ou instituição, queremos que tudo se faça para que o Educa seja preservada, essa é a nossa bandeira e, se essa preservação está nas mãos da Liga, esse é o nosso alvo.
Queremos que a Liga haja como uma instituição que nasceu para amparar e educar, não nos esquecemos do valor dessa instituição que nasceu pra apoiar a revolução de 30 e viabilizou um sonho chamado "Cidade do Menor", nós admiramos isso de verdade.
A nossa crítica é com relação ao pouco que se fez em anos específicos e, podendo mudar, não o fez.
Apelamos para quem hoje responde pela Liga que se pense na memória, não se trata pura e simplesmente de um loteamento, se trata de um local onde pessoas viveram seus melhores momentos.
É sabido que a maioria das pessoas que compõem essa direção, não faz ideia do quanto nos é querido esse espaço.
Esgotem todas as opções, mas não destruam o Educandário, não foi pra isso que a Liga foi criada.

terça-feira, 1 de março de 2016

Contrariando a estatística


Não acredito que ambiente influencie comportamento, o certo ou errado estão no mundo, portanto, cabe a cada um, a escolha.
O caminho certo estava em todos os ensinamentos do Educa e, isso não foi suficiente pra tirar muitos dos internos do lado errado, até por que, tudo depende do angulo de que se vê.
Buscando o Carlos Augusto, quatro policiais invadiram o pavilhão 14, era uma tarde de domingo e subimos correndo do campo.
Reviraram cada centímetro de cada cômodo, ameaçaram os grandes e os humilharam, queriam saber do Roda, já que ele e o Carlos Augusto eram amigos, nós vimos quando o Roda se escondeu no bananal.
O fato de os nossos amigos serem mal tratados nos indignou, alguns dos pequenos, inclusive eu, olhamos pros policiais de atravessado e começamos a protestar.
Um dos homens olhou-nos e, batendo na mesa da área com força disse:
_Marginais todos vocês não passam de marginais, estão fazendo curso e vão sair pras ruas formados. Se chegar em qualquer cela do presídio e perguntar quem foi interno do EDD, várias mãos vão ser levantadas.
Essas palavras, ditas por um homem que se achava portador da verdade, nos fez recuar e, durante anos ficou na minha cabeça.
Sempre que eu me via em situação de quebrar a fina linha que separa o bem do mal, a voz do policial vinha à mente e me resgatava.
Então, aquele amontoado de besteiras, dito por um fascista me fez mais bem que mal.
Anos mais tarde, eu e o Viana estávamos namorando naquela lage que fica acima da oficina do Arlindo, eu com a Ângela e o Viana com a Lia, já se passavam das 22 horas e voltaríamos pro 22 pela casinha de força.
No outro lado da calçada, um mendigo dormia embrulhado em seus trapos, justo no começo da subida do barranco.
Depois de um bom tempo, pegamos a João de Lorenzo e fomos levar as minas em casa, depois da entrega voltamos juntos.
Como aquele homem nos impedia a passagem, tivemos que acordá-lo pra que ele nos dessa licença:
_Ô moço, acorda.
Quando ele se virou, um cheiro de azedo e suor subiu, pedimos que ele nos dessa licença da passagem.
Ergueu-se um pouco e encostou o dorso no pé do barranco, seus olhos piscavam, procurava a nossa presença e a luz do poste o atingiu em cheio.
Agradecemos e iniciamos a subida, quando já alcançávamos a cerca de arame farpado, ouvimos uma voz conhecida vinda de lá de baixo:
_I, ó os neguinhos!
Assustamo-nos, não poderíamos acreditar no fato.
_Essa é a voz do... vacilou o Viana.
_Roda. Completei eu.
Pulamos juntos de volta e ainda sem acreditar, ficamos de frente com o ex-tuba do 14.
Embriagado e muito louco, jogado na calçada entre trapos, pouco lembrava o odioso Roda dos nossos tempos de infância.
Contou que havia cumprido longa pena, por conta duns caminhos errados que havia pegado na vida.
Percebemos que não era gigante como nós lembrávamos, o Viana me chamou de lado e disse:
_Cara, esse negão era muito ruim com os moleques, vamos subir o gás dele?
A minha reação foi um sorriso, dar bordoadas sempre foi a melhor diversão do meu amigo.
_Não seria justo.
_Como não seria justo?Lembra-se de todos os guris que ele gostava de bater.
Pra dissuadir o amigo de usar a violência o argumento teria que ser bom, parei e me lembrei dos tempos de futebol.
_Neguinho, se não fosse por ele, nem eu nem você teria tido a honra de jogar no Grêmio.
O Viana se lembrou de que o Roda havia me ensinado a chutar a bola e eu repassei o conhecimento pro amigo.
Deixamos o Roda falando sozinho e fomos pro 22, quase na entrada do pavilhão, o amigo se conformou.

_Deixa que a natureza se encarrega de tudo.