domingo, 28 de dezembro de 2014

A pichação.

   Entre os anos 79 e 80, havia entre nós uma incontestável insatisfação com a política, mas, eu e meus amigos, éramos crianças... pouco, podíamos fazer.Na estrada que levava ao cenáculo, eu enrolava a linha na lata(com todo o cuidado para não embolá-la), o Viana, com toda propriedade, trazia um pipa que fora aparado pela rabiola, nisso ele era mestre.
 Eu não sabia empinar, nem fazia questão de aprender, gostava de pô-lo no ar e, ficava olhando, vendo os movimentos, pura liberdade, o amigo Viana era o oposto da moeda, tinha habilidade pra confeccionar as mais lindas pipas e os manobrava com tal maestria, que, nunca o vi perder um centímetro de linha, bastava olhar prum adversário e, em questão de minutos, já havia cortado e aparado, costumava dizer que, só as pessoas que ele permitia, tinham direito de empinar no seu espaço aéreo.
  O toca-fitas ficava embaixo de uma arvore, bem na curva da estrada, a voz do Milton cantava "Olho d'água", o Viana gostava da sonoridade das músicas do Clube da Esquina, vendo que eu tinha dificuldades em desenrolar a linha, foi me ajudar.
  _Esses nomes... Todos tem um sentido escondidos, né?
  _É, são pessoas que morreram ou desapareceram na luta.
  E, como eu era o outro lado da moeda, tinha a inteligência, que os meninos não costumam ter nessa idade.
  _Cuidado pra não ter seu nome numa canção dessas.
  Nessa altura, não fazia sentido esconder do amigo, que eu frequentava reuniões clandestinas do partidão, o Miguel e o Satírio eram os acompanhantes nessa luta, o Viana que não ligava pra política, disse que ia me proteger, dizia que tinha uma dívida comigo, já que eu havia conseguido o que a escola julgou impossível... alfabetizá-lo.

Embarcamos nessa aventura, isso era muito mais que roubar frutas do Bráulio ou passear no Taboão da Serra, no lombo dos cavalos e, muito mais perigoso.
  Um dia, meu amigo Rogério (que todos chamavam de Punk) deu-nos, em troca de seis pipas, duas latas de tinta spray, ficamos doidos para usa-las.
  Nessa época, o ônibus da Castro fazia o itinerário da Praça da Bandeira, depois de passar em Pinheiros, pegava a Avenida Brasil e seguia até a Nove de Julho... Na avenida Brasil, perto da igreja da Nossa Senhora do Brasil, haviam umas mansões abandonadas, resolvemos que ia ser ali que deixaríamos a nossa marca, o Satírio e o Miguel roeram a corda, sabiam que por esses lados residiam muitos militares e fomos só eu e o Viana.
  Levamos as latas numa mochila verde, dessas que os recrutas ganhavam no exército e vendiam pros civis, descemos em Pinheiros, na Faria Lima e seguimos a pé, se tivéssemos que ser parados, seria nesse percurso, tinha que ser uma que se visse da avenida, essa tinha uma cerca gigante com pontas de lança, escalamos e nos jogamos pra dentro, enquanto eu me escondia no jardim e via o movimento, o Viana abriu a mochila e tirou as latas, ficou com uma e me deu a outra, ele montou guarda, corri até a parede frontal e escrevi: ABAIXO, corri pro muro e o Viana foi escrever o resto da frase, lá fora, uma pessoa que passava no ônibus gritou, o Viana chegou ao meu lado, preparávamos para pular o muro de volta, quando olhei pra parede... que merda, o neguinho havia escrito DITADORA, corri pra parede, fiz duas riscas cruzadas em diagonal e escrevi a palavra certa, pulamos as lanças de volta e ganhamos a rua, jogamos as latas ao lado de uma árvore, o Viana não quis dispensar a mochila, subimos até a Rebouças e seguimos, antes de chegar na metade do quarteirão, fomos emparelhados por uma Veraneio preta e vermelha:
  _Encostem-se à parede!
  Viramos pra parede e colocamos as mãos na nuca.
  _Quais as idades?
  _Eu tenho 12 e ele tem 13_Disse eu, o Viana estava petrificado de medo.

Mandaram e entramos no camburão, a música do Milton me veio à mente, será que ele faria uma, com o meu nome?
  Ficamos em silencio toda a viajem, o carro parou, mandaram que pulássemos e pulamos pra fora, olhamos e conhecemos o local, era o ponto da FOSECO, na Raposo Tavares, meio caminho do E.D. D, assim que chegamos ao banco do ponto, eles ligaram o carro e foram embora.
  Ficamos em silencio parte da viajem e, do nada, o Viana gritou:
  _Que porra que foi isso?
  Sem saber o que dizer, dei de ombros e disse:
  _Sei lá, nosso anjo da guarda fez hora-extra.
  _Moleque, vou sempre andar com você, você é um filho da mãe mais sortudo do mundo.
  E, ninguém entendeu nada, dois guris rindo com gosto.
  Quatro dias, foi o que durou a pichação na Avenida Brasil, mas, todos os nossos amigos viram.
  Dias depois, quando íamos pro centro, vimos, no muro do cemitério da Consolação a palavra DITADORA riscada e corrigida, caímos na gargalhada. 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Inocência

      No bambual, quase colado à piscina, morava um enorme lagarto teiú, verde, com detalhes amarelos, talvez nem fosse tão grande assim, (crianças de 10 anos tem tendências ao exagero mesmo) sei que a lembrança que tenho dele é d'um enorme e ameaçador, animal pré-histórico.
  Às vezes, ele aparecia na parte da estrada, que subia para o SENAI ou subia por trás do teatro, no barranco do 15 ou subia a estrada do 14, se escondia no milharal ou ia pro bananal do 12, mas ele morava mesmo, no bambual que descia pro campão.
  Eu, o Viana, o Téquinha e o Chumbinho o perseguiam, quando ele aparecia nos limites do nosso pavilhão, corríamos como caçadores, ágeis e silenciosos... Agilidade e silêncio que não bastavam, nunca chegávamos perto dele e, já ia o danado, sumindo entre o mato e o bambu.
Sempre que estávamos na perseguição do bicho, encontrávamos o Cidão, o Valdeci, o Dalcides e o Ronaldo, que moravam no pavilhão 13, que geograficamente, era mais próximo do bambual e, quando a busca se dava nos limites do 12, apareciam o Zé Almir, o Fabiano e o Valdevino, a certa altura, isso virou uma disputa territorial, cada turma queria a honra de capturar o lagarto, para o seu pavilhão, ninguém anunciou, mas estava no ar.
  Um dia, quando nós, do 14, carregávamos a padiola com a comida para o lar, ao lado do SENAI, escutamos gritos, descemos a padiola,
Fomos até o barranco da piscina e vimos os meninos do 13 correndo, não vimos o teiú, mas, sabíamos do que se tratava, poucos instantes depois, a turma do 12 desceu, sem perder tempo, escondemos a padiola nos arbustos e nos lançamos à empreitada.
  É claro que, mais uma vez, o bicho nos deixou a ver navios e desapareceu na vegetação... Nesse dia o pessoal do lar 14 achou estranho, entre o frango com batatas, havia a companhia de formigas catiçeiras, perguntado desse fenômeno gastronômico, dei de ombros e disse:
  _O pessoal da cozinha central vai de mal à pior na maior cara de pau.
No recreio da escola, tínhamos o habito de fazer hora ao redor do lago, uns iam namorar, outros iam jogar bola e outros se sentavam nas sombras gigantes que as árvores proporcionavam, coincidentemente estávamos todos, as três turmas juntas, olhando a mansidão das águas do lago, ouvimos um barulho no mato, ficamos atentos, entre os mourões da cerca, ele saiu, à margem da água, sob os nossos olhares incrédulos, bebeu a água e voltou para o mato.
  Aquilo era muito mais que um desaforo, a revolta nos dominou e foi assim que se firmou o pacto de união, naquele momento a caça passou a ser nossa obsessão, em todos os fins de semana, nos juntávamos na empreitada, em todos os fins de semanas, terminávamos do mesmo modo, de línguas pra fora e mãos abanando, capturar o réptil valia para nós, o que valia, pra os exploradores, a tumba de Cleópatra e, nesse meio tempo, tornamo-nos inseparáveis.
  Domingo, a missa era celebrada no teatro, as enormes portas laterais ficavam abertas, o padre Graciano, sempre com seu sotaque italiano de aldeões, se não fosse o folheto, com o seguimento das etapas, ninguém entenderia nada, quando terminava, o padre Paulo, (que era cearense) vinha com os seus intermináveis discursos sobre a caridade cristã e os procedimentos e convivência no colégio, dali a pouco aquilo terminava, as portas laterais eram fechadas, as luzes se apagavam e a igreja virava cinema, assim, da angustia ao prazer, em poucos minutos.
O alarido ia se abrandando aos poucos, até virar silencio total, os meninos se sentavam na ordem de seus respectivos pavilhões, por ordem de chegada, nós ficamos atrás do 12 e do 13, ainda nos perguntávamos qual seria o filme da vez... Mazzaropi. Charles Chaplin ou Bruce Lee?
  Na tela, já começavam a aparecer os crédito: Bud Spencer and. Terence Hill... Gritos unanimes no salão TRINITY.
  Percebi que algumas pessoas saíam, pela lateral esquerda, entre a parede e as cadeiras, meio apertadas, como se não quisessem ser percebidos, já acostumado com a escuridão, meus olhos puderam perceber que se tratava do Cidão e o Dalcides, poucos segundos depois, veio o Ronaldo, cutuquei o Viana, que cutucou o Chumbinho, que cutucou o Téquinha e saímos também, sem chamar a atenção de ninguém, ao passar pela turma do 12, o Zé Almir percebeu a movimentação suspeita e se levantou também, é claro que o Fabiano e o Valdevino fizeram o mesmo.
O filme já começava lá dentro, cá fora o clima era de suspense, o Cidão correu na direção do fundo do prédio e gritou:
  _Ele correu pra lá.
  Ao lado do teatro, havia um pequeno córrego de alvenaria, feito para conter as que desciam do bananal do 14 em época de chuvas, entramos nele e nada, entramos no bananal e o avistamos bem abaixo do abacateiro, quando percebeu a nossa presença parou, o Zé não correra conosco, ele e os outros do 12, haviam feito a volta e, num circulo, encurralamos o lagarto, à medida que fechávamos, ele virava a cabeça em todas as direções, quando o circulo fora reduzido a uns 2 metro de diâmetros, deu uma corrida, pra seu azar, escolheu o lado errado, foi pra cima do Valdeci, com a habilidade de um goleiro, dobrou os joelhos, esperou que o réptil passasse ao seu lado e se jogou uma mão no pescoço e outra nos quadris, o danado se bateu, o Valdeci se levantou sem impulso e o ergueu ao céu, como se fosse um troféu.
  Pulávamos de alegria e cantávamos a vitória e com muito cuidado, passávamos o bicho de mão em mão, o danado era muito grande e brilhava no pouco sol, que os galhos do abacateiro permitiam passar, seu tamanho dava a extensão exata do meu braço, nem me atrevi a segurá-lo.
  Dava pra ouvir as risadas que vinham do cinema e então nos acalmamos, sentamo-nos em círculo, entre as folhas secas do abacateiro e outras, da mangueira vizinha, o silêncio tomou conta.
  Foi o Viana, quem quebrou o silêncio:
  _E agora?
  Surgiram ideias desencontradas de prender, de criar, de tirar o couro, todas sem fundamentos, todas eram seguidas de prós e contras, até que Fabiano disse que seria melhor que o comêssemos, disse que o gosto lembrava a carne de peixe.
  Paramos nessa ideia, íamos comer, agora mesmo, lá no teatro, as crianças riam.
  O Fabiano seguiu, vamos fazer uma fogueira aqui mesmo e asar o bicho... Primeiro, temos que matar.
  O silêncio que se seguiu, logo após a palavra matar, foi, durante toda a minha vida, o mais pesado.
  O Valdeci, que era o mais velho, devia ter uns 13 anos, ao ouvir a palavra, passou o lagarto para o Viana, o Viana o segurou por uns breves segundos, ao sentir o peso da palavra, tentou se livrar do bicho, ninguém quis ficar com a função, uma tristeza tomou-lhe, com o dedo indicador principiava um carinho, vimos à cena e entendemos o amigo.
E, não éramos grandes caçadores como nos intitulávamos, éramos 11 crianças e como, só às crianças, cabe o dom da vida, nos abaixamos com o Viana, quando ele soltou o lagarto no chão, ele não foi embora, ficou ali uns instantes, depois sumiu na vegetação, quando voltávamos para o teatro, ali onde havia começado a aventura, pudemos ver na folhagem um ninho, nele havia quatro ovos, tivemos todo o cuidado para cobri-lo e fomos assistir ao filme.
  Sempre que sobravam umas frutas eu o Viana, depositávamos no bambual, os caras do 12 e do 13 faziam a mesma coisa.







 

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A morte de Elis

Em 19 de Janeiro de 1982, soubemos da morte de Elis, logo pela manhã.E não foi a morte de uma artista, foi a morte de uma pessoa próxima, eu tinha 16 anos e tudo que eu sabia de música, era pela voz dela, através dela eu conheci o clube da esquina, o balanço de Tim Maia e a poesia de Belchior. Ouvia uma música, não importava o estilo, e já pensava: _Puts, na voz da Pimentinha, fica legal. Eu e meus amigos do colégio, estudávamos no E.E.P.G Alcides da Costa Vidigal, no ginásio e resolvemos que não iriamos pra aula nesse dia, no dia seguinte fiquei sabendo que os poucos guris que foram pra escola, tiveram que voltar, todos os professores e a diretora, haviam faltado. Alguns dos amigos disseram que iam para o velório, eu não fui, até hoje, sou avesso à funerais, fiquei sozinho, fui andar. Como não ia usar o dinheiro da condução, resolvi tomar um refrigerante. Fui até o bar do Barroso, puxei o banquinho, pedi a Coca e sentei, o Barroso estava com os olhos vermelhos, o homem era um troglodita e eu duvidei que fosse por conta do luto, mas, pra me contrariar, ele já foi falando da morte da Elis e, sem qualquer vergonha, chorou compulsivamente e se retirou pra atras do balcão. Eu estava em silencio e assim permaneci, na mesa atras de mim, haviam 3 senhores, que bebericavam suas cervejas tranquilamente, a esposa do Barroso saiu da cozinha, passou pelo balcão, me acenou com a cabeça e foi ligar o radio. O locutor falava da perda da grande estrela: _Essa gaúcha de Porto Alegre... Vendo que a noticia ia fazer mais infeliz o marido dela, girou o botão e desligou o radio. O mais velho, dos homens da mesa falou: _Gaúcha, veja você, eu sempre achei que ela fosse daqui mesmo.Ela tinha um jeitão daquele povo da Moóca. O homem do meio da mesa, tirou o chapéu: _Jurava que era Mineira. O terceiro não disse nada, tinha os olhos fixos no copo, e o silencio imperou no ambiente, uns minutos mais tarde, pegou o maço de flores, que havia acomodado no colo, levantou-se e disse aos outros: _Vamos lá, prestar nossas homenagens.

sábado, 1 de novembro de 2014

Seu Luis da olaria

Em 1977, eu tinha 11 anos, trabalhava pela manhã na olaria e estudava à tarde.
A olaria do E.D.D era tocada por 6 adultos e umas 8 crianças, o seu Paulo operava o trator, jogava a terra ou argila em 2 enormes tanques, que ficavam num plano alto, onde o Osvaldo e o Turquinho, com suas pás, jogavam-na numa esteira, a esteira levava a terra para a boca da máquina, lá, ela era triturada e prensada em formas que giravam, quando as formas viravam com a boca pra baixo, soltavam o tijolo em sua forma retangular em outra esteira, todos deitados, um do lado do outro, um dos meninos levantava-os em dupla, outro menino recolhia duas duplas de tijolos, essa era a quantia certa para mãos de crianças apanhar, depois colocavam num carrinho, duas fileiras com 24 tijolos em cada carrinho, assim que enchia um carrinho o menino saía para as alas, o menino que estava no lado oposto da esteira, começava a encher o seu carrinho.O carrinho era puxado como uma carroça, não era raro machucar o tornozelo, a áste de ferro, que dava equilíbrio ao carrinho, se não estivesse na altura certa...doía muito. Uma vez na fileira, os tijolos eram acomodados com cuidado, com as mãos eram afastados, coisa de 2 dedos de distancia um do outro, a fileira de baixo pra direita, a de cima pra esquerda e assim ia, até completar 8 fiadas de altura, cada fileira media 25 metros, os tijolos afastados permitiam a passagem do vento e o arranjo de zig-zag, dava equilíbrio.Terminado os tijolos do carrinho, o mesmo era virado, pisava-se no eixo com um pé, com as mãos segurava-se o apoio, o pé que ficava no chão servia para dar o impulso, o carrinho agora era um patinete e o menino virava um corredor.
Haviam mais dois funcionários...o Marcos Aurélio era o chefe, a ele cabia a responsabilidade pela produção e o seu Luis, que era quem cuidava da máquina.O Marcos Aurélio era um antigo interno que não conseguira se virar sozinho no mundão e voltou, pra atazanar as nossas vidas, gostava de bater em crianças e achava que nada fosse lhe acontecer. O seu Luis era mais velho, sua filha estudava na minha sala, usava um chapéu de palha e fumava cigarros com palha de milho, daqueles brancos que quando sorriem ficam vermelhos, se o Turquinho era um corinthiano fanático, o seu Luis era mais tranquilo.Certo dia o seu Luis achou uns ossos no meio da argila, disse que era ossos humanos, 10 minutos depois apareceram uns carros do exercito e a olaria foi lacrada por dias, o pior é que, a argila vinha de dentro do Educandário, não disse nada no pavilhão e passei os 3 dias na casa do seu Luis, já que a sua esposa acabara de dar a luz e eu ficava tomando conta da Luciana, filha mais nova. No dia 9 de Outubro daquele ano, o seu Luis me chamou e disse, em tom calmo: _Eu já dei tanto azar pro Corinthians, vê se você não me decepciona. E tirou do bolso um ingresso da final do campeonato paulista, poucos presentes me trouxeram tanta felicidade, no dia 11, entreguei-lhe um par de chuteiras, as mesmas que eu tirei dos pés do Vaguinho, no fim do jogo. Se o seu Luis era um exemplo de homem pra nós, o Marcos Aurélio era o contrario, essa coisa de corrida de carrinho no horário de serviço o deixava furioso e como ele tinha autorização pra manter a disciplina à qualquer custo, encomendou uma palmatória, no dia que ela chegou, numa caixa especial ele mostrou pros outros funcionários, estava tão feliz que não percebeu que os outros se entreolharam, pra falar a verdade, aquilo foi muito esquisito. É claro que, diante da ameaça de apanhar, as corridas foram suspensas, agora só corríamos quando ele se ausentava. Ele tinha o habito de, depois do lanche, ir ao banheiro, punha o rolo de papel higiênico debaixo do braço e ficava lá, uns 10 minutos, nessa hora eu carregava o meu carrinho, o Gilvan, já com o carrinho cheio, ficou me esperando, quando eu terminei e virei o carrinho pra puxar, ele iniciou a corrida pra sua fileira, corremos parelhos e entramos, cada qual de um lado pra descarregar os tijolos, terminamos ao mesmo tempo, ao mesmo tempo viramos os carrinhos, vencemos a ala de tijolos e chegamos ao longo corredor, tinha uns 25 metros, fiz a curva na frente, mais uns 10 metros e estaria liquidado a fatura, chinelei com vontade, só quando cheguei perto da máquina pude perceber que o Aurélio já estava lá e com a palmatória na mão.Era tarde, eu havia corrido tanto que ficara em cima dele, não dava pra fazer mais nada, preparei-me pra sentir a dor. Ele levantou a palmatória no ar, fechei os olhos e a pancada não veio, abri os olhos e o seu Luis o havia impedido de continuar o movimento, segurou a mão dele.Então, aquele homem que ninguém nunca viu levantar a voz gritou: _Não encoste nos meninos. Depois soltou a mão dele, eu ainda estava no mesmo lugar, o Aurélio levantou a mão mais uma vez, o seu Luis tornou a aparar com a mão direita, com aesquerda deu-lhe um soco(pra falar a verdade, não sei se foi um soco ou um tapa, foi muito rápido) só sei que o Aurélio voou uns 5 metros e caiu em cima da esteira,quando ele levantou deu de cara com o Osvaldo e o Turquinho, cada um com sua pá, plantados à sua frente.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O time de coração

  Em 1979, ultrapassei o teto da tecnologia que um guri de 12 anos, que ganhava 10 cruzeiros por semana, comprei um gravador portátil, era o máximo, podia ouvir as minhas fitas cassete o tempo todo.
  Bom, o tempo todo não, comprar 4 pilhas grandes era muito caro, guardava-as na geladeira, ou enterrava-as, pra que durassem bastante.
  Geralmente, só ouvia as fitas de noite, a validade de pilhas congeladas nunca ultrapassou a barreira das 2 horas.
  Por esse tempo, o Miguel do 13 e o Claudinho do 16 tiveram uma ideia de gênio...gravar as partidas do Grêmio Educandário em fita.
  Nos considerávamos os maiores torcedores do time, gostávamos de assistir o time da escada que sobe pras quadras, isso era a exata medida do meio campo, todo mundo gostava de assistir aos jogos do coreto ou dos barrancos que ladeavam o campão e o nosso lugar ficava no lado oposto, quase na altura do campo.
  O Claudinho era o narrador, o Miguel era repórter de campo e eu era o comentarista, nesses termos gravamos 2 jogos, o Claudinho imitava o Osmar Santos, o Miguel era fã do Vanderlei Nogueira e eu tentava ser preciso feito o Claudio Carsughi e, ao fim da partida, desanimado eu disse :
  _O grande Grêmio já não é mais o mesmo, ainda que não tenha conhecido a derrota, já não é, sequer a sombra do Grêmio de outrora.
  É...foi muito bonito mesmo, depois que o gravador foi desligado, meus amigos me cumprimentaram e, ficamos ali, por um tempo, vendo o campo se esvaziar e as sombras da noite reinar no campo do E,D.D, depois saímos, cada qual pro seu lado, imaginando o fim triste que se anunciava.
  Como todo grande time, o Grêmio tinha dois meias, que eram o coração da agremiação, o Ditinho e Pivete mandavam e desmandavam, devido a uma reformulação forçada, o time perdeu na defesa, isso fazia com que os dois voltassem pra marcar, sem criação o time caía das pernas.
  Durante a semana o seu Luis da olaria, disse que o seu cunhado ia entrar no time e ele era volante, segundo ele, a peça que estava faltando.
  Contei pros amigos e ainda que o seu Luis tivesse dito o nome, eu acabei esquecendo.
  Sábado de sol, 4 horas da tarde, equipe posta, faltava o nome do estreante, corri pro campo à cata do nome do sujeito.
  O time já se aquecia, passei pelo Ditinho (que é o meu pai adotivo) nem olhei pra cara dele, todos sabiam que só se podia falar com ele depois do jogo, em caso de derrota, somente dois dias depois.Entrei no vestiário e pude ver o sujeito, ele estava ali, os olhos vidrados, olhando um ponto imaginário na parede, sem fazer barulho e com muito medo na alma, sai do lugar, pra minha sorte, o Ney estava la fora, com seu sorriso simpático disse que o nome do estreante ele não sabia, mas o apelido era Murundum, anotei no caderno e passei pro Claudinho.
  O Claudinho começou a narração assim:
  _Talvez hoje seja o dia, o dia da reabilitação, o tal do Morumbi...quer dizer Mutumbi, sei lá, o camisa 5 vai fazer o Pivete sorrir, pois todo mundo sabe, quando a coisa está boa o Pivete sorri.
  Com 5 minutos de jogo, já estávamos desanimados, 2 lances do sujeito, 2 furadas monumentais.
  A essa altura, o Claudinho já havia decorado o nome e gritava:
  _O que é isso Murundum ???
  A torcida ameaçava uma vaia, podia-se ouvir apupos isolados, o dono da camisa 5 estava calmo, como se soubesse que a coisa ia virar.
  O meia adversário ganhou uma bola e partiu pra cima, vinha com ela colada no seu pé esquerdo, nossos corações gelaram, partiu em diagonal, passou a linha do meio, o Murundum foi combatê-lo, emparelhou com ele, como um leão faz, antes de atingir a jugular da presa, colou o ombro no ombro dele, tomou-lhe a bola e freou, quando o volante parou, o meia que estava sendo carregado, caiu pra fora do campo.A torcida delirou, o juiz nem teve coragem de marcar falta, daí até o fim do jogo, foi um massacre, tiveram que trocar os 4 jogadores do meio de campo, a cada chegado do nosso volante, a torcida gritava Murundum, o Ditinho fazia arte em campo e o Pivete gritava:
  _Arrê Esmagueira.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O destino

  Conheci a Angela em 1982...
  Não me lembro a data exata, só sei que era aniversário do Cesar, era férias escolares e, pela manhã, eu tinha comprado uns LPs de Black músic...uns The Floaters, Commodores, Bernard Wright e Jimmy Bo Horne...umas coisinhas que combinavam com o meu estilo.
  E estava muito metido mesmo, me convidaram prum baile no Luis Elias Attiê, é claro que fomos, eu o Viana e o Dooley, 3 caras livres de black levantados à custa de laquê, sapatos de 2 cores e pizzas nas barras das calças...SHOW.
  Quando pusemos a cara na sala, onde se dava o baile demos meia volta, o passo foi quase coreografado, não dava pra acreditar que o som que saia da sala era Patrick Dimon... puts, aquilo foi como uma ducha de agua fria, eu vinha com as bolachas debaixo do braço falei:
  _Bóra tomar conta do som.
  Voltamos, chegamos e ordenamos que o guri que passava o som descesse o mais rápido possível, aquilo era serviço de homem, meti a mão na agulha e tirei aquele som mela-cueca, pra principiar a matança, peguei um disco chamado ...And now Funk, nem escolhi a faixa, assim que a música inundou o ambiente os meninos gritaram, o guri que fora demitido foi o primeiro que gritou, pulou pro meio da pista e todos o seguiram, meus dois amigos mandaram os caras que cobravam o ingresso na porta ir passear, cobraram uns ingressos e depois liberaram a entrada.
  Cesar, nosso amigo dos bailes da Chic Show, apareceu e disse que estava dando um baile mais tarde, pra comemorar o seu aniversário, os caras do Educandário Dom Duarte, estavam convidados.
  Depois de encerrar no Attiê, passei no Educa, pra trocar de roupa e arrumar o black, descemos pra Osvaldo Libarino, que na época se chamava Antonio Luis Vieira, onde morava o Cesar, o Biá e o Betão.
  Quando chegamos na casa do Cesar, ele me apresentou a irmã Rosangela, que estava acompanhada de uma amiga, cumprimentei a Rosangela, olhando pra amiga, quando peguei na mão da amiga, segurei com toda a calma do mundo, os 3 beijos foram demorados, senti que ela enrúbreceu, as pessoas à minha volta falavam, eu não ouvia nada, meus olhos procuravam os dela, que fugiam.
  O baile foi na sala, o Cesar controlava o som do quarto dele, reparei que ele tinha a coleção de discos parecida com a minha.
  _Ficou afim da mina, né?!?Xiii, essa é difícil.
  Peguei o disco do Jimmy, mostrei a faixa e pedi que ele jogasse essa, fui pra sala.
  O DJ esperou o instante de acabar o Roque samba, olhei pra moça, quando a música começou, o Djalminha ameaçou seguir na direção da mina, pus a mão no ombro dele, não precisei dizer nada, ele saiu do caminho, dei uns passos e estiquei-lhe a mão direita, ela veio, em passos tímidos, meio com medo, pus uma mão na cintura e a outra no ombro, ao som da música a conduzi.
  E assim foi, esse seleção de lentas durou muito tempo, uma música atras da outra e eu não soltava.
  _E aí...vamos dar um rolê ?!?
  _Não, nem te conheço.
  _Olha pra todo mundo, eu sou o cara mais bonito que você já viu na vida.
  _Claro que não, você é muito metido.
  _Ó eu vou lutar, mas você podia economizar muito tempo de nossas vidas, já que, é o destino.
  _Que destino???Tá maluco???
  _Presta atenção...Nossa primeira filha vai se chamar Stephanie, os outros dois serão a mistura do meu escritor favorito.
  _ Quem é esse escritor???
  _Victor Hugo.
  _Você é maluco.
  3 meses depois, ela aceitou, num baile da Santa Barbara.
  O que é que deu???puts, ela acabou de acordar, me xingou, por estar à essa hora na internet.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Davi e Golias


Tudo o que eu sei de esporte e superação, aprendi no E.D.D, pra falar a verdade mesmo, quando fui pra rua, faltava muito pouco pra aprender.
  No Educa, me acostumei a ver o Davi derrubar o Golias, sempre o time menor que vence o maior, ou o corredor descalço superar o adversário muito bem aparelhado, passei a infância vendo e vivendo essa historia.
  Pra não perder a oportunidade de uma boa lembrança, vai a passagem nossa, num jogo no estádio do Ibirapuera:
  Mais uma vez nos aterrorizamos por ver, do outro lado do campo, os atletas do Cristo-Rei, primeiro pensamos que confundiram as categorias, os caras eram maiores, muito maiores.
  O professor Claudiney dirigiu-se a nós, na maior calma do mundo.
  _Não esquenta não...os caras são grandes, mas a bola é redonda e as traves tem o mesmo tamanho,,,pros dois lados._saiu rindo, como se fosse um mestre chinês.
  Como se aquilo fizesse algum sentido.
  Ainda no primeiro tempo, bati uma falta, joguei a bola na gaveta(nisso eu era bom), o professor, que nesse momento saboreava um sanduba, gritou com a boca cheia:
  _tá vendo aí, ele é grande mas não voa!
  Incentivado por isso, ainda que, não fizesse o menor sentido, fomos pra cima e vencemos o jogo
pelo placar de 7 x 0, ao final do jogo, o goleiro quis conhecer o autor do gol de falta, me cumprimentou e disse:
_ Eu sabia que quando vocês começassem a jogar bola, seríamos massacrados.
  Fiz com os ombros que não tinha entendido e queria saber o porque da afirmação, na maior tranquilidade ele falou:
  _Vocês são do Dom Duarte, vocês são assim.
  E saiu, nesse momento, o resto do time do Cristo-Rei cercava o Pelézinho, o neguinho tinha feito uma partida perfeita, assinou 4 gols, deu duas assistências e sofreu a falta que eu converti.
  Cresci à sombra disso, ou essas coisas me fizeram crescer, sai do colégio e me tornei adulto, mas fiquei por perto, sempre que podia entrava e matava saudades da minha casa.
  Por ser vizinho do colégio, meus filhos passaram a frequentar as aulas no grupo escolar e na Ozem.
  Nessa época eu já havia montado a minha agremiação, metade dos alunos do ginásio jogavam nela, num belo dia, por não ter um professor de Educação Física, a diretora me convidou para montar um time e disputar os jogos escolares.
  Não hesitei, aceitei na mesma hora e com o entusiasmo de quem vai reviver um sonho.
  Mas os tempos eram outros, pude ver nos olhos dos internos, assim que se apresentaram, esses meninos eram falastrões, indisciplinados, mimados e arrogantes.
  Meu sonho se quebrou, com a prancheta na mão, olhei para o grupo, deu vontade de dizer à diretora que havia me arrependido, se não fosse pelos jogadores do Dínamo, que estavam ali também, eu teria feito, pensei que um jogo no comando desse time pudesse completar um ciclo, simbolicamente, eu devia...a mim e aos meus amigos de infância.
  Rezando pra a tortura acabar logo, me apresentei no dia do jogo, enquanto escutava as abobrinhas dos meus jogadores no aquecimento, o ônibus do colégio adversário chegou, dele desceram uns guris escurinhos e tímidos, todos pequenos pra idade, olhei pro céu, que ameaçava escurecer naquele momento e entendi a ironia do destino...Eu não só havia crescido e virado adulto, havia me tornado o Golias, Aléx o meu fiel escudeiro, viu que eu tinha um sorriso de incredulidade no rosto e deu a estocada final, disse que aqueles guris eram alunos do Solano Lopes.Eu sempre fui admirador do trabalho de base da escola do Jd Boa Vista, dei de ombros e chamei meu time, passei as instruções, não ia tombar sem luta.
  Aqueles meninos pequenos deitaram e rolaram em cima do meu time, eu comandava os gigantes e torcia pro Davi, no fim do jogo entreguei a prancheta pra diretora, diante da pergunta se eu ia continuar no comando, fiz um silencio e não mais voltei.
  Como eu disse, não sou santo, me vinguei do Solano Lopes, meses depois, comandando o colégio Palmares.

sábado, 5 de julho de 2014

Em memória do amigo Betão.

  Era o ano de 80, inverno rigoroso, tanto que, me demorei pra decidir se ia ficar no pavilhão ou ia sair com os amigos, pegar um som, posto que, era sábado.
  Quando decidi, fui atrasado, o ponto de encontro era sempre o mesmo, sempre íamos pra rua Osvaldo Libarino, ali, na ponta da favela, juntávamos a turma e andávamos à cata dos bailes, lá moravam o Biá, o Cesar e o Galego. Quando cheguei, pude ver que, ao lado da pick-up Ford do Macalé, que já não andava há muito tempo, havia uma fogueira e 3 meninos se aqueciam nela, eram os dois Djalmas e o Betão.
  Os dois Djalmas eram internos do Educandário Dom Duarte feito eu, o Betão morava com sua família, gostava de uma boa piada e quando começava a rir, dava trabalho pra parar.
  Era daqueles sujeitos da paz, de boas amizades e muitas piadas, pra falar a verdade, já começava a graça na família... sendo filho de Santista e tendo 2 irmãos Corinthianos, a peça torcia pro Palmeiras, ou seja: piada, logo de testa.
  Quando me juntei a eles, era o que ele fazia mesmo, os outros 2 riam compulsivamente, perguntei onde estava a turma, ele disse que alguns tinham ido pra Flamengo, mas lá estava devagar, resolveram conferir o baile da Santa Barbara, perto do final do João XXIII, era assim que funcionava... o pessoal saia no rolê pelo bairro, cada grupo prum lado, depois todos se juntavam no melhor som, a gente podia ficar tranquilo, que dali à poucos, alguém viria dizer qual o melhor rumo.
  Enquanto ouvia as piadas do Betão, aquecia as mãos no calor da fogueira e dava uns goles no copo de vinho seco, que passava de mão em mão (à isso se dava o nome de "fazer a carioca").
  Enquanto ele falava, ajeitava o cabelo, para arredondar o black, os olhos verdes brilhavam no reflexo das chamas, chamá-lo de Betão já era uma piada, ele era menor que o irmão mais novo... o Rogério, a mãe tinha lhe dado o nome do rei Roberto Carlos e, é claro que isso era, sempre motivo de risos.
  Em toda a turma, ele era o único que não tinha diferença com ninguém, quando havia uma discussão entre os amigos, lá estava o Betão pra separar os desafetos.
  Ficamos nessa madorna um bom tempo, repentinamente, ouvimos uma correria, alguns meninos desciam a João de Lourenzo em desespero, foram ao nosso encontro, o Reginaldo ainda arfando perguntou da turma, disse que no meio do baile na Flamengo, o tal do Caveira havia prendido os nossos amigos, queria uma fita que ele não soube explicar.
  Caveira era um sujeito de maus bofes, que se denominava dono do Jardim São Jorge, o Pelézinho (12) e o Coquinho (24) estavam sob o seu controle, disse o Reginaldo (que era primo do Betão), se a turma não corresse, eles iam sofrer.
  Os Djalmas eram pivetes, eram corajosos, mas, pivetes... eu e o Betão nos entreolhamos e foi o Betão quem falou:
  _ É... Niltão, não vai dar pra escapar dessa não.
  Eu não falei nada, meus amigos estavam em perigo e, ainda que, fossemos o time reserva e a probabilidade de a gente tomar uma surra fosse grande... amigo é amigo.
  Enquanto percorríamos o caminho até lá senti a adrenalina explodir, pensava na briga, eu tinha 14 anos e boa estatura, os outros quatro eram baixinhos, tudo bem, eu teria que brigar por mim e pelos outros, e pensar que uma dessas eu estaria dormindo.
  Deu pra saber onde era o lugar certo pela música, tocava Bar Kays, ao nos ver, o DJ puxou a agulha do toca discos e ficou de costas, na defesa do aparelho de som.
  Ganhei a sala, os meus amigos atrás de mim, o Caveira saiu da cozinha, ela media uns 4 dedos a mais que a minha altura, usava óculos escuros, caminhou ao meu encontro, ergui os braços e as mão, em gesto de Angola, ele fez o mesmo, ficamos numa distância de menos de um palmo, um do outro.
  Quando eu ia começar o dialogo, o Caveira deu um pulo pra traz, os outros membros da quadrilha fizeram o mesmo, olhei pra traz e pude entender.
  Já do meu lado, o Betão gritava, com a mão direita enfiada nas calças:
  _Cadê os meus amigos???
  Nunca havia visto o meu amigo daquele jeito, parecia um psicopata, dois dos amigos do Caveira pularam a janela e sumiram na noite, enquanto ele gritava, pigarreava e piscava, até eu fiquei com medo.
 O Pelézinho e o Coquinho saíram de um dos quartos e se postaram na nossa frente, o Betão fez sinal com a cabeça, pra gente sair, ficou ali, olhos fixos nos caras, quando percebeu que já estávamos todos do lado de fora, saiu, ainda de frente pra eles.
  Ganhamos a rua em silencio, ninguém saiu da casa, caminhamos 2 ou 3 quarteirões e o Betão rompeu o silêncio:
  _Niltão, tá na hora de a gente correr.
  _Correr pra que? Você não está com o berro na mão???
  _Quando foi que eu disse isso???
  Aí bateu o pânico, iniciamos a corrida, deu pra escutar alguns tiros, mas já estávamos no nosso território.
  Enquanto corríamos, escutávamos o Betão gargalhar.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O José Almir

  Tem uns amigos que você vai lembrar pro resto da vida, alguns, você se lembra do começo de tudo, quando ainda, nem tinha o que lembrar, o amigo já estava lá, tem aqueles amigos que você simpatizou à primeira vista, e, tem aquelas amizades que começaram com a antipatia gratuita, depois de muita brigas, veio a paz e, aos poucos... a amizade.
  O Zé Almir foi esse última opção, ele era uns 2 anos mais velho que eu, tenho lembranças da gente brigando e da gente correndo juntos, pra não apanhar, na saída do Morumbi.
  Nas muitas aventuras no E.D.D, as turmas dos pavilhões se juntavam, nós, do 14, juntávamos aos caras do 12 e saíamos no rolê, o Zé era do 12, ele era feito eu, sempre relegado ao papel secundário.
  O Zé, era o melhor amigo do Valdevino, e eu, era unha e carne com o Viana, nós 4 colecionávamos gibis...O Valdevino tinha um baú, com centenas de revistas do Téx e mais centenas do Fantasma, o Viana era proprietário de uns 200 exemplares dos Vingadores, entre os Marvel do Zé Almir, haviam uns raros, entre eles, a primeira aparição do Falcão Negro e a minha coleção do Homem Aranha chegava à uns 300.
  Todos eramos fanáticos pelos mineiros do Clube da Esquina e quando nos juntávamos a outros meninos, editávamos a nossa versão do futebol profissional, saíamos pela área do E.D.D e desafiávamos outros times, quem vencesse, levava umas garrafas de Tubaína.
  Por essa época, o capitão Pazzeli montou uma equipe poliesportiva, que alem de jogar o futsal, também praticava o Handebol, o Basquete e as provas olímpicas, tudo isso com apenas 12 atletas, isso fez, com que nós não desapartássemos por nada, ou quase nada.
  Dessa turma, o que primeiro conheceu a glória de se enamorar, foi ele, o Zé...e não foi com qualquer uma, foi a Elzamar, simplesmente a mais bonita da escola.
  10, entre 10 alunos do grupo escolar suspiravam por ela, sua pele trigueira, os cabelos de um negro que brilhava, de tanto escuro, os lábios carnudos, os olhos d'um castanho irreal e, principalmente o andar suave...muitas vezes, no páteo, aquelas rodinhas de amigos que se formam para falar dos mais variados assuntos eram desfeitas,pra ela passar, depois vinha o silêncio, ela passava, jogava no ar o odor de jasmim, truta, era como se o mundo parasse, só quando ela já estava longe, as rodinhas se formavam e o alarido continuava.
  É claro que, passamos a olhar o Zé com a má vontade de quem perde um duelo e passamos a fazer piadas sobre o casal, tachamos o romance de "A bela e a fera".
  Coincidentemente, encenávamos uma peça de Shakespeare,( nem sei qual delas) eu, de mocinho, de meia calça e espada, a mocinha em meus braços, o diretor Sergio mandou e eu beijei a Elzamar, muito mais tempo que a cena pedia, depois que gritaram_CORTA, eu a encostei na parede de cenário e a beijei, como se não houvesse amanhã.
  Nessa hora, eu não lembrei do amigo, do compromisso dela e ela continuou a cena, quando nos soltamos, notei, pelo avermelhado de sua face, que tinha feito besteira, não me pesou a consciência, não mesmo...aquele foi o primeiro beijo da minha vida.
  Instantes depois, coisas de 10 minutos, o Zé me barrou na fila do refeitório, muito revoltado, exigia uma explicação, pra tamanha canalhice, eu não queria brigar, disse que exageraram a coisa toda, foi somente duas pessoas interpretando um beijo, só um beijo técnico.
  _Como o amigo pode acreditar que, não lhe tenho a consideração????
 
O capitão Pazelli não era muito alto, era um militar que gostava de mostrar a sua autoridade, gritava o tempo todo, estando certo...ele grita.Estando errado..ele gritava:
  _Democracia???estou cagando e andando pra essa tal de democracia.
  Um dia, pedi um aparte e disse, que se fosse possível, ele parasse de me chamar de Niltinho.
  _Olha aqui, pivete, até a hora que você merecer, vai ser chamado no diminutivo e, aproveitando que você está ousado hoje, cai no chão e paga 50 flexôes.
  E, ainda que fosse assim, tão autoritário e arrogante, era o professor mais querido que já tivemos.Pra falar a verdade, foi nele que eu me inspirei, quando me tornei professor.
  Em 1981, fomos disputar uma Olimpíadas entre algumas escolas estaduais, no município de Ribeirão Pires, como eu disse, nosso plantel era composto dos melhores atletas do E.D.D e mais eu, que só fazia parte da equipe, por ser um excelente auxilar técnico, de quebra, fazia o salto em distancia, corria os 400 metros, pegava no gol no handebol e entrava na quadra pra bater as faltas e os penaltes no futsal(entrava, fazia os gols e voltava pro banco) com 12 anos eu já estava fazendo estágio, na minha profissão futura.
  Quando descemos na escola, o professor declarou que queria bater o recorde do ano anterior, que tinha sido de 19 medalhas.
  No handebol e no Basquete foi tirar doce de criança, no futsal levamos a de ouro, mas foi tão dura a disputa, que a maioria dos atletas mal tinham folego pra disputar as provas individuais.
  No salto em distancia, apareceu um guri que media o dobro da minha altura e, ao invés de espinhas na cara, tinha barba, o pior salto dele foi a minha melhor marca, e isso me rendeu a prata, mas peguei o ouro nos 400.Os meninos, que tinham dado tudo no futsal, sentiam as dores, o Valdevino, que fazia 100 em 10 segundos, levou a medalha de ouro, mas acabou com um estiramento dos nervos, nessa altura, havíamos arrecadado 18 medalhas, parecia que o sonho do capitão havia ido pro brejo.
  Anunciaram no auto-falante, a última prova, 800 metros rasos, num dia feliz, essa prova seria dividida pelo Zé Almir e o Valdevino, seriam duas medalhas certas, enquanto o professor pediu tempo pros organizadores e foi falar em particular com eles e os outros professores, olhei pros nossos atletas, o Valdevino jazia na arquibancada, sem qualquer condição física,  o Zé estava em pé, mas, os 200 metros o havia deixado sem folego nenhum.
  Depois de um tempo, voltou o capitão Pazelli a sorrir, me chamou de canto e disse:
  _O Valdevino está fora, você está substituindo ele.
  _Professor...
  _Você vai ser o coelho, fica emparelhado com todo mundo, na marca dos 400, dispara em velocidade, isso vai forçar todos, você pára e o Zé ganha a corrida.
  _Professor...
  _Isso é uma ordem.
  _Professssor...
  Pôs a mão direita em meu ombro e segredou:
  _O Zé está só o pó da rabiola, você vai ter que, quando disparar, dizer alguma coisa, que faça ela esquecer a dor.
  _Professor...
  _Sua missão...NILTINHO.
  Eu já estava me aquecendo na linha, o Zé chegou na raia dele, se arrastava, mais parecia um corpo sem alma, fiquei pensando o que faria o morto ressuscitar.
  O tiro ecoou, partimos, nos 800 não existe arrancada, nesse instante percebi que todos estavam exaustos, não só o Zé, o ritmo da corrida era muito mais lento que se podia imaginar, avançamos 100, velocidade mínima, 200 e 300, ouvimos o retardatário cair, alguém chegou no seu último esforço e tombou, eramos apenas 7, me preparei pro sprint, os 400 já chegavam, olhei pro lado esquerdo, a careta de dor do Zé, me dizia que ele ia se entregar, a marca se aproximava, chamei o Zé :
  _Zé...a boca dela é muito macia.
  _Que é, moleque ???
  Pisei na marco dos 400, disparei e gritei:
  _A boca da Elzamar, seu trouxa.
  No meio daqueles guris de pernas longas eu acelerava, como se fosse um fundista, nos 600, quando eu ia parar, ouvi a voz do Zé:
  _Filho da puta.Ele não tinha intenção nenhuma de me ultrapassar, acelerei, tinha medo que ele me derrubasse naquela pista cheia de pedrinhas, na velocidade que eu ia, a coisa ia ficar feia.
  700 e o Zé no meu encalço, dava pra ouvir ele bufando nas minhas costas, o pior é que ele gritava palavrões, acelerei mais ainda.
  Ninguém entendeu nada, quando pisei na marca de chegada, continuei a corrida, até o estacionamento e o Zé atras, subi numa arvore, o professor chegou e explicou que era tudo mentira, tudo fazia parte do seu plano, quando desci da arvore, o capitão me levantou e me jogou nos ombros, rumo ao pódio.
  _Vamos lá NILTÃO, buscar nossas medalhas.

quinta-feira, 27 de março de 2014

O dia da caça...

 
Meu numero de inscrição era 152, até hoje esse é o meu numero de sorte, em todas as minhas roupas havia uma etiqueta com essa centena carimbado.Havia um vocabulário próprio, uma espécie de dialeto particular: quando se escondia algo, era "enrustir", vigiar era "manjar cana"e, verbos e adjetivos que só se usava dentro do E.D.D, era como se fosse uma ilha independente, uma colonia com seus costumes e regras.
  E eu não podia deixar de dizer a maior de todas, sempre que alguém dizia algo que pudesse ser interpretado mal ou tivesse duplo sentido, todos diziam:_ NÓ, isso era uma abreviação de Nossa senhora e servia pra determinar que uma besteira foi dita, portanto era proibido dizer algo que pudesse ser mal interpretado, o risco era o de ser zoado e, esse "NÓ" era gritado e esticado, via de regra, acabava tudo em briga.
  Eu não era de procurar encrencas, porém, quando a ocasião se apresentava, não me fazia de rogado, não era dos que batiam, mas, nunca tive o dom pra ser a vítima, toda briga que entrei, não corri e, como eu disse em outra postagem, todo mundo que tentou me fazer mal, teve o troco merecido.
  Então, vou contar como foi que aqueles 3 pastéis que me jogaram na piscina tiveram a sua cota de aprendizado.
  Nos fins de semana eu tinha o costume de procurar abacates para esconde-los nas folhas secas das bananeiras, essa era uma das poucas coisas  que eu fazia sozinho, depois ia ler um livro, na primavera, que ficava na frente do pavilhão 14, pra falar a verdade, nem sei se o nome da arvore é esse mesmo, os galhos dela cresciam pros lados, lembravam os tentáculos de um polvo, no tronco haviam espinhos e mesmo que se podasse, os galhos voltavam a se estender, sua pontas chegavam no chão, dentro dessa sombra eu li muito.
  Depois ia procurar os amigos, descíamos pro campo e jogávamos rebatida, depois íamos pro lago do Japonês, nadar ou caçar rãs, ali pertinho tinha o pomar, entrávamos com cuidado, colhíamos as tangerinas e corríamos dos cachorros e dos tiros de sal.
  Feito isso, chegávamos ao bosque do 14, embaixo da enorme Araucária e ficávamos ali, conversando, cantando coisas do Milton ou do Fagner.
  Nesse dia foi tudo normal, até o...chegar ao bosque do 14.E não é que os caras estavam lá esperando???
  Eles eram 3, nós eramos 4, nós tínhamos 11 anos, eles tinham 16...então está caracterizada a lei do mais forte, o Viana e o Téquinha se puseram  em posição de defesa, o Chumbinho que era o menor, fez o mesmo, eu fiquei calmo, muito calmo.
  Eles disseram que não queriam brigar, mas, caso nos recusássemos a repartir o produto do roubo, seriam obrigados a caguetar, bati no ombro do Viana e disse:
  _Calma amigo, não custa nada dividir.
  A essa altura, a raiva dele era tanta que já lacrimejava, depusemos os 4 sacos no chão (os sacos eram as nossas camisas), eles pegaram a camisa do Viana, daquelas que tem o simbolo do São Paulo, esvaziaram-na, com a camisa dele na mão, o Salvador falou:
  _Isso aqui é lixo.
  Jogou a camisa no rosto do meu amigo e foram embora, o Viana procurava no chão, um pedaço de pau.
  Deu trabalho acalma-lo, eu já tinha um plano, disse pra eles que no dia seguinte, nós teríamos cãibras de tanto rir.
  Não contei-lhes o plano, disse que só contaria amanhã, nessa noite nós iríamos dormir com esse gosto de derrota.
  Feliz, era o apelido do Luis Carlos da Silva, que era meu vizinho de cama, tinha os quatro dentes frontais sobressalentes, isso passava a impressão de que ele estava sempre feliz, todas as noites escutávamos radio, quando não era jogo, era música, sempre a Jovem Pan.
  Contei-lhe o acontecido, ele ficou indignado, sugeriu que juntássemos todos os pivetes do pavilhão e dessemos uma lição neles, disse que tinha um plano e ia precisar dele, contei-lhe tudo, detalhe por detalhe, o neguinho ria que dava gosto.
  No dia seguinte cumpri meu ritual até a parte da leitura, fiquei sabendo que o seu Odilon, que era o larista do pavilhão iria sair com a família, fui até a porta do pavilhão e os amigos me esperavam, entrei na sala e eles me seguiram, o seu Odilon ajeitava o cordão do bamba, sentado numa cadeira, pedi licença, ele permitiu que eu me aproximasse, fiz uma careta de dor e disse:
  _Estou morrendo de dor de cabeça, tenho que ir à enfermaria.
  _Ana_gritou ele, chamando a esposa, ela respondeu que estava ocupada no banheiro.
  Como era analfabeto de pai e mãe, ordenou que eu escrevesse o bilhete pro enfermeiro que ele assinava, peguei papel e caneta e muito rápido escrevi o bilhete, antes de assinar o animal tirou os óculos do bolso e fez que lia, tive que cutucar o Viana, pra ele segurar a gargalhada, a besta pegou o papel e assinou.
  Seguimos a estrada do 12, rumo à enfermaria, passamos em frente aos pés de jabuticabas, enchemos os bolsos e continuamos o caminho.
  Quem atendia na enfermaria era o irmão Wilson, essa definição de irmão era dada à todos os membros da diretoria (o motivo, eu ainda vou pesquisar) ele era uma pessoa ótima, ainda que o humor não fosse dos melhores e pra qualquer mal, só havia um remédio...BENZETACIL.(gripe, fratura, dor de dente, corte)
  Chegamos na enfermaria e entregamos o bilhete, ele fez piada sobre os amigos que acompanham os outros em todos os lugares e entrou pra preparar a seringa, o Viana me perguntou se eu não estava com medo da agulha, limitei-me a sorrir, quando voltou, o enfermeiro já tinha a agulha na mão, leu o bilhete e chamou:
  _Edilson Martins Silveira.
  O Chumbinho tomou um susto e caiu do banco de alvenaria, nessa hora caiu a ficha, o Viana e o Tequinha se lembraram do corte na perna do amigo, já criava pus e ele tinha medo de medicação, nós 3 seguramos e o irmão Wilson aplicou-lhe a injeção, como gritava o baixinho.
  Disse ao enfermeiro que não se preocupasse, eu jogaria a seringa no lixo, atras da enfermaria havia um enorme buraco que media uns 3 metros de diâmetro e 1 metro e meio de fundura, ali era depositado o lixo hospitalar, la fora, desarmei a seringa, meti-a no bolso e fiquei com a agulha na mão.
  No caminho de volta o Chumbinho me xingava de todos os nomes e nós riamos, quando chegamos no pavilhão o Feliz nos esperava com um vidro na mão, ele era o ajudante da rouparia, só ele e a dona Ana tinham acesso aos remédios, as portas do pavilhão estavam trancadas, encostei no tanque e os outros fizeram uma barreira, pra ninguém me ver, lavando a agulha.
  A essa altura todos já sabiam do plano, já antecipavam as rizadas, o Feliz foi conosco pro pomar, quando voltamos, escondemos as laranjas no caminho, só chegamos com um saco, a camisa do Viana, de novo...nos roubaram e nos ameaçaram.
  Quando o seu Odilon voltou, o Feliz devolveu o vidro de laxante à rouparia, os 15 ocupantes do quarto dos pequenos ficaram acordados até as 2:00 horas da manhã, 5 ocupantes do quarto dos grandes iam e voltavam do banheiro e isso durou 3 dias e 3 noites.
 

domingo, 23 de março de 2014

A fúria

  Eu não sei qual foi a hora exata, que a diversão virou risco de vida...numa hora estávamos curtindo os bailes por diversão, na outra, passamos a ser alvos móveis, subitamente a equipe de dança virou gangue.
  Nessa época, eu estudava no Santa Inês, quase todos os amigos tinham abandonado a escola, por esse tempo, passaram a consumir a maconha, acho que eu estava muito ocupado e, acabei perdendo esse capitulo, repentinamente eu passei a ser o único careta da turma.
  Nunca fui de julgar, continuei a considera-los, meus amigos e continuei os rolês, com uma diferença, agora passou a haver a pausa para o "fogo na bomba", no começo, tinha o constrangimento de ser traidor, mas, quando os via, sob o efeito da erva, disse:
  _Pra ficar igual a vocês ?? Não, muito obrigado.
  Pra minha surpresa, todos levaram a coisa na esportiva, mas sempre aparecia alguêm de fora e oferecia uns péguinhas, eu sempre me saía com essa:
  _Xi, acabei de fumar um, tô à pampa_a frase sempre vinha acompanhada duma tosse simulada.
  Na verdade, pouca coisa mudou, continuamos a ir em todos os bailes de Sampa, só que agora, tinha a pausa pra bolar o baseado.Todos os domingos, íamos pro mesmo lugar, o Asa Branca de Pinheiros, lá, acontecia a matinê da Chic Show.
  No pavilhão 22, os preparativos começavam cedo, escolher as roupas, lustrar os sapatos, fazer vinco nas calças e ajeitar o black, essa última ocupação era a mais demorada, gastava umas 3 horas, pra deixar o cabelo perfeito, tinha gente que passava cerveja no cabelo, afim de deixa-los durinho.
  Como eu sempre estava sem dinheiro, tinha a minha tesoura e um laquê, prestava meus serviços e cobrava pouco, só o que desse pra pagar a entrada e a condução, já que o meu cabelo não necessitava de mui
to cuidado, eu só o levantava e arredondava e era de bom tom, levar uns trocados a mais, sempre tinha um "mano", que ia pra porta do salão sem nenhum dinheiro, ficava do lado da fila, arrecadando o suficiente.
  Nessa época, havia uma fúria dentro de mim e, em todos os lugares que chegávamos, havia alguém que se achava no direito de cercear nosso direito de ir e vir...isso só se resolvia "na mão" e, se fazia necessário usar os punhos, eu estava sempre na linha de frente, dominava a arte do boxe.
  Uma noite, perto da entrada do Guilherme George, a turma parou pra fumar um, estávamos nuns 50 caras, a bomba foi acesa e passou de mão em mão, um dos amigos novos a estendeu em minha direção, eu já ia dizer a minha frase, quando o Viana, muito alterado gritou:
  _Pára com essa palhaçada de oferecer droga pra esse cara, se, de cara limpa ele já faz as desgraças que faz...calcula, se ele estiver bem louco.
  Houve um breve silencio, a mão que me oferecera o cigarro foi recolhida...nunca mais, ninguém me ofereceu um baseadinho sequer.
  Quanto a fúria ???ela morreu...no exato instante que a Angela disse que estava grávida.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Um jogo arranjado.

  Que me desculpem as mulheres, mas as melhores lembranças da vida de um cara, tem futebol. Antes do dinheiro, antes do amor, do suor, do sangue e da cerveja, nada ofusca o brilho da bola e, a história mais insossa, na saudade de um cara, vira lirismo. O jogo mais besta do mundo, vira uma batalha de proporções gigantescas, o adversário tem super-poderes de um vilão e a gente se vê numa arena, nossa arma é a bola.
  Em 1979, depois da morte do Celso (afogado, no lago do 24) , o colégio passou por uma reformulação sem precedentes, a diretoria sucumbiu e, ainda se juntou a isso, o fato de o André ter perdido 3 dedos na máquina de tijolos da olaria. A questão da violência contra o menor, que nunca havia sido colocada em pauta, surgiu com tal força, que, a diretoria sofreu seu golpe fatal.
  Repentinamente, choveu repórteres e deputados, durante uns dias, a ilha de paz que era o E.D.D, virou um inferno, por módicos 10.000 cruzeiros, eu, o Zé Almir e o Lourival contamos tudo, sentados na casinha do campão, o repórter do Estadão anotava tudo em seu caderninho, depois pagou uma caixa de Tubaínas, no bar do Barroso, isso foi a maior negociação de todos os tempos, que um guri de 12 anos podia ter feito, "a cara nem ficou vermelha".
  No 14, tivemos a alegria de ver o Odilon ser demitido e, como estávamos acostumados a ser tratado com ignorância, demoramos a nos acostumar com  o novo casal... o Claudio e a Márcia eram pessoas que entendiam de crianças, não gritavam, não batiam e ensinavam, toda a produção agrícola do pavilhão (bananas, abacates, milho, mandioca) passou a ser repassada para os menores que trabalhavam na enxada.
  Como o Claudião não entendia nada de táticas de futebol, deixou por nossa conta, montar o time pro campeonato interno, estava por nossa conta, honrar a tradição do 14, no futebol.
  A Márcia, que era muito amiga da esposa do Doutor Sócrates, conseguiu-nos um uniforme novinho, com as cores do Botafogo de Ribeirão Preto, quem entregou o uniforme foi o seu Raimundo, pai do Doutor.
  E como ele ia passar dois dias hospedado no pavilhão 14, desceu pro campo, pra bater uma bolinha, foi a primeira vez que eu e o Viana batemos num cara de meia idade. Enquanto subíamos o barranco, que levava ao pavilhão, o Viana disse, sorrindo:
  _Caramba, você desceu o cacete no pai do seu ídolo!
  _Amigo, se fosse o próprio, eu bateria mais.
  Nós eramos os volantes do time, o Feliz era o terceiro membro do tripé de meio campo, o Adilson (Ovinho) era o centro avante, meu irmão Nilson, apesar de não ter idade, era um zagueiro excepcional, o Maméde e o Zé Antonio atacavam nas pontas, nosso goleiro Marcos era baixo, mas, voava.
  Um time de caras esforçados, medianos, não fosse por um detalhe, tínhamos o Tadeu, esse era um dos maiores, de todos os craques do E.D.D, digo isso, sem medo de contestações. Nossa tática era simples, os 10 entravam para equilibrar o jogo e o Tadeu desequilibrava, para garantir que ninguém o marcasse, ele jogava de libero, à ele caberia a camisa 10, mas o Pelé estigmatizou esse numero tanto, que ninguém queria vesti-la, no primeiro jogo eu demorei pra chegar, só havia uma camisa no banco do vestiário, tentei argumentar com meus companheiros de meio, os dois fizeram que não me ouviram e, então lá estava eu, com a 10, do glorioso time do 14, o adversário era o 19, do Arthur e o Gilvan, a tática foi perfeita e, ainda que eu tivesse feito 2 gols de falta e termos vencido o jogo de 5 x 0, o tempo todo, alguém gritava:
  _Ô pião, a camisa está pesando???
  Dona Márcia, que assistira o jogo todo, viu que eu estava incomodado com aquilo, levou a minha camisa pra rouparia e trocou o número 0 pelo 9, a mulher era uma santa, durante a partida, entendemos porque o seu Claudio não quis ser o técnico do nosso time, quando o jogo terminou, ele estava chorando.
  Além de jogar no time dos médios, eu era o técnico dos menores, se no meu time reinava a democracia, os pequenos sofriam com meu comando e, eu já era absolutista, naquele tempo.
  No meio do campeonato, não restava dúvidas com relação ao nosso favoritismo, vinhamos ganhando bem, todos os jogos, fechamos a fase classificatória tão bem, que ficamos a um empate da classificação pras quartas de final, no jogo contra o 16, a situação era a seguinte: Se ganhássemos o jogo, o 22 seria classificado, se houvesse um empate, o 16 ficaria classificado, nos dois casos, nós já estávamos garantidos na fase seguinte. E não dizem que o diabo é sujo!?? A maioria do time resolveu manipular tudo, tirando eu e o Tadeu, o resto do time resolveu que o classificado seria o time do 16, pelo fato desses, terem mais afinidade e amizade com a nossa turma, lá haviam os nossos amigos Faustino, o Claudio (Farofa), o Cleiton, o Claudio e Flávio Monteiro (irmãos do Bruxa), os irmãos Brigido e ainda tinha o fato de os laristas Roberto e Marlene terem ficado um tempo conosco, a gente gostava tanto do casal, que passamos a visitá-los no 16.
  E fez-se o acordo, o Viana e o Farofa se conversaram, tudo certo, o Tadeu e eu, prometemos acatar a decisão da maioria. Foi o jogo mais calmo que o Luis Paulo apitou na vida, tirando o fato de o Farofa ter quebrado o braço, a partida não teve emoções, inconformado, o Tadeu ficou na defesa, toda bola que ele ganhava, dava um estouro pro alto, normalmente ele sairia em contra ataque e levava a bola até o outro gol, no segundo tempo, passou pela nossa cabeça que o Cleiton não sabia do acordo e como ele estava se esforçando demais, foi devidamente levantado.
  Não sei se foi por má fé ou sorte, a coisa deu pra trás, faltando uns 5 minutos pro final, depois de um chute do Cleiton, nosso goleiro Marcos jogou a bola pra escanteio, ninguém se posicionou direito na marcação, o Faustino ajeita a bola com carinho, com uma perfeição impressionante bate de pé direito, a bola cruza toda a extensão da linha de fundo, rodando e em linha reta, sem reação, o Marcos vê a bola passar dentro do seu gol, antes de se confirmar o gol, o Cleiton sobe e bate a testa, apesar do gol ser do Faustino é o Cleiton que sai comemorando.O Marcos estava no chão, eu estava no segundo pau, abaixei-me e peguei a bola, ia levá-la pro meio de campo, antes de eu chegar na área grande o Tadeu pegou a bola da minha mão, ele bufava de raiva, nunca tinha visto o amigo com tanta raiva, colocou a bola na marca da cal e me esperou chegar, os caras do 16 demoravam ainda na comemoração, o Tadeu olhava pro juiz ansioso, o juiz apitou, toquei de chapa na bola, do meio até o gol haviam 5 jogadores, com 3 toques, ele os tirou de tempo, o goleiro se deitava a seus pés, com um toque cobriu o goleiro, a bola ia entrando, ele a alcançou e bateu com força, a bola estufou a rede e como ela estava muito esticada, voltou-lhe nas mãos, não comemorou, tratou de levar a bola pro meio, entregou-a nas mãos do arbitro e voltou para a meia lua.
  Sentimo-nos aliviados, o Tadeu ainda bufava, a cólera o deixava vermelho, dava a impressão de não respirar. O time deles reiniciou o jogo, roubei a bola e passei na direita, nos pés do Zé Antonio, o Zé parou a bola, quando ia correr com ela o Tadeu passou, feito uma bala, tomou-lhe a bola e partiu em diagonal, fintou dois e na entrada da área, bateu de peito de pé, a bola foi morrer no segundo pau, no angulo, dessa vez ele saiu comemorando.

sábado, 25 de janeiro de 2014

A canção perfeita

As pessoas costumam dizer que, tem música que conta história... eu vou mais longe, todo momento que eu vivi, tem uma música para lembrar, minha memória e a música caminham juntas, a música é o combustível que ativa as minhas lembranças.
  Quando fui trabalhar na administração do Educandário Dom Duarte, com o seu Tinoco, pensei que estava sendo punido, não que eu não merecesse castigo, mas, quem imagina que um guri de 12 anos, vá se entender com um senhor, com mais de 80, ranzinza e caladão?
  No começo, havia só o silêncio, silêncio propriamente não, arrastava-se no ar aquela música que vinha do rádio dele, uma música marcial, aqueles acordes inflexíveis, aquela coisa monótona e repetitiva, muitas vezes, ele percebia que eu fechava os olhos na minha cadeira, dava um forte tapa na mesa e, eu acordava assustado, ele sorria feito uma criança, que acabou de cometer uma travessura.
  O ajudante do seu Tinoco, diferente dos ajudantes do seu Reginaldo e do seu Alones, não saía para entregar bilhetes ou comprar alguma coisa, portanto, eu tinha que ficar ali, naquela guerra de gerações, lá fora, os outros meninos escutavam The Commodores e Guilherme Arantes, lá dentro, a trilha sonora era, supunha eu, a de um campo de concentração.
  Na sala, haviam, além das fotos antigas, troféus enormes, de um tempo de glória da fanfarra e do futebol Educandariano, a minha curiosidade fez com que ele se abrisse e, do baú aberto, havia uma riqueza de detalhes, datas e acontecimentos, aquele velho mal-humorado era um narrador apaixonado, conhecia todas as histórias que os troféus não mostravam.
  Viciado em leitura, naquele tempo, não abri um livro, toda cultura que adquiri, foi via oral, minha mente viajava, as histórias eram dum tempo duro, nossa!.... Se no meu tempo era duro ser interno, imagina no tempo dele, onde reinava uma disciplina militar e os internos eram tratados como prisioneiros.      Aquilo foi tão bom para mim, que anos depois, fui entrevistar um velho combatente da revolução de 32, como trabalho de estudos sociais, o pracinha ficou impressionado com o meu conhecimento de causa que quis me adotar.
  Ainda assim, a música continuava a mesma, certo dia, faltando poucos minutos para o meio dia, entrei na questão:
  _Seu Tinoco, essa sua música faz pensar em suicídio, eu até que gosto de clássicos, mas convenhamos... Vagner é de lascar.
    _. Ué, eu gosto de Vagner disse isso e sorriu.
  _O Hitler também gostava e isso não fez dele um ser humano lindo.
  _E. o que o "programador" sugere ???_disse ele, ainda rindo.
  _Poe aí, umas músicas de negão, falei isso, mas, já estava saindo da sala e ganhado a garagem, ele saiu até o corredor e gritou:
    _. Amanhã, vou te mostrar o que é música.
  No dia seguinte, ele tinha, em cima da mesa, uma vitrola antiga com um disco de 78 rotações, na capa do disco, que estava em cima da mesa, um nome:
  Scott Joplin, confesso que isso não me impressionou nenhum pouco, o velho segurava o braço da agulha e com um ar misterioso, começou a narrar:
    _. Imagine um mundo, um mundo sem jazz, só havia as polcas e as valsas...
  Conforme ia contando a história, crescia e descia o tom da voz, conforme a emoção, contou que os negros, nos barcos que navegavam o rio Mississippi, aprenderam a tocar piano, olhando os brancos, mas, aprenderam do seu modo, usando a parte preta das teclas, isso deu um som diferente de tudo o que era conhecido e, muito mais rápido no seu passo, servia mesmo para dançar, essa música, foi dado o nome de Ragtime e, só então, soltou a agulha no disco.
  O som que ecoou na sala, me conduziu direto ao começo do século XX e a música era conhecida, aquelas músicas incidentais do cinema mudo.
  É claro que fiquei encantado, a evolução da música foi mostrada, cada dia um disco diferente e nem se eu tivesse um curso intensivo, eu teria um professor deste gabarito.
  Blues, Jazz, isso, no entender dele, era música de negão e ele conhecia tudo, de Glenn Miller à Sinatra, de Cole Porter à Nat King Cole, mas tinha uma paixão especial por Billie Holiday.
  Quando falava dela, seus olhos brilhavam, sabia tudo sobre ela, suas músicas e sua vida, todos os dias, ele trazia um disco de Jazz ou Blues e no final, sempre executava um da Billie.
  Minha canção preferida sempre foi Blue Moon, quer dizer, a canção preferida dele, virou a minha.
   Então juntos, chegamos à conclusão que a música perfeita seria ela e, na voz da Billie.
  Na minha vida, conheci muitos amantes de Jazz, desses, oito entre 10, eram apaixonados pela Billie... aos poucos, eu me tornei um deles.
  Anos mais tarde, eu já trabalhava na Procuradoria Geral do Estado, passeava para os lados do Metrô São Bento, quando ouvi a Billie interpretando. Estrange frut., jurei para mim que ia comprar esse disco, entrei na loja e havia um senhor sentado, ouvia a música com os olhos fechados, tinha uma coleção dos discos dela, passei em revista, disco por disco e, no meio de todos eles, achei um que me assombrou, peguei-o e levei para o vendedor:
  _A Billie gravou Blue Moon mesmo?
  Ele acenou com a cabeça que sim, não acreditei e pedi que ele a executasse na vitrola, ele obedeceu, quase chorei de emoção, comprei o disco.
  No dia seguinte, fui para o pavilhão 11, que agora estava convertido em asilo, o seu Tinoco sorriu a me ver adulto, quando lhe entreguei o disco, seus olhos brilharam e gaguejando disse:
  _A canção perfeita.
  Essa foi à última vez que vi, meu velho amigo de infância.