quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Em memória de um amigo especial.


Não conheci o Valdir Nascimento no Educandário Dom Duarte, quando de lá sai, fiquei um tempo morando com o meu pai adotivo, o Ditinho da gráfica no centro de Sampa.
E conheci-o, nesse tempo, ele era chefe da cozinha do Maksoud Plaza, disse-me que aprendera a profissão com o irmão Simão, quando era interno do pavilhão 16, homossexual assumido, tinha ideias próprias e uma dignidade na postura e, por conta disso, estava sempre envolto em discussões calorosas.
Quando eu cheguei no Educa, ele já estava saindo.
O Valdir costumava dizer que, toda pessoa, independente de religião, raça ou opção sexual tem que andar de cabeça erguida e fazer valer seus direitos. Nesse tempo, que o adulto em mim estava quase por se formar, esse adulto deu-me os últimos ingredientes e, é claro que ele virou um amigo de primeira grandeza.
Mais tarde, lhe apresentei a Ângela, de quem ele virou mais amigo ainda do que era meu.
Num tempo de dificuldade financeiras, convidamos-o para morar conosco, na Osvaldão e, ele experimentou, pela primeira vez na vida, o prazer de ter uma família, para os meus filhos, ele sempre será o tio Valdir.
Quando soube que era portador do vírus HIV, como era do seu feitio, não fez drama e encarou a situação de frente e, quando sabia que o fim se aproximava, internou-se.
Disse que queria poupar as crianças e, não queria que os amigos o vissem no fim, sem um sorriso.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A Cleide.


Júlio era o nome do homem que administrava duas hortas que se encontravam dentro das terras do Educandário Dom Duarte, nascido na terra do sol nascente, quase ninguém o chamava pelo nome, as hortas eram do Japonês e pronto.
Uma delas ficava ao lado do campo do 14, uma boa parte da estrada que levava ao cenáculo, caía num aclive longo e morria na parte baixa, quando encontrava o lago. Essa parte, agora, pertence ao CDHU-Educandário.
A segunda horta ficava nas encostas da fileira de pavilhões que se seguiam na estrada da pensão, uns três lagos, incluindo o do 24, a abasteciam, essa, se encontrava onde hoje compreende as terras da COHAB-Educandário.
A turma que estudava pela manhã, podia ver o esguichar da irrigação, eles formavam arco de água e mantinham a plantação sempre molhada.
No fim da horta, se encontrava a Escola Estadual de primeiro grau Luís Elias Attiê, eu e meus amigos estudávamos nela, desde a inauguração, um ano antes.
Estamos em março de 1979 da era cristã e, depois de dois anos seguidos, ter tido o desprazer de estudar em salas onde predominavam alunos do gênero masculino, sendo que, eram todos internos, minha sala tem meninas e são elas:
As duas filhas do seu Alfredo, que quase não falavam e eu, imbecilmente, esqueci-lhes os nomes, tem a linda Claudia, que é prima do Hércules e do Junior, tem a encantadora Ylka, a filha da professora Íris e do seu João Bellini, a Verônica, filha do seu Valdemar sapateiro, a Lígia, aquela bandida que me roubou o coração, tem também a Valdeci, aquela que contei uma aventura de beijo e, por fim, a Cleide.
Pelejei para coloca-la um predicado adequado e, adequado mesmo só me veio a palavra esquisita.
Já disse que, por esse tempo, menina nenhuma queria conta comigo, quando eu avançava nas negociações, virava amigo, então eu era o amigo das meninas e, quando eu não soava na quadra, estava rodeado de meninas, digo, de amigas.
A Cleide era uma guria de estatura baixa, olhos dum castanho próximos do mel, sardas no rosto, nariz e boca finos e suaves, não se podia ter noção da sua silhueta, pois ela usava roupas largas, ou peça por cima da peça e, quando ria, lembrava o freio de um automóvel.
Quando riu, pela primeira vez em sala, fez com que todos rissem também, ela olhou desafiadora para todos, da sala toda, apenas um guri não riu...eu.
Ao meu lado direito havia uma carteira vazia, ela se levantou e se mudou para lá, agora estava perfeito, a esquisita ao lado do esquisito.
Ela morava no BNH, por esse tempo, pessoas que moravam no BNH eram tidas como classe média, classe média em periferia é burguês, então ela negava esse fato, dizia que morava na Vila Operária.
Ao contrário da Valdeci, a Cleide não era nerd, entrava na conversa em hora imprópria, tinha mania de, quando conversava, ficar pegando na pessoa e, de quando em quando, dava a sua risada, chamando a atenção para o trio de esquisitos e, assim mesmo, quando ela faltava às aulas, sentíamos a falta dela.
Num belo dia, no pátio, enquanto ela ajeitava a gola da minha camisa e eu tirava a mão dela, me veio com essa.
_meu querido, domingo agora é dia de visita no Educa, certo???
_. Isso, domingo de visita.
_E você recebe visitas???
_Claro que não, vivacidade, como é que alguém que não tem família vai receber visitas???
_. Então está combinado, eu vou te visitar no Educa.
É claro que a ideia era absurda, ridícula e sem sentido, respirei fundo e disse:
_. Tudo bem, mas vê se veste umas roupas de gente.
Saindo da escola, naquele dia, não fui com os amigos, no caminho da horta, sai pelo portão da frente e fui com a amiga ao BNH, ela contou para os pais, que também eram esquisitos, e eles nem questionaram, me recomendaram que não deixasse a filha correr qualquer tipo de risco.
_. Podem deixar, seu Justo e dona Lourdes, não se preocupem.
Nem me passou pela cabeça que ela pudesse correr algum tipo de risco, vesti a minha melhor roupa, já era domingo, as visitas entravam na portaria, não tive inveja de ninguém, a minha visita chegaria em breve.
Então ela chegou e, estava linda numa calça jeans azul e tênis azul, a camisa Hering rosa deixava transparecer o formato de seios que ainda não cabiam em sutiã e os cabelos soltos esvoaçavam ao vento, me deu um beijo na face e dependurou no meu braço.
_. Caramba, por uns segundos, pensei que fosse uma mulher.
_. Pronto, acabou de estragar uma cena digna de cinema, seu esquisito.
Ao abrir-nos o portão, o seu Felipe deu um sorriso cúmplice de aprovação e sorriu.
Subimos a estrada de paralelepípedos, na grama, as famílias estendiam as toalhas no chão e saboreavam seus lanches, comidas feitas pelas mães, não pelo irmão Simão, à medida que subíamos, eu ia mostrando os prédios e dando os nomes deles, um a um, como se fosse um guia turístico.
Nunca havia passado pela minha cabeça namorar com a Cleide, mas talvez eu a pedisse ao fim da visita.
Passamos no 14 e ficamos um tempo com os amigos e eles contaram tudo sobre ser um interno, claro que a Cleide ficou fascinada, com não havia larista, entramos no pavilhão e mostramos tudo, saímos pela estrada do 12 e chegamos nas jabuticabeiras do 11, não precisava subir no pé para apanhar as frutas e, ela fez questão de subir.
Tudo ia maravilhosamente bem, mas o tinhoso quando está de folga, manda o secretário, nesse caso, os secretários.
No meio do caminho, entre a assistência e a casa do irmão Domingo, ficava a serralheria, de lá pularam quatro guris na estrada, disseram que ninguém podia passar por ali, ficaram a uns quinze metros de nós, com pedras nas mãos.
Tratava-se do Romão, o Ronaldo, o Valdeci e o Luizinho...dois do meu tamanho e dois menores, para que não houvesse perigo para a menina, eu tinha que negociar.
Fiz sinal para que ela ficasse ali, levantei as mãos e fui ter com os guris do 13 que, na época, não eram meus amigos.
Quando cheguei bem perto, passei a explicar que qualquer coisa que acontecesse à menina, poderia gerar grandes complicações, estava já chegando à um acordo, quando olhei para trás, a menina estava descalça e com as barras das calças arregaçadas.
Como eles tinham os olhares presos em mim, não perceberam que ela havia iniciado uma corrida, só deu tempo de eu sair de lado, ela pulou com os dois pés e atingiu o peito do Valdeci, no impacto, o Romão caiu junto, os dois maiores estavam no chão, os dois menores correram para o pavilhão, pegamos os tênis dela e nos apressamos para sair dali.
Os guris que haviam corrido, voltaram com o resto que faltava do pavilhão e, já corríamos em velocidade, para qualquer lado que corrêssemos seriamos alcançados, ao passar pela frente da casa do irmão Domingos gritei:
_. Ô Domingão.
Feito isso, paramos de correr e ela passou a calçar os tênis, o irmão Domingo saiu e quis saber quem o havia chamado, eu disse que não havia sido nós, talvez o grupo que vinha correndo.
O bando não tinha como saber, a casa fica no fim da curva, só viram que nós sumimos na curva e, quando nos acharam, deram de cara com o diretor e já imaginaram que haviam sido caguetados, usando um termo educandáriano, fizeram meia volta, o irmão Domingo é quem corria, agora, atrás deles.
Descemos o bambuzal e voltamos para a grama, onde as famílias se reuniam, a mãe do Adalberto nos convidou para o banquete, delicia de bolinhos de bacalhau com amêndoas.
Por garantia, levei a moça para casa, os pais perguntaram-me se tudo correra bem.
_. Tudo normal, seu Justo e dona Lourdes...tudo normal.

domingo, 15 de janeiro de 2017

O contador de histórias


Primeiro devo dizer que, se trata de uma graduação, há que se ser um ouvinte paciente e, se começa de criança, ninguém que não tenha o baú da memória cheio, conseguirá contá-las.
Na Casa da Infância, vi imagens de um conflito que acontecia em Portugal e me interessei, a programação foi abruptamente cortada do ar, estávamos em 1974 e, sob o regime ditatorial.
Claro que corri entre os adultos, querendo as respostas, eles corriam de mim como da cruz corre o tinhoso.
Por fim, tive que recorrer à ajuda do padre Zezinho, aquele mesmo que era cantor e, sempre almoçava por lá.
Ele me contou que se tratava da Revolução dos cravos, de quebra me deu uma verdadeira lição da história das civilizações e, me disse que todo mundo tem uma história a contar, basta que alguém esteja disposto a ouvir, mas não as coaja, tenha paciência de esperar o tempo delas.
Segui esse conselho e, para encher o baú da minha memória, fui o mais paciente dos ouvintes, conversava com quase todos os funcionários do Educandário Dom Duarte e, de fato, todos tinham algo a contar.
Bom, o irmão José foi uma das exceções dessa regra, mas o seu Tinoco contava de quando os paranaenses, vindos pela estrada velha de. Cotias, surpreenderam o destacamento de Pinheiros, isso contou muito para a derrota dos paulistas na revolução de 1930.
O Turquinho contava de torcedores fanáticos que depredaram metade do centro de São Paulo, em 1936, porquê a Itália repatriou os jogadores brasileiros, o padre Paulo contava sobre o tempo que ele era estudante no Ceará, o seu Felipe contava de suas aventuras de jovem, nas boates e casas de meretrício da Boca do lixo.
Certa feita, um sujeito foi fuzilado no Rio Pequeno e ele havia sido interno do Educa, nos noticiários, diziam se tratar de um bandido da mais alta periculosidade, na casinha do campão, todos discutiam o fato, o Batista marceneiro, que era do tempo dele, disse irritado:
_. Essa história não é bem assim.
No mesmo instante em que disse isso, olhou para todos os lados e se calou arrependido.
Durante duas semanas, fui implacável na perseguição do Batista, não houve um lugar que ele pudesse se esconder que eu não o achasse, vencido, ele abriu o verbo.
Com riqueza de detalhes, contou a história do amigo, desde que chegaram juntos no mesmo pavilhão, até o fatídico dia do fuzilamento, na verdade, ele comandava um grupo armado que se chamava "Brigada Libertária do Povo" e lutava contra a ditadura vigente.
Bom, o seu Bernardo não tinha uma dessas para contar, se tratava só de uma história de visagem e folclore da sua terra natal, ele era do tipo detalhista e tinha um jeito de narrar bem pausado, como se estivesse revivendo o momento.
Eu estava em pé, na estrada de paralelepípedos e ele estava agachado, enquanto contava, batia com a ferramenta entre as frestas, para tirar o mato que, teimosamente, cresce ali.
O padre Paulo, que era o campeão de todos os chatos, desceu da administração e veio até nós:
_. Tem cabimento, atrapalhar o serviço do funcionário???
Desaforado que eu era, peguei uma espátula e passei a ajudar o seu Bernardo, o padreco saiu bufando.
No fim daquela e, mais umas três histórias, o sol já se punha, nos despedimos e eu, fiquei mais rico.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Um prelúdio


Uma vegetação separava o campão da subida de paralelepípedos, uma cerca viva e, não nos atenhamos ao nome que ela possa ter, na primavera ela dava umas flores de um tom de rosa desbotado, a mesma cerca separava a quadra de terra batida do fosso do campão, onde o seu Alones corria todas as tarde e, essas, eram de um rosa quase vermelho, a casa do seu Paulo tratorista, que todos chamavam de lar 10, tinha a mesma cerca, só que ali, elas nasciam amarelas.
No espaço baldio, entre a coelharia e a assistência, bandos de andorinhas e bicos-de-lata disputavam no capim alto, os dois bandos marcavam presença na base do alarido.
Atrás do pavilhão 12, a dona Tereza plantou uns pés de dama-da-noite, eram lindas as flores brancas e, nas noites mais escuras seu odor adocicado se espalhava e, em toda a planície norte do Educandário Dom Duarte se podia senti-lo.
E existem pessoas que viverão uma vida longa, sem ver nada disso.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A castanheira


Definitivamente, eu gosto muito de árvores, meu hobby predileto é plantá-las, já plantei árvores em lugares absurdos da capital de Sampa.
Elas sempre habitaram a minha vida, antes do Educandário Dom Duarte eu já tinha essa paixão, na Casa da Infância uma enorme seringueira reinava absoluta no canto da quadra, a coisa que eu mais gostava de fazer era subir em sua copa, de lá, se podia ver uma grande extensão da avenida Nazareth.
Quando cheguei ao Educa essa paixão cresceu e virou amor, dificilmente, o leitor não irá encontrar, nas minhas narrativas, uma árvore.
Elas são grande parte da minha infância e, como tal, são amigas da minha infância.
Já contei da jaqueira da subida, do abacateiro da bifurcação, da araucária gigante do bosque, das uvalhas de trás do pavilhão e dos pinheiros que ladeavam a estrada do 12, me lembro que quando desembarquei no 14, em volta do prédio amarelo havia uma imensidão de árvores, acalmei o coração e me disse:
_. Ah, eu posso morar num lugar lindo assim.
Talvez algum dos antigos moradores do 14 possam ter esquecido dela e, eu posso entender isso, por vezes, ela causava revolta nos meninos.
Do lado direito do pavilhão, se estendia uma enorme área de terra vermelha batida, que vinha do barranco das uvalhas e terminava por trás da fileira de seringueiras, isso compreendia uns trinta metros quadrados, do lado de fora da rouparia, ela imperava, seus galhos eram fortes e grossos e se abriam para os lados, sua sombra dominava a área toda, incluindo a rouparia e o refeitório, em tardes de verão, ali sempre era o melhor lugar para brincar ou contar histórias.
O que revoltava os meninos era a obrigação diária de limpar aquele pátio, não pelo trabalho em si, é que a castanheira jogava constantemente a sua produção, as castanhas vinham ao chão, cada três ou quatro delas, envolvidas em uma proteção de espinhos, esses eram uma tortura para a pele, havia uma época do ano que essa área parecia um tapete marrom, de tanto espinho.
Em compensação, na época certa, a castanha que vinha dentro, depois de cozida, fazia toda a tortura valer à pena.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

O pavilhão 22


Eu sempre vou dizer que o 14 foi um lar para mim, os mais caros e melhores amigos estavam lá, eu e aqueles malucos tínhamos orgulho de nos considerarmos irmãos, no entanto, os últimos dois anos de Educandário Dom Duarte, passei no lar 22.
Em 1981, alguns meses após a queda da diretoria da dona Camila, a dona Néri e o padre Paulo assumiram, começou um tempo de paz no Educa.
O número de internos que tinham idade acima de 14 anos não chegava à 50 e foi decidido que eles iriam morar todos juntos, no mesmo pavilhão, o lar escolhido foi o 22, o seu Raul do 21, que havia sobrevivido aos carrascos de outrora, seria o chefe da turma.
14 anos, eu já havia completado, da velha turma do 14 só havia sobrado eu, o meu irmão, o Viana e o Tadeu.
Gostei muito da ideia de convivermos todos da mesma idade num pavilhão, aquilo seria o máximo, em termos de experiência, a fase de adulto seria oficializada, eu já ensaiava a minha despedida do Educa.
Começaram a convocar todos à diretoria, chamaram o Viana, o Tadeu e até o meu irmão, que é dois anos mais jovem que eu e, não me chamaram.
Desci à diretoria e encontrei na sala, os dois diretores me receberam, disseram que, pelo fato de eu me dar bem com os menores, poderia ser de grande ajuda para o casal Camargo e Neuza, já que eles haviam começado há poucos no comando do lar.
Como eu nunca havia me visto como um futuro funcionário, a ideia não me agradou, por me faltar argumentos, acatei a ordem e, frustrado, sai da sala.
Quando sai da sala, o seu Reginaldo me chamou e mandou que eu fechasse a porta, me contou o verdadeiro motivo de eu não estar na lista do novo pavilhão.
Aquela história do Attiê estava na minha ficha e, isso fazia de mim um fator de risco, segundo a diretoria, eu podia liderar uma revolução, num pavilhão cheio de adolescentes.
Aquilo foi um balde de água gelada, o caminho da administração até o lar, que eu não gastava mais que dez minutos, fiz em uma hora, eu carregava toda a revolta nas costas e, isso pesa toneladas.
Todos os caras mais legais do Educa, juntos num pavilhão e o Niltão no meio da pivetada, uma revolta latejava por dentro, mais cedo ou mais tarde ela explodiria.
Quando eu vinha da escola ou do trabalho, encontrava os amigos e, eles falavam de como era bom a convivência entre eles, eu ouvia calado, parecia que fosse uma festa e eu não havia sido convidado, eu ria, para não chorar.
Num belo dia, eu estava perto do teatro e vi o Luizinho (Guênta) descendo a escada do 13, cheio de sacolas, ele parou perto dos buchinhos e ficou esperando alguém, dali há pouco desceu o Pelézinho do 12, eu perguntei se eles iam viajar.
_. Não, nós estamos mudando para o 22.
Isso foi a gota que faltava no copo da minha revolta, esses dois, comparados a mim, eram infantis.
Subi correndo ao 14, peguei tudo o que me pertencia e desci à administração, fui grosso, empurrei a porta e disse:
_. Vocês não deviam ter medo de mim, num pavilhão cheio de adolescentes, deviam ter medo de mim num pavilhão cheio de crianças...
E, sem que os dois tivessem chances de argumentar, descarreguei tudo, ao final, os dois estavam de olhos arregalados, o padre Paulo coçava um cabelo que ele imaginava que tinha e a dona Néri foi encher um copo com água.
_. Eu não sei como vai ser isso, eu durmo na frente do 22, mas para o 14 eu não volto mais.
Na verdade, eu só fiquei cinco minutos na frente do pavilhão 22, foi o tempo que levou para chegar o bilhete para o seu Raul, quando entrei na sala, fui saudado pelo Galito, o Jurandir e pelo Claudio Farofa, começou assim os meus últimos 2 anos de. Educa, a fase que me diplomou adulto.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Os meninos e o poeta.


Nas férias escolares de 79/80, o Banco do Brasil promoveu, entre as escolas de São Paulo, um concurso de literatura, conhecimentos gerais sobre autores e obras literárias.
Bom, é certo que ninguém contava que os ganhadores por São Paulo fossem oriundos de escola pública e, muito menos que eles fossem internos de um orfanato no Butantã.
O Satírio do 24 respondia sobre José Lins do Rego, ao Miguel do 13 coube defender a obra de Graciliano Ramos e, esse seu criado representava o Josué Montello, cada estado tinha quatro representantes e, como não havia um quarto membro, eu respondia também pelo grande Jorge Amado.
Como eu, os outros integrantes gostavam de gibis de super-heróis, eram comunistas e fãs do Grêmio Educandário, fundamos o clube dos maus, cujo os únicos membros éramos nós e, o nome era uma alusão à nossa perébice crônica no futebol.
Numa das etapas, minutos antes da disputa, uma menina de origem japonesa, que representava Minas Gerais, me disse que estudava oito horas por dia e queria saber se eu fazia o mesmo.
_. Estudar???Está maluca???Tenho a minha vida para viver.
Naquele momento, eu sabia que todos os internos do Educandário Dom Duarte estavam esperando a sua hora de cair na piscina, os meus amigos do 14 estavam tentando achar o cacho de bananas que eu havia enrustido na véspera.
A certa altura percebemos que, às nossas custas, algumas pessoas estavam lucrando e ganhando prestígios, eu fui o primeiro que falei a respeito e, havia uma questão mais séria ainda...o Grêmio jogava sem a nossa presença.
Resolvemos que acharíamos um jeito para sair desse barco furado, por hora, as medalhas eram bem-vindas, cada etapa valia uma medalha, enquanto eles ganhavam uma, eu ganhava duas.
Na etapa do Rio de Janeiro a dona Djalmira nos vestiu com roupa de gala, calça da Liga, Bamba branco e camisa azul da fanfarra...aqui eu faço uma pausa para lembrar que a camisa da fanfarra lembrava a roupa da tripulação de "Jornada nas estrelas", ficamos bem bonitos mesmo.
Como turismo, essa experiência não foi grande coisa, sequer tivemos tempo de ir à praia ou saborear a piscina do Copacabana Palace, tínhamos uma babá particular, que não nos largou nem por um segundo.
Depois do concurso, onde arrastamos mais quatro medalhas, corremos para o elevador do hotel, iríamos ao quarto que estávamos hospedados, pegaríamos as nossas coisas e embarcaríamos de volta para São Paulo, quando já se fechava a porta, um senhor veio correndo no saguão e pedindo que alguém segurasse para ele entrar, travamos a porta, ele agradeceu e entrou.
Olhamos o poeta com um ar de admiração e ele sorria para nós, pensando que eu não havia reconhecido o grande Carlos Drummond de Andrade, o Miguel me cutucou.
Vendo que usávamos roupas combinando, ele perguntou:
_. Vocês são de alguma escola de Minas???
Balançamos a cabeça em negativa e o Miguel respondeu:
_. Não, somos de um colégio de São Paulo.
_. Sabem quem sou eu??
Respondemos ao mesmo tempo:
_Carlos Drummond de Andrade.
O poeta ficou espantado, o mais velho de nós era o Satírio e, ele tinha 13 anos, explicamos o motivo da nossa presença ali e ele entendeu o motivo das crianças o reconhecerem sem pestanejar.
_ E, vocês sabem algum poema meu???
Rimos e tomamos fôlego, na cabeça dele, agora viria o poema que todas as crianças sabem de cor e salteado, ele se preparou para ouvir "E, agora José" e o que veio de nós o deixou sem fala.
O Satírio declamou os dois primeiros versos, eu continuei mais dois versos e o Miguel arrematou o último.
"Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça
Todas as mães se reconheçam
E que fale como dois olhos
Caminho por uma rua
Que passa em muitos países
Se não se veem, eu vejo
E saúdo velhos amigos
Eu distribuo um segredo
Como quem ama ou sorri
No jeito mais natural
Dois carinhos se procuram
Minha vida, nossas vidas
Formam um só diamante
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças"
Quando terminamos ele estava completamente boquiaberto, pediu para a nossa acompanhante nos liberar, nosso café da manhã foi em companhia de um imortal.

O segredo.


Essa postagem, eu vou fazer com a colaboração do meu ex-aluno Ademar Jose da Silva, que nasceu vizinho ao Educandário Dom Duarte e é, como eu, tarado pelo Educa.
Nossa, esse parágrafo ficou bem técnico, a professora Elizabeth, na certa me elogiaria, mas vamos à aventura de hoje.
O Paulo Régis era um amigo que morava no pavilhão 12, um amigo querido, no mesmo dia que cheguei, ele chegou também, no entanto, o seu jeito meio espalhafatoso, escandaloso e delicado ou feminino demais, fazia com que os outros meninos não confiassem um segredo a ele, todos sabiam que o Paulo era fofoqueiro mesmo, por conta disso, era muito comum o fato de ele viver, quase sempre sozinho.
A parte de trás do teatro era uma área neutra, compreendia uns vinte metros quadrados de solo plano, uma grama agradável crescia ali, da porta de saída, à esquerda, um barranco levava ao bananal do 14, à direita se chegava ao pavilhão 15, em frente se subia ao campo do 15, que era vizinho ao campo do 17.
Poucas crianças brincavam nessa grama, pela tarde o teatro ensombreava essa parte e uns guris do 14 jogavam bola ali, vinham uns guris do 12 e do 13.
Um dia o Paulo desceu com os meninos e, como não gostava de jogar bola, ficou na escadaria da frente por um tempo, quando achou que já havia passado da hora de voltarem para o pavilhão, foi à cata dos meninos, deu a volta no prédio e não achou ninguém.
Ele me contou a história como se fosse um caso de abdução, na época, essas coisas eram chamadas de UFO e, eram tratadas com muito medo, aterrorizavam as crianças com isso.
O Paulo Régis me chamou para investigar, sabia que eu adorava ficção cientifica, me propus a ajudar o amigo prontamente.
Sábado de tarde, nos encontramos na jaqueira e descemos para a frente do teatro, alguns guris jogavam lá no fundo, ficamos nas escadas um bom tempo, quando ouvimos um barulho vindo do lado de dentro do teatro.
A porta trancada e o Paulo tentando olhar pela fechadura, eu disse:
_. Espere aqui, que vou chamar ajuda.
Corri para os fundos e ele a esperar a ajuda, passados alguns minutos, como eu demorava a voltar, ele foi me procurar.
Não me achou e, na verdade, não tinha mais ninguém por lá, ficou abismado, alguns segundos com os olhos arregalados, passou as mãos na cabeça e, finalmente gritou:
_Vá de retro, satanás.
E disparou numa carreira, foi contar a todo mundo que havíamos desaparecido debaixo dos olhos dele.
No dia seguinte, ao encontrá-lo, disse que não me lembrava de nada do que havia me acontecido, depois do barulho do teatro, os outros meninos disseram o mesmo.
Isso contribuiu para que o teatro levasse a fama de mal-assombrado e o Paulo nunca mais foi lá, a não ser nas horas de missa e cinema.
Cinco anos mais tarde, quando todos os internos com mais de 14 anos foram transferidos para o lar 22 e, eu já havia me esquecido desse episódio, o Paulo Régis me pediu para dizer a verdade e, pela fidelidade que eu devia aos meus amigos, mantive a minha versão, ele fez o sinal da cruz e bateu na madeira.
Bom, para o Paulo Régis eu não contei o segredo e, como sei que você leitor é de confiança e vai me guardar esse segredo, vou contar.
A porta dos fundos do teatro era daquela com quatro divisórias, a penúltima parte dela era removível, muito poucos meninos sabiam disso, houve até um pacto de segredo eterno.
Uma vez dentro do prédio, descíamos ao porão do palco ou subíamos ao mezanino, todos os instrumentos da fanfarra eram nossos, todas as fantasias de cena e todos os rolos de filmes, estavam sob nosso poder.