sábado, 27 de fevereiro de 2016

Fruta madura


Pra me desculpar da postagem do casal do 14, aquela que expus uma parte triste da minha infância e, posso ter dado a impressão de que a vida dos internos era sofrida, vou me redimir e contar sobre um casal que nos veio depois, a frase é batida, mas é real(depois da tempestade vem a bonança).
O seu João e a dona Helena trouxeram pra nós, a certeza de que a vida era muito boa.
O seu João era mineiro, daqueles mineiros de fala mansa, que contam histórias, conversam de igual pra igual e nunca recorria à violência, a dona Helena chamava os guris de filho.
Era o retorno do casal ao Educa, anos antes, eles cuidaram do pavilhão 13 e ainda que estivesse agora no 14, todos o chamavam de seu João do 13.
Logo que chegou, falou pros meninos, que quisessem, que se carpissem a produção seria divididas em partes iguais e uma parte seria dele.
Então fomos produzir e, com boa vontade, fazíamos muito mais em menor tempo.
Deu uma boa produção e vendemos tudo, a nossa parte deu pra comprar muitos doces e várias bolas de capotão oficial, com a parte dele, nos deu uma visita ao Zoológico e o melhor natal de todos os tempos.
O casal tinha dois filhos, o Cesar e a Lúcia.
O Cesar tinha 23 anos, formado em arqueologia, vivia viajando e quando vinha, trazia uns apetrechos da África e do Egito, vestia-se com botas de pele de cobra e tinha chapéus de John Wayne, era o herói da molecada e dos grandes também.
A Lúcia tinha uns 25 e era a criatura mais formosa que os guris do 14 já haviam posto os olhos.
Quando ela passava, fazia um profundo silêncio, quando ela sorria, o dia se iluminava, quando ela sorria, a rosa tinha inveja. Pra os meninos do 14, havia a beleza e havia a Lúcia, ela era a beleza elevada ao cubo.
Do lado de fora do pavilhão 14, seguia-se uns 10 metros de terra batida e principiava-se um barranco de uns 2 metros, se muito, acima do barranco havia uns pés de uvaia, uma frutinha amarela que, mesmo quando amadurecia, era azeda.
Numa bela tardinha, eu o Viana e o Téquinha subimos cada um num pé e ficamos em cima, colhendo, tirando os bichinhos e comendo, enquanto isso conversávamos.
A Lúcia saiu para a área trazendo uma cadeira de praia, ajeitou-a na terra batida e se sentou os galhos das arvores não permitia que ela nos visse e nós a víamos nitidamente.
Escravo dela, o raio de sol iluminava e uma doce brisa veio beijar-lhe os cabelos negros.
Um galho me atrapalhava a visão e ao tentar me ajeitar num outro galho, pisei num galho mais fino e, feito fruta madura, cai.
A Lúcia se assustou e subiu o barranco pra me ajudar, não doía nada, mas eu gemia, gemia de vergonha.
A Lúcia, além de linda, era generosa:
_Onde dói?Perguntou agoniada.
Ainda a gemer, levei a mão direita à face esquerda, ela pegou a minha cabeça com as duas mãos e beijou-me a face.
No mesmo instante do beijo, as duas frutas que ainda havia nas arvores despencaram.

Pobre menino rico.


Quando fui estudar no Vidigal, fazia parte de uma estratégia para que os internos estudassem fora, isso deu certo e mandaram mais três pra lá, eram o Gil do 20, o Coquinho do 24 e João Augusto do 12. Como eu estava doido pra montar um time de futsal só com internos, faltou um.
Um guri chegou e nos disse:
_Se me deixarem completar o time, pago Tubaína.
Ah, na hora... esse guri passou a integrar a equipe, a cada jogo, além da Tubaína, tinha pão com presunto e queijo.
O Amadeu era filho de um promotor de justiça viúvo, por ser oriundo das classes mais desfavorecidas, obrigava o filho a frequentar a escola pública. Todos os dias, uma senhora negra vinha o buscar na escola e ele a tratava de mãe.
Éramos o oposto, ele era filho único e eu dividia a casa com mais 44 irmãos, ele tinha muito dinheiro pra gastar e eu vivia com os vale-transportes do seu Tinoco.
Contrariando a lógica, ficamos muito amigos, até por que, ele costumava colar de mim as matérias.
Um dia, na saída da escola, ele propôs uma brincadeira, cada um ia almoçar na casa do outro, passar uma tarde no mundo do outro.
Acertamos os detalhes e apertamos as mãos.
A primeira foi na casa dele, a mulher que ele chamava de mãe, era a empregada da casa, o quarto dela era maior que a sala do pavilhão 14, durante o almoço o pai dele me cumprimentou, fez várias perguntas, pra saber o que eu e o filho dele tínhamos em comum, ao final lançou o veredito:
_O Amadeu tem melhorado na escola, você está ensinando ele, né?
Rimos a valer da cara de contrariado do Amadeu.
Depois fomos pra uma sala que tinha um lustre direcionado pra uma enorme mesa de bilhar, toda em madeira de mogno e um imponente tapete vermelho.
_Cara, você tem uma mesa de bilhar em casa?
Imagine a cara de inveja do menino pobre pra cima do menino rico, passamos a tarde toda naquela mesa.
Para pegar o bandejão do Educa, ele chegou uns 10 minutos antes do meio dia, eu o estava aguardando na portaria e subimos na estrada de paralelepípedos.
Viu do lado esquerdo o majestoso campão, com seu tamanho oficial, a casinha e o vestiário.
_Cara, você joga nesse campo?
Imagine a cara de inveja do menino rico pro menino pobre.
Sem nos preocupar com nada, ficamos na fila da cozinha central.
A chefe era a dona Mercedes, assim que percebeu que o menino era estranho, ficou com olhar de poucos amigos e foi ter conosco.
Já disse que eu tinha cara de anjo e sabia usá-la quando se fazia conveniente.
Com calma, tirei a dona Mercedes de lado e disse:
_Esse é um menino sem família, disse pra ele que podia almoçar aqui hoje.
Isso dobraria qualquer pessoa ruim e a dona Mercedes era um doce, além de mãe e avó.
Assim que as minhas palavras entraram em seus ouvidos, ela pegou na mão do menino e o tirou da fila, levou-o pra uma mesa e mandou que ele esperasse lá, num prato de vidro colocou uma comida melhor do que aquela que serviam nas bandejas e o serviu.
Quando saíamos, veio a dona Mercedes e lhe deu um embrulho.
_Isso é um lanchinho, pode vir aqui quando quiser.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O seu Felipe

Se aquela imagem da portaria, que virou até tela de quadro, nos identifica e nos leva a ter boas lembranças da infância... a lembrança do porteiro, nos dá a mesma satisfação.
O seu Felipe se esforçava para ser um profissional linha dura, daqueles que cumprem tudo à risca, fora do seu horário de trabalho era bonachão e ao lado do seu Bernardo, jogava truco valendo dinheiro e frequentava casas de má reputação em Pinheiros, quem o via na portaria, nem imaginava que era um cara (pra usar um termo atual) descolado.
Era são paulino doente, pra ele, o pior de todos os bandidos do mundo se chamava Vicente Matheus.
_Por que, seu Felipe?
_Estava tudo certinho, o Sócrates já estava comprado e vai o bandido na calada noite e...
Eu me acabava de rir daquele careca ridículo, que como eu disse em outra postagem: "Me viu entrar criança e sair adulto feito".
Mas nem sempre foi assim, a consideração minha pra com o porteiro.
As vezes eu ganhava uns trocadinhos e queria gastar, comprar umas guloseimas no Mercado Paraná ou no bar do Brás.
Via de regra, saíamos pela casinha de força, se fossemos pela portaria, seríamos barrados e o seu Felipe diria:
_Menor só sai com um bilhete da administração.
Essa era a ordem que ele tinha que cumprir independente da nossa indignação.
Uma tarde, estávamos eu, o Viana e o Chumbinho, depois de uma rebatida no campão, resolvemos que, à pulso, sairíamos pela portaria, gostasse o seu Felipe ou não.
Ficamos na escadinha, perto do mastro da bandeira e assim que um carro ficou em frente do grande portão, nos levantamos.
Preparados na estrada de paralelepípedos esperamos com calma o porteiro abriu as duas partes do portão, com a prancheta na mão, passou a fazer perguntas para o motorista, nesse instante passamos correndo e ganhamos a rua, pra voltar usamos a casinha de força.
Claro que a ousadia nos custaria caro, o seu Felipe iria contar na administração, ficamos preparados pro pior, entre a mão pesada do Domingão e os beliscões na barriga que o Augustão daria e o castigo no corredor, a escolha era difícil.
Estranhamente, passaram-se uns dias e nada aconteceu.
_Curiosos fomos à pensão no período da tarde e ele estava jogando com o seu Bernardo.
Perguntamos o motivo de ele não nos ter denunciado.
_Pra que? Vocês iriam apanhar ficar de castigo... tudo repetido.
Falou conosco sem tirar o olho do adversário, depois, com calma disse:
_Fiquem aí, que depois que eu rapelar esse marreco, vou ensiná-los a jogar dominó.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Sem final feliz.


Quem acompanha as minhas narrativas, vai logo identificar o Valdevino como um bom amigo, em quatro, ou mais postagem ele aparece em primeiro plano, deveras.
Foi um amigo mais velho que eu admirava e acabou virando um amigo do peito.
Também notará o leitor que, em várias aventuras o Lourival dá o ar de sua graça, cito a postagem "Rebola Sebastião, rebola" e outras.
Os dois moravam no 12, a história dos dois era parecida com a história de muitos dos meninos que foram abandonados e conduzidos ao Instituto Sampaio Viana, de lá seguiram uma triagem em alguma das várias dependências da FEBEM e posteriormente mandados ao Educandário Dom Duarte, feito a história de milhares de crianças.
O Valdevino tinha uns três anos a mais da minha idade e o Lourival, uns meses mais novo que eu.
Ao primeiro, Deus deu o dom da habilidade nos esportes, ao segundo coube à fidelidade e não se apartavam nunca, os dois.
O Lourival era para o Valdevino uma espécie de Sancho Pança, um cavalariço fiel, qualquer um que os via, tinha a certeza que aquela amizade vinha de outras encarnações.
Juntos no Educa, viveram suas vidas e cresceram, como manda a natureza humana, cada qual com seus jeitos e modos.
Em épocas de saída, já adultos, foram pras suas vidas, cada qual pro seu lado.
O Lourival formou-se e constituiu família e bateu-lhe a curiosidade de saber da própria história, de posse de seus documentos procedeu a uma investigação por conta própria.
Descobriu que a mulher que o havia deixado aos cuidados do Sampaio Viana, já havia feito a mesma coisa anos antes, vasculhou tudo e descobriu que o seu melhor amigo do colégio era, na verdade, seu irmão mais velho.

Porém, já se fazia tarde demais, por esses tempos o Valdevino já havia perdido a alma e dependente das drogas, havia virado um andarilho no centro de São Paulo, meses depois partiu dessa vida.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O Valdevino.


No meio da foto, entre o João e o Milton (filho do Sr Mates).
Sem sombra de duvidas, o maior craque do meu tempo, tudo o que os outros craques faziam (e não eram poucos), ele fazia em alta velocidade.
Craque, humilde, boa praça e, pasmem, QI elevado.
Nos jogos do 12, o espanhol seu Francisco não dava ordens pro time, só gritava:
_BAI BALDEBINO.
Quando ele cruzava a linha de meio campo, dominando a bola, se tivessem seis defensores, ainda era pouco.
Assistindo um jogo, o Mamede perguntou, na casinha do campo:
_Como se faz pra parar o Valdevino?
A casinha estava cheia, fez-se um longo silêncio, todos a olhar pro criolo, mais uma jogada e outro gol, comemoração e torna o silencio a imperar, a pergunta voltou às mentes.
Bola alçada na área, sem tamanho o 10 do Grêmio sobe e de cabeça, dá o rumo da bola, angulo.
Mais uma comemoração e o Coloral grita:
_Eu sei como parar Valdevino.
Todos os olhares se voltam para o guri ruivo do 17, todos querem saber a formula pra parar uma máquina chamada Valdevino.
_Bala de canhão.
O tempo que perderam olhando pro Coloral, foi o suficiente pra perderem o começo da jogada que resultou em mais um gol.
Comemoraram rindo desta vez.
O garoto confirmou:
_É isso mesmo, bala de canhão.

Ainda sobre a olaria...


Disse que estava lá, na exata hora que o André do 22 foi vitimado, no entanto, esse é um fato que eu abro mão de narrar.
Só queria ressaltar que ele foi vítima do descaso, de pessoas que ganhavam dinheiro e não se importavam com a segurança.
O seu Luis cansou de pedir pro Domingão providenciar uma tela que protegesse as formas de tijolos, dizia sempre que algum guri poderia se machucar.
Quando a máquina rodava na esteira e soltava o tijolo, deixava sempre uma pequena rebarba de barro, automaticamente os meninos tiravam essa rebarba, o próprio seu Luis tinha esse habito, dizia pro Domingão que seria um gasto insignificante, posto que, o Educa contava com uma serralheria, o diretor parou de passar na olaria, já que a cobrança do operador da máquina o aborrecia.
Importante também é falar da capacidade do interno de superar as dificuldades e fazer piadas das piores situações.
Perdeu três dedos o André, na época havia uma propaganda do Vila Rica que era protagonizada pelo craque Gerson, ele dizia:
_Leve vantagem, apenas sete cruzeirinhos. E mostrava os sete dedos das mãos.
Um dia, numa aula vaga, chovia e ficamos em sala e fizemos uma brincadeira, cada um ia de frente ao quadro negro e fazia algo que fosse digno de aplausos.
Uns faziam piadas, outros dançava e cantavam ou faziam mímicas, todo mundo muito fraquinho... chegou a hora do André, foi à frente e imitou o Gerson, falou tudo e na hora de dizer o preço, levantou as mãos. Mostrando os sete dedos restantes.

Arrasou, aprendemos que, a nossa alma é do tamanho que queremos que ela seja.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

O breve reinado


Naquela pegada, de achar que o Educa era uma ilha, alheia aos acontecimentos de fora da portaria, me proponho a contar, como se eu fosse um historiador do meu tempo e digo que, isso se faz mesmo preciso, já que, a história foi mal contada.
Muitos dos ex-internos não tem o carinho que nós, membros do grupo, temos pra com o Educa, para esses, lembrar-se dos tempos da infância é doloroso, leva-os às lembranças de torturas e servidão e extrema ausência de liberdade.
Não sofremos o mesmo que estes, tivemos a sorte da mudança dos ares, capinávamos feito burros de carga e os laristas vendiam a produção e, nem tem a desculpa, de que era pra alimentação, posto que o seu Julio (Japonês) mantinha em terrenos do Educa, duas hortas gigantescas, que serviam pra esse fim, metade de tudo que era plantado, era mandado pra cozinha central.
Além da olaria e o bloco, os meninos eram explorados por empresas, que até hoje tem reconhecimento mundial, feito a GESIPA do Brasil e a SERPRO, a primeira mandava seus rebites e pregos para os pavilhões, o serviço consistia em prender o prego no rebite, em contato com esse material, os meninos eram obrigados a respirar a particular de ferro que enchiam o ar, a segunda empresa mandava suas cartas de propaganda para ser selado, um movimento repetitivo e exaustivo.
Essas duas empresas intercalavam-se, na época da entrega de seus serviços, remuneravam os laristas e a diretoria e dava aos meninos o pagamento em forma de balas de astronautas.
Não foi quando o André do 22 perdeu os dedos na máquina de fazer tijolos, fato que eu também tive o desprazer de testemunhar, foi meses depois, diante da morte do Celso do 24, afogado no lago que ficava nas costas do pavilhão de mesmo nome.
Por conta do afogamento, a mãe do menino fez barulho, esse barulho teve repercução, isso ressuscitou o caso da olaria, que continuava a funcionar, todo o esforço feito pela Liga pra abafar o primeiro caso não valeu, a mãe do Celso queria justiça, queria saber por que o casal que tinha a obrigação de cuidar do menino, se encontrava a kilometros de distancia.
A imprensa que não era controlada pela Liga, caiu de pau, a Camará dos Vereadores mandou representantes ao Educa, classificaram como exploração infantil e lacraram a olaria.
Por conta desses fatos, houve uma revolução na ilha, a diretoria foi deposta e a cabeça dos carrascos rolaram homens que torturavam, feito Fausto, Odilon e Doca, deram lugar aos novos, no que parecia um show de boas vindas, os buldogs da dona Camila correram na grama do campão... esse foi o prenuncio de uma nova era.
Os ares novos perduraram uns meses, a minha impressão na época era que, a qualquer hora, os meninos se levantariam contra todo aquele estado de coisas, a nova diretoria contornou a coisa toda.
Só pra fim de relato, o padre Paulo, que era um mero arauto na diretoria dos irmãos, agora dava as cartas como um grão-vizir.
Nesse breve espaço de tempo, a banda brilhava e o teatro conheceu o seu apogeu, pessoas com o Jordão, o Paulo, as filhas da dona Tereza do 22(Cuca e Rita) criaram um teatro rico.
Lá no 14, paramos de pegar no pé do trio Valmir, Geraldo e Salvador... os 3 haviam se tornado músicos e passaram a acompanhar o pessoal do teatro.
O Luis Antonio ganhou o prêmio de melhor ator, disputando na Pinacoteca um concurso de atores novos, a peça era "O galo de Belém", numa outra peça, chamada "Aquarela", quem brilhou foi o Zezinho da cozinha, ele era um rei meio doido, cativou o público e arrancou os aplausos de muitas plateias.
Essa peça tinha um roteiro meio despretensioso, uma história de jovens amantes, disfarçava um conteúdo revolucionário e antirracista.
A peça, na verdade, refletia a busca do jovem pela liberdade de fato, não essa, a que o estado propunha.
Quando estrearam, nessa mesma data, o Educa sofre o vendaval, uma verdadeira caça às bruxas.
O teatro foi fechado, funcionários que tinham boas amizades com os internos foram considerados perigosos e demitidos, alguns internos foram acusados de fornecer drogas aos membros do teatro e aos outros menores, o Educa ficou em estado de sítio, nem a Dona Camila e nem o padre Paulo mandavam nesse ínterim, quem comandava os passos era o seu Carlos, marido da diretora, o policial.
E vimos provas serem plantadas nos armários dos amigos, amigos algemados e conduzidos, sem o direito de defesa.
Isso aconteceu no 13, no 11 e no 14, o sentimento de revolta voltou à tona.
Parece que tudo se encaminhava pra o destino de sempre, separados em pavilhões os meninos viam tudo sem saber o que fazer, queriam se impor e não tinham como fazê-lo, teria que acontecer uma coisa muito grande pra juntá-los...
Empolgado com a situação, o seu Carlos não respeitava mais nada, metia o pé e gritava.
Quando chegamos da escola, uns meninos disseram que o Carlos havia chegado, batido no Luis Antonio, amarrado-o e jogado em cima da Pick up, sem mais nem menos, os meninos do 12 já nos esperavam, quando começamos a caminhar a descida da jaqueira, os caras do 11 chegaram, os do 13 nos esperavam na piscina, um fator unira a todos e ele se chamava Luis Antonio.
O policial ficou com medo, quando viu a turba, quando a viatura chegou já haviam quebrado todos os vidros da casa e, se demorasse mais, a casa arderia em chamas.
Terminou assim o reinado.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O bulling.


Nessa história, vou omitir um nome, o nome do agressor, entendo que seus filhos e netos não merecem ler e saber, que ele praticava uma coisa tão hedionda, só vou dar uma dica pros meus contemporâneos, ele era interno do 20.
O padre Paulo foi um dos personagens mais contraditórios da minha infância, trabalhava para o sistema e pregava a subversão... é, eu nunca entendi mesmo a posição política do padre cearense, que era titular da igreja da Consolação.
Esteve na diretoria dos "Irmãos", sobreviveu às reformas e continuou com a dona Camila e, depois da deposição dela, assumiu o posto e foi o maior responsável pela humanização no trato dos internos e, feito isso, foi embora.
Em 1977 eu entrei no Educa, no grupo escolar era da turma dos mais novos, tinha 10 anos e um pouco maior que a maioria dos meninos da mesma idade, isso dava aos maiores a impressão de mais velho e isso me livrava de ser vítima deles, a tal da "lei do mais forte". 
A mesma sorte não tinha o Josué do 12, que tinha o apelido de Batata, não por ser loirinho feito o guri do 14, esse era pelos olhos arregalados, diziam que seus olhos lembravam batatas e ficou Josué batata, mais um que era oriundo da Casa da Infância.
Nessa época, o padre Paulo fazia, em hora de recreio, palestras de bom comportamento para os internos, além de acabar com a nossa hora de recreação, ali no páteo, ele discorria sobre assuntos bem desagradáveis, falava de coisas erradas que fazíamos e até de troca-trocas, que alguns meninos tinham o habito de fazer pelos matos do Educa. Cara, havia um monte de meninas ouvindo essas sandices, era mesmo sem noção, aquele cabeça chata.
A aula de religião também era ministrada pelo eclesiástico, que tinha diploma da Universidade Federal do Ceará, que sempre pregava a união das pessoas, enfocava mesmo na questão, de um jeito bem comunista, fazia questão de enfatizar que só a força da união poderia mudar o estado das coisas, Dias Gomes o descreveria, naquele tempo, de "Padreco Vermelho".
Sempre juntos, eu, o Batata, o Dooley do 12, o Valdir do 24, o Djalminha do 21 e o Fuscão do 14, no páteo, do lado oposto dos banheiros, existe as paredes janeladas de uma sala, um corredor curto e outra sala de frente, isso forma um meio quadrado, o acabamento das paredes lhes dá um beiral, esse beiral era nosso banco, quase o horário de recreio todo, passávamos sentados ali.
Ainda que fosse proibido, alguns alunos jogavam uma bola dente de leite no pateo, um deles, o dito-cujo chutou a bola e atingiu o rosto do Batata, evidente que o Batata não gostou, pegou a bola na mão e, como se fosse um goleiro, soltou-a e chutou com toda a força que podia, a bola ganhou grande altura e subiu pro telhado, todo mundo que estava no pateo ficou na expectativa da volta dela e...ela não voltou.
Esse, que tinha o habito antigo de ser valentão e tinha 15 anos, mesmo a bola não sendo dele, gritou pro Batata.
_8 e 15, moleque. (traduzindo da língua educandariana, isso queria dizer:_Vou te pegar na saída.)
O Batata entrou em pânico e, não era pra menos, vá o leitor ver um guri de 10 anos, junto de outro de 15 anos, nunca haverá equilíbrio nisso.
Nunca acreditei em cabeças coroadas, vendo o Josué em eminente perigo, uma revolta cresceu e eu me levantei.
_Não tem oito e15 nada, isso acaba agora.
No mesmo instante que eu me levantei, o Dooley se levantou, ah. se eu pulasse num abismo teria a companhia dele, o Fuscão fez o mesmo, só ficou o Batata sentado com medo e tudo, não teve outra alternativa que não a de nos acompanhar.
O dito cujo ficou no meio do pateo com cara de desdém, apoiou as pernas abertas no chão e ria, não daria trabalho nenhum àqueles pivetes.
Gloriosamente, ele resistiu uns 3 minutos, o Fuscão o atingiu com um cruzado de esquerda, quando caiu, fora nós, uns oito ou nove meninos aproveitaram para “tirar as broncas”.
O que não evitou que fossemos apontados como os autores do tumulto, na sala da diretoria, o padre Paulo, ao fazer a pergunta crucial, a fez olhando pra mim:
_Quem começou tudo isso, Nilton?
Os outros meninos desviaram os olhares, diferente deles, eu gostava de desafiar o padre e o encarei, apontei-lhe o dedo:
_Foi o senhor, quem começou tudo.
Abismados, os meninos e o padre olharam pra mim, tranquilamente disse:
_Quando pequenos se juntam, não existe um grande que ouse enfrentá-los, aprendemos isso na aula de catequese.
Os meninos riram, pela primeira vez na vida eu vi um homem preto ficar vermelho, primeiro veio à cólera, quando as minhas palavras fizeram sentido, ele foi se acalmando e voltando a sua cor normal, como quem guerreia consigo mesmo.
Levantou-se da cadeira e nos deixou, saiu pra não explodir, ficamos saboreando nossa vitória, não a contra o valentão, dobrar um adulto letrado é uma gloria, quando se tem 10 anos.
Voltou uns vinte minutos mais tarde e nos mandou embora, nunca mais falou a respeito.
A última noticia que tive do Fuscão foi que ele era treinador de boxe no clube do CMTC.
O Batata foi a primeira pessoa que eu soube que se converteu ao protestantismo.
A última vez que vi o padre Paulo, ele estava no meio de uma multidão... no comício da Diretas Já.



terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O lago


É possível que as maiores mudanças que o Educa sofreu, foi durante a minha estada por lá, então vejamos:
A fanfarra foi desfeita, a colchoaria, a olaria e a cozinha central deram seus últimos passos, o lar 11 deixou de ser um pavilhão pra se tornar um asilo, a mata de trás da olaria e a horta do Japonês já não eram territórios de Educandário, conforme eu crescia, meus caminhos iam diminuindo, além dos amigos, os funcionários amigos estavam indo embora, aos poucos, o Educa foi perdendo o brilho de outrora.
Quando me fui, ainda que morasse no mesmo bairro, me recusava a transpor a portaria, não queria ver a casa da minha infância virar uma lembrança triste.
Esse tempo durou até os meus filhos completarem a idade escolar, matriculei-os no grupo escolar, e vi que meus medos não tinham fundamentos, o Educa havia melhorado, no tocante à educação, aproveitei e matriculei-os na Ozem, onde encontrei pessoas boas, educadores na melhor acepção da palavra.
Meus meninos, feito eu, passaram a ter o Educa, nas melhores lembranças da infância.
Sempre que eu estava de folga, fazia questão de levá-los ao prédio da Ozem, a tarde voltava pra buscá-los.
Num belo dia, cheguei muito mais cedo e não queria ficar sentado na escada que dava caminho da cozinha para o Ozem, voltei pra perto do grupo escolar e me sentei na guia, de frente para o bambuzal, onde, em dias de aula, eu me sentava com os meus amigos, na parte de fora da guia precipita uma leve descida, que terminava no lago... esse lago não existe mais.
Sentado ali, voltei mentalmente para aquele tempo, que ali, existia um lago e, era um lago sem nome, dezena de árvores o circundava e isso dava uma sombra permanente, em horário de recreio, alguns casais corriam pra lá, debaixo da imponente sombra, se acariciavam e trocavam palavras de amor, mas logo vinha o padre Paulo ou o irmão Lacídes pra expulsá-los de lá.
Parecia uma água parada, as pequenas frutinhas e os galhos podres que caíam, davam a impressão de ausência de vida, nunca vi alguém pescando por ali, achava mesmo que naquela água rasa não tinha peixes.
Por ser facilmente avistado da casa do Domingão, ninguém se arriscava há ficar muito tempo por ali, quase ninguém parava, era só passagem.
Não tinha nome e, é provável que ninguém tenha feito uma foto dele, porém, todo mundo ha de se lembrar de quando soldados do COI atravessaram de moto, numa corda esticada nas arvores.
E, pra meu azar, essa foi uma mudança que eu tive que presenciar.
Em 1982, reinava o clima de liberdade no Educa, os carrascos já haviam saído e os novos ares prometiam mudanças, marcamos um contra e misturados com os caras de 13, fomos enfrentar a rapa, ao passar pelo caminho da piscina, percebemos que o seu Paulo vinha com o trator na estradinha do lago, o Paulo tratorista era mais uma daquelas pessoas que ficaram na memória do menino que eu fui, mancava da perna direita e tinha um humor de cão, perguntamos o que ele ia fazer, ele disse que cavaria uma valeta e a água escorreria pra contenção do campo, depois traria terra e taparia o buraco, tudo rapidinho.
Os meninos disseram que iam ficar pra ver o serviço, eu disse que não ia ver, aquilo iria ferir a minha memória, deixar de jogar bola pra ver um buraco sendo cavado?Sartei de banda.
Desci pro campo e me preparei pro jogo e dava pra ver o seu Paulo cavando a valeta, quando ele terminou a valeta, uma quantidade enorme da água inundou a contenção, aquela onde escoa a água da bica, e gradativamente foi se esvaindo.
_Pronto, já era o lago. Disse eu.
Nesse mesmo momento, o Adaílton do 20 gritou:
_Peixe, peixe, muito peixe.
Corremos e subimos o barranco, o lago estava seco, uma enorme poça de lama e os peixes se debatendo, dezenas de centenas de peixes, todos enormes.
Em desespero o seu Paulo gritou pra que alguém corresse à cozinha e chamasse a dona Mercedes.

Enormes panelas foram levadas para a cozinha central, deve ter ficado uma delicia, eu digo isso porque fiquei uns 3 dias sem comer na cozinha central, eu e a minha turma comemos peixe até de óculos.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Os caras da antiga.


Já disse que passei um determinado período da minha vida no Educa, mas não convivi só com os caras do meu tempo, os mais antigos eram funcionários e uma parte deles vinha visitar o colégio e alguns moravam perto de lá.
Também disse que eu fui adotado pelo Ditinho e, como ele e o Batista se consideravam irmãos, esse segundo me chamava de sobrinho.
Contaram que eles e mais dois amigos da idade deles, nos anos 60, gravaram um compacto duplo, formaram um conjunto no estilo dos "Golden Boys", nunca me mostraram esse disco, mas juraram que o Batista o guardava a sete chaves.
Tinham eles aquele habita de dizer:
_No meu tempo isso, no meu tempo aquilo...
Eram de outra geração, ainda que esse papo me aborrecesse, eu respeitava e ouvia as histórias deles.
Depois que sai do Educa, fui morar com o Ditinho na Avenida 9 de Julho, vez em quando voltávamos ao Educa, pra visitar o Batista e os dois caiam sempre com a mesma ladainha... No meu tempo, no meu tempo.
Essa era o tempo das baladas e em todos os salões de São Paulo eu curti, todos os bailes Black tive a honra de conhecer.
Numa das visitas, o Batista sugeriu que eu fosse ao baile do Clube Holmes, mas que dificilmente eu poderia entrar, já que a casa era frequentada pelo pessoal mais velho.
_Pelos Dinossauros? Brinquei com eles.
Tinha mesmo a fama, a molecada não frequentava a casa, os frequentadores eram chamados de "Nêgo véio".
A vontade de entrar nessa pista foi tanta que, no outro fim de semana eu arredondei o Black, vesti a minha camisa branca com gola alta e babada no pulso, calça preta e o mocassim bicolor e. O Dito ainda dizendo que eu não entraria.
Pegamos um ônibus e descemos na Praça da Sé, dali pra Liberdade foi um pulo, na entrada havia um segurança tipo ÃO... altão, fortão e negão.
Quando eu e o Dito nos aproximamos, já com os ingressos na mão, esticou o braço em nossa direção.
_Para, moleque não entra.
Pra me defender menti:
_Já tenho 18 anos.
O segurança não me ouviu, sequer olhou pra minha fachada, apontou para os pés do Ditinho, ele estava calçando um All Star Converter de cano alto.
_Moleque de tênis não entra.
Contrariado, ele disse em sua defesa:
_Mas, esse menino é meu filho.
Eu já na roleta e o meu ingresso na mão da bilheteira, o segurança a me olhar, pra confirmar a história do Ditinho.
Dei de ombros e disse:
_Não, não conheço essa pessoa.

O melhor dos amigos

Amigo é coisa de alma, você conhece a pessoa e sabe que vão caminhar e evoluir juntos. No caso do meu amigo Viana, a coisa aconteceu diferente, logo que cheguei no Educa, veio a repulsa e...Pah.
Saímos no braço e, junto com ele, peguei o meu primeiro castigo no corredor, o castigo era pra ser até a meia noite, nós dois em pé e o vigilante Nenê em sua mesinha, lá pras 21 horas, ele ferrou no sono, roncava e bufava e, com intervalos de minutos, peidava.
Assistindo aquela cena bizarra, segurando a boca com as mãos, rimos a valer, depois de um tempo veio a primeira armação da dupla, sem combinar nada, entramos pro segundo quarto e fomos dormir.
Lá pras 5 horas da manhã, como éramos vizinhos de cama, o vigilante nos sacudia, nos perguntou o que é que fazíamos deitados, na maior cara dura, o Viana disse:
_À meia noite em ponto, o senhor nos liberou do castigo.
_Foi mesmo, não se lembra? Disse eu, ainda sonolento.
Fazia frio, além do gorrinho que lhe tapava as orelhas, ele estava embrulhado num cobertor ordinário, tirou o gorro da cabeça, os olhos vermelhos de quem acabara de acordar, contrariado coçou a cabeça, ficou um tempo a nos fitar, creio que tentava buscar a cena na memória, depois duns breves segundos, sorriu e nos pediu desculpas.
Já os meninos estavam todos acordados, de desaforo, o Odilon deu-nos a obrigação de limpar o banheirão, essa seria a nossa escala a partir daquele dia, fomos sem nos olhar, começamos a limpeza em silêncio, a cara do vigilante a nos perseguir na memória, a cabo de alguns minutos não aguentamos mais e desatamos em gargalhadas, o Sergio passou no corredor e nos viu caídos no chão, abraçados e rindo, deu de ombros e disse:
_Ontem estavam se matando... só tem doido nesse lugar.
E rimos mais ainda, começava ali, a história da dupla dinâmica do 14.
Não nos largamos mais, às vezes em trio, quarteto ou em bando, mas sempre a corda e a caçamba.
Nessa época, eu já era viciado em leitura, alguns adultos, feito o seu Tinoco, o seu Felipe da portaria e o Ditinho, compravam livros em sebos e me davam, meu armário não tinha espaço pra roupas, era abarrotado de livros.
Para conseguir lê-los, tinha que fugir do amigo, procurar um lugar calmo e desfrutar da leitura, eu ficava no bosque, deitado à sombra da Araucária, enquanto os amigos batiam as proximidades à minha procura.
Ganhei o "São Bernardo" do Graciliano Ramos do seu Tinoco e usando as palavras dele, me acabei na leitura, puro deleite.
Li esse livro em dois dias e, como fiquei sumido nesse meio tempo, pra me desculpar, contei a história todinha pro amigo, tudo mesmo, todos os detalhes dos personagens e a implicação política desta maravilhosa obra do autor alagoano.
Éramos muito diferentes, como dois lados de uma moeda, intelecto e habilidade em corpos diferentes, ele admirava a minha capacidade de assimilação e eu admirava a sua capacidade prática, em tudo o que eu não tinha habilidade motora, ele era craque.
Passaram-se alguns anos, nós já no 22, comecei a participar de reuniões estudantis, o amigo me seguiu, disse que estava preocupado com os rumos do país, toda aquela conversa pra boi dormir e tal e coisa, depois soltou uma sonora gargalhada e disse;
_Cara, tô louco pra dar um sal nas estudantes.
Anos atrás, fiz uma palestra pra jovens estudantes e me perguntaram qual era a motivação do jovem da periferia na luta contra a ditadura, respondi na bucha:
_As calças apertadas das estudantes. A plateia veio abaixo, os risos duraram uns cinco minutos.
Voltando a história, esperávamos nas escadas do Santa Amália e pra impressionar uma loirinha, o Viana começou a debater com um estudante, o tema era Graciliano Ramos, o outro falava e o Viana rebatia, parei e fiquei admirando a contenda, orgulhoso do amigo, discorreu sobre tudo com maestria e tudo com palavras simples, acaba que ganhou a disputa, como consequência, levou a loirinha pra um rolê.
Voltou da Fradique Coutinho cheio de marra, dentro do ônibus da Castro, eu disse:
_Caramba neguinho, nunca imaginei que você fosse acabar lendo o livro, fiquei orgulhoso de você.
No fim de uma gargalhada, ele me saiu com essa:
_Ler? Eu não li nada, tudo o que eu falei foi o que você havia me dito.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A gente dá o que tem.


O seu Odilon e a dona Ana, é bem provável que tenham tido uma passagem bem desgraçada, cada um deles, em suas infâncias.
Isso justificaria os maus tratos que deram pros internos do lar 14, dois bichos, que resolveram constituir família e acharam um serviço com casa e comida.
Sua função era bem específica; cuidar de 45 menores, dar-lhes uma educação e protegê-los.
Não que isso fosse um serviço fácil, mas durante o tempo que o exerceram, deturparam tudo... espancavam, castigavam e os expunham à escravidão infantil e, lucravam com isso, com a conivência da diretoria e da Liga das Senhoras Católicas.
Analfabeto e coxo da perna esquerda carregava sempre um revólver à cinta, a esposa achava tudo normal.
Quando explodiu na imprensa, a verdadeira condição à que os internos do Educa eram submetidos, a primeira cabeça que rolou, depois dos irmãos, foi a do Odilon.
A sensação de liberdade que nos alcançou nesse dia, deve ter sido igual a da assinatura da lei áurea, quando voltamos da escola, já havia se escafedido o nosso algoz.
Respiramos um ar de liberdade que não conhecíamos e ficou o Luis Antonio, que era o interno mais velho, como nosso responsável.
Luis Antonio, aliás, uma das almas mais iluminadas que eu já tive o prazer de conhecer.
Nesse ponto, tem uma coisa que acontece com meninos, que não cabe explicação... era ruim o Odilon? Ah, ele era bem pior que eu descrevi.
Mas, pra meninos que não tem pai, era um pai ruim, mas era a única coisa que se aproximava da figura de um pai, pelo menos pra aqueles que não tinham um pai, que coisa doida.
E então, contrariando tudo o que o bom senso chama de razoável, fomos, eu, o Viana e o Adilson (Ovinho) visitar o Odilon em sua nova residência.
Foi morar na Vila Borges, bem perto da Foseco, nos recebeu bem o casal, ficamos a tarde toda e eu tive a chance de brincar de novo com a menina Márcia, a filha que tinha uns seis anos.
Quando voltamos pro Educa, já nos paralelepípedos que ladeiam o campão e parte em direção ao Aprendizado, os três tinham a companhia do arrependimento, o silêncio pesava.
Não falei palavra nenhuma, o Viana disse:
_Que merda a gente acabou de fazer?Esse casal tratava a gente feito bicho e a gente sai pra visitar, como se fossem pessoas de bem.
Quando o Viana ficava nervoso, uma veia aumentava e ficava visível em sua testa, permaneci em silêncio, sentia mesmo a vergonha do amigo.
E veio do Adilson, o amigo de menor inteligência, entre todos os amigos:

_Eles não eram bons, é verdade, mas nós somos. Nascemos assim e nem a longa convivência com pessoas ruins, nos há de tirar essa bondade, se é verdade que cada um dá o que tem, nós acabamos de dar à eles o que eles nunca nos deram.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O Batata


Já fora do Educa, fomos visitar e tiramos essa foto. Eu, meu melhor amigo(Viana) e o Rogério Japonês, a máquina era do Ditinho e ele bateu as fotos, ali no 14 ficaram os guris mais novos, sempre que passávamos por lá, os guris faziam festa...esse guri que está usando o galho da Paineira feito cipó é o Batata, por ser loirinho recebeu o apelido de Alemão-Batata, com o passar dos tempos ficou só Batata.
Desses guris ligados na eletricidade, que nunca ficam quietos, vez em quando levávamo-lo pras aventuras.
Anos mais tarde, quando eu passeava por Mariana, em Minas, o cara que passava o som da banda do Lô Borges, quando me viu, me gritou e eu fiquei sem fazer ideia de quem se tratava, ele disse já me apertando contra o peito:
_Sou eu, o Batata... do lar 14.
Retribui o carinho, ele largou a mesa de som e fomos pra um boteco do outro lado da praça, chamamos umas brêjas e sentamo-nos.
Lembrou que começou a gostar dos caras do Clube da Esquina de tanto ouvir os meus discos e que tinha por mim o apreço de um irmão mais velho.
Eu fiquei espantado, é certo que, reencontrar um amigo depois de muitos anos é um motivo de alegria, eu só não entendia o que eu tinha feito pra merecer tal consideração.
Pra me justificar, entre um copo e outro, contou uma história, que eu participei e já havia me esquecido...
Assim que a dona Camila e o seu marido Carlão foram escorraçados da diretoria do E.D. D, todos os internos com mais de 14 anos foram transferidos pro lar 22, a princípio esqueceram-se de mim e eu tive que ficar no 14, a justificativa que deram foi que eu, por me dar bem com os menores, podia auxiliar o larista, ideia que não contou com a minha simpatia, eu queria ficar com os meus amigos.
Os laristas eram o Camargo e sua esposa Neuza, boas pessoas e ainda jovens, vi os meninos gozarem um tempo melhor que o meu, na idade deles.
Num belo fim de semana, o casal saiu de folga, não tinha emergente nenhum e disseram que o pavilhão estava sob a minha responsabilidade.
Fazer o quê? Fiquei de chefe por um fim de semana.
Servi o café da manhã, chá mate e um pedaço de filão com manteiga pra cada, havia uns 20 meninos, o resto fora passar o fim de semana com suas famílias. Assim que escovaram os dentes e cada um terminou a sua parte na escala, fui à sapateira e entreguei a bola e a recomendação que ficassem todos juntos, se alguém saísse, todos saíam.
Assim que eles desceram pro campo, peguei um livro e subi pros pés de uválha, sentei-me e comecei a leitura.
Nem bem tinha lido uns três capítulos, sobe um guri gritando:
_Niltão, o Batata se machucou, ele foi dar uma bicicleta e machucou o braço.
Antes de ele concluir eu já estava correndo pro campo, de cima do barranco, pude ver que havia um bolinho perto da trave e o Batata estava no chão, apressei o passo.
Os meninos abriram e eu pude avistar o Batata, ainda que eu não tenha demonstrado, a cena foi de arrepiar, o braço direito dele havia se soltado do osso e balançava, os outros meninos tinham olhares de puro desespero, eu também estava, mas peguei-o no colo e fui dando ordens:
_Danilo. Pega a chave e tranca o pavilhão, Leandro corre e vai chamar o irmão Wilson, fala pra ele ir pra enfermaria urgente, o resto vem comigo.
Ajeitei o braço que pendia, fechei o corpo dele nos meus braços e com a mão direita segurava o braço na posição que deveria ser, subimos o barranco do campo, paramos na estrada e esperamos o Danilo se juntar a nós, quando via o braço, o Batata desandava a chorar.
_Moleque, não olha pro braço, ninguém olha pro braço dele.
O Danilo chegou e iniciamos a jornada até a assistência, ao lado do pavilhão 11, dava pra ouvir os passos dos meninos, o atrito nas pedras e todos tinha uma apreensão em seus corações.
Quando chegamos no 12, disse pra cada um contar uma história, histórias ninguém sabia, uma piada mais besta que a outra, minha coluna doía meu braço direito estava duro, mas o Batata ria, ao chegar aos pés de jabuticaba, deu pra avistar a Assistência e o irmão Wilson não havia chegado ainda, falei pro moleques avançarem nos pés, uma parte seria dada pra mim e pro Batata.
Fizeram à limpa e fomos pra entrada da Assistência, enquanto o socorro não chegava, os meninos voltaram a atacar com suas piadas, quando a Kombi do seu Matos chegou com o irmão Wilson, o Batata já estava tendo convulsões... de tanto rir.
Sem o nosso medo, o enfermeiro pegou o braço, ajeitou-o e enfaixou, havia passado na administração e pego a ficha do menino e o levou pro hospital.
Voltamos ao pavilhão e ninguém mais queria jogar bola, ficamos todos na área em silêncio, a cabeça voltada pro destino do Batata, deu a hora do almoço e descemos pra cozinha central em silêncio.
A Kombi chegou à mesma hora que nós, o irmão Wilson me entregou o menino com o braço engessado, eu e os guris ficamos felizes.
Assim que desceu do carro gritou:
_Aquela partida não terminou, vou querer revanche.