terça-feira, 24 de maio de 2016

O tênis vermelho


A roupa que os internos usavam eram produtos de doações, claro que muitos tinham roupas que as mães davam, no entanto, esse não era o meu caso, desde que entrei no Educa, até o meu primeiro salário na P.G. E, minhas roupas vinham da rouparia central, que era comandado pela dona Djalmira.
Essa já havia trabalhado no lar 22, a fama de enérgica vinha desse tempo, é fácil que alguém diga que a senhora era seca.
Eu respeitarei a opinião de quem quer que seja, mas, minha visão das pessoas nunca se deixou ser influenciada por opiniões alheias.
Pra mim, ela era uma personagem num papel trocado, eu á via como uma viúva dos romances de Josué Montello, uma aristocrata que se viu obrigada a conviver entre a plebe.
Quando me lembro dos adultos da minha infância, são poucos os que tinham um sorriso no rosto, supõe-se que a carestia daquela época tirasse-lhes a alegria de viver, tempo de liberdade cerceada.
Ela olhava por baixo dos óculos e raramente sorria depois que ela media a roupa no corpo, tomava distancia pra ver o caimento e dava a última avaliação, com a linha na boca, mandava que eu fosse embora, invariavelmente, eu lhe beijava as mãos.
Primeiro vinha a mão levantada pro tapa, depois o riso contra a vontade, logo em seguida o grito:
_Vai embora, menino abusado.
A sala dela ficava na administração, eu trabalhava com o seu Tinoco, dizia que, pelo fato de eu ser magricela o caimento era perfeito, mas que eu não confundisse isso com um elogio.
Mês de Dezembro, todo mundo experimentando a roupa da Liga e ela me deixa por último, com razão, quando chegou a minha vez ela me vestiu, além da roupa da Liga, uma calça boca de sino preta, uma camisa branca social e um colete, viu que nada precisava de ajuste e, por cima dos óculos de gatinho, me surpreendeu:
_Parece um dos Jackson Five.
_O Michael ???
_Não, o Germany é mais bonitinho.
Às vésperas de eu ir pra escola nova, encontrei com ela no caminho do mercado Paraná, eu subindo e ela descendo, gritou do outro lado da rua:
_Passa lá, que eu tenho um presentinho.
Depois do grito, fez sinal para que eu não atravessasse a rua pra beijar-lhe as mãos.
Depois de comprar as guloseimas corri pra ver o presente, um tênis Tiger vermelho, embrulhado em papel de presente.
A coisa mais linda do mundo, embrulhado e com dedicatória, o que indicava que esse não fora doação e, dessa vez, não tive que roubar a mão para o beijo, ela mesma as esticou.
Virou objeto de adorno, não fui pra escola com ele, ficava trancado no meu armário o tempo todo.
Um dia, tive a infeliz ideia de ir ao estádio calçado nele.
Sem muito dinheiro fui pra geral do Morumbi, meu timão jogando e nada de visão boa do campo, fiz o que sempre fazia, esperei os policiais se distraírem e escalei a cerca que separava a geral das cativas, um dos PMS voltou e segurou meu pé, como eu não parei, arrancou o tênis do meu pé esquerdo.
Pulei pro outro lado e iniciei a corrida, mas parei me lembrei do sorriso da dona Djalmira, voltei pra cerca e falei pro policial:
_Eu volto, pode até me levar preso, contanto que me devolva o tênis.
Surpreendido, o policial perguntou o que fazia daquele tênis tão especial assim, outros policiais se juntaram, balburdia no estádio e eu gritando pra explicar a procedência do calçado.
Devolveu-me o tênis e me conduziu à saída do estádio.

Não queria assistir mesmo, nesse dia o Corinthians perdeu.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

A maturidade


Aos três anos me vi na condição de órfão e, me adaptei a isso naturalmente, os colégios em que morei foram minha casa e as pessoas que me cuidavam, faziam às vezes de meus pais.
Mesmo quando as pessoas diziam que eu não tinha um comportamento típico de um interno, eu fazia questão de mostrar certo orgulho de sê-lo.
“Permeava na sociedade esse preconceito contra o órfão, esse era pior que o racismo, vinha carregado de ‘coitadismo”.
Desde criança, sendo negro e órfão, aprendi a me defender dos ataques de racismo, o dom da palavra me deu as armas e, a palavra, bem empregada, corta mais que a espada.
De cabeça erguida, percebi que os racistas são, geralmente, pessoas desprovidas de conhecimentos, com relação ao coitadismo, isso é um mal sem cura e independe de condição social ou moral.
Por vezes, as palavras não surtiam o efeito desejado, o capitão me ensinou a colocar um bom golpe no queixo e, sem dentes, fica difícil a comunicação.
Em 1981, eu completara 14 anos fazia o curso do SENAI e fui, por questões políticas, convidado a me retirar do Attiê, transferido pra escola Alcides da Costa Vidigal, o Jardim Peri-Peri era um bairro de classe média, bairros assim tem população predominantemente branca e, coube a esse seu criado, a honra de ser o primeiro aluno negro a frequentar esse estabelecimento de ensino.
Podia falar de coisas de discriminação racial, me fazer de vítima e coisa e tal e, seria tudo mentira. Nos efervescentes anos 80, até branco, se dizia negão.
Pouca gente queria saber da cor da minha pele, o que pegava mesmo, era o fato de eu morar num orfanato. Esse fato contribuía pra minha popularidade, eu e a Aninha, éramos as pessoas mais populares da escola, eu por ser um interno e ela por ser a menina mais bela do mundo, desculpe, do planeta.
E, diferente do que sugere todas as canções e filmes de adolescentes, a moça, além de linda, tinha um enorme coração e, ainda hoje é minha amiga.
Além do perigo do coitadismo, o órfão passa por outro estigma e, esse é ainda pior, a falta de uma família te associará à marginalidade.
Numa tarde, ao sair para o recreio, empolgado pra dar uns beijos na Vannerly, saí com a mochila nas costas, quando me dei conta do descuido, voltei pra sala e guardei o material.
Na sala estavam o Marcio e o Tadeu, eles trabalhavam numa fábrica de elásticos e mantinham uma enormidade desse material, fizeram uma bola de elásticos roubados e o exibiam como se fosse coisa de colecionadores. Não dei importância e voltei correndo pros braços da morena.
Na volta do recreio, disseram que foram roubados e suspeitavam da minha pessoa, a professora de Português Elizabeth, que já fora minha professora no Educa e no Attiê e, sabia da minha conduta, adivinhou o que estava por vir e limitou-se a sentar e apurou os ouvidos.
Um dos meninos exigiu que se resolvesse a coisa toda na diretoria, calmamente me levantei, eles estavam ao lado da mesa da professora:
_Me deixa entender a coisa toda...
Com toda a calma do mundo, me aproximei dos acusadores.
_Vocês querem que eu vá pra diretoria, por conta de uns elásticos roubados e eu teria roubado?
Com a cabeça, concordaram.
_E, desse crime, eu sou suspeito pelo fato de morar num orfanato, certo?
A essa altura eu já estava na frente deles, antes que pudessem concordar ou não, dobrei o dorso e o cruzado de esquerda os atingiu por igual, caíram por cima das mesas, carteiras e cadeiras e meninos no chão, quando cessa o barulho, uma bolinha de elástico sai pulando pela sala.

Então, caros amigos... vamos à diretoria.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Aprendendo a viver

Vira e mexe, aparece alguém que posta, em redes sociais, alguém com uma vara nas mãos e diz que tem orgulho de ter sido criado assim.
Bom, todo mundo tem a sua opinião e, era mesmo regra, esse tipo de educação naqueles anos, raramente se via um adulto tratar uma criança, sem o auxilio de uma boa surra.
Com o tempo, a nossa geração aprendeu que a violência não produz o respeito e sim o medo.
E, ainda que eu respeite os de opinião oposta, me orgulho de ter criado os meus filhos, sem usar da violência.
Quando a dona Dulce apareceu no 14, acostumados que estávamos com a falta de carinho, estranhamos a moça. O humanismo acabara de nos aparecer e, depois disso, não toleraríamos mais a violência, a administração resolveu não mandar um novo casal de laristas pra lá e ficamos um longo período sem chefe.
Em 1979, num passe de mágica, o casal Claudio e Dulce transformou o pavilhão 14 numa família, não havia mais a figura do tuba, não havia grandes ou pequenos, só irmãos.
Montamos nosso time e fomos disputar o campeonato interno, defender a hegemonia que os que nos antecederam nos deixaram, já disse que não fomos campeões, o caneco foi levantado pelo 13, no entanto, ganhamos uma lição e, creio que todos os atletas do nosso pavilhão vão levar pro resto de suas vidas, aprendemos a perder.
Os caras do 13 não estavam na nossa chave, em todos os nossos jogos, eles ficavam assistindo do barranco do bambuzal, um a um, todos os adversários caíram aos nossos pés, com o passar dos jogos fomos assumindo um ar de favoritos e a vaidade te cega, a ponto de te fazer julgar perfeito.
Não era perfeito o nosso time, a tática era boa e éramos um grupo de amigos, mas o defeito estava no gol.
A maior parte do time tinha 13 anos, eu tinha 12, o goleiro Marcos e o meu irmão Nilson tinham 10 anos, subimos os dois de categoria, claro que um guri com 10 anos nunca vai ultrapassar a altura de um metro e meio, as traves do campão do Educa são oficiais no cumprimento e na largura, portanto, dois metros e meio de altura.
Foi por conta disso, que optamos por jogar com cinco volantes, com tanta gente no meio de campo, jamais alguém acertaria um chute no gol, tirando a altura, o Marcos (Pato Rouco) era perfeito e quem batia os tiros de metas era eu.
No dia da final, entramos de salto alto, no começo do jogo o Dalcides ficou desmarcado e deu uma castanhada do meio de campo, bola alta, o Marcos nem viu, gol.
Foi o time todo pra defesa e tome bola pro mato, corremos desorganizados e com a vaidade ferida, fomos com tudo pra cima, quando dividiam o lance, eles caiam e sumulavam uma contusão e demoravam no chão, o tempo corria e o desespero aumentava.
Havia uma coisa que havíamos combinado antes de começar o campeonato, se por ventura, alguém ganhasse de nós, começaríamos uma briga, subiríamos o gás de todo mundo e a partida seria encerrada.
Bom, começar a briga era a minha função e o time todo já me olhava a cobrar o combinado.
No primeiro lance que se seguiu, fiz uma alavanca e o Cidão voou, fiquei preparado pra o revide, assim que ele levantasse e reclamasse do lance a briga começaria.
O Cidão não levantou, ficou ali imóvel, com o rosto na grama, fui até ele e ele piscava muito pela falta dos óculos.
Lembrei-me do Grupo Escolar e do tempo que caçávamos rãs no lago da olaria, definitivamente, aquele guri não era meu inimigo, estendi a mão e ajudei-o a levantar.
Quando o Luis Paulo apitou o termino do jogo, demos as mãos pros campeões, troféus e medalhas e seguimos juntos pro pavilhão, não falamos de culpados e nem de derrota, além do troféu de vice, o Marcos ganhou o de goleiro menos vazado e o Tadeu o carregava nos ombros.
Quando passamos do teatro e iniciamos a subida da jaqueira, a dona Dulce vinha descendo, alguém foi avisá-la da derrota e ela vinha pra nos consolar, na verdade, o único que chorava era o marido dela.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

O gol do menino


Com a licença do leitor vou contar a história de um gol, não a mera narrativa de um gol inesquecível, não... Fazendo isso, vou lembrar-me de pessoas importantes, pessoas que já se foram e pessoas que são vivas vão contar sobre a evolução de um menino, não um simples gol de placa e sim o gol que marca a evolução de um homem.
Já contei que assistia os mais velhos jogando no Grêmio, sonhava em vestir a camisa preta e fazer um gol no campão seria um sonho, mas não nasci com a habilidade que se exige numa seleção, julguei que poderia haver um jeito que me encurtasse o caminho.
Se por um lado, eu não tinha a habilidade motora, por compensação, Deus me deu uma capacidade intelectual fora do comum e sendo assim, eu poderia aprender as coisas só olhando.
Pra encurtar o tempo aprendi a chutar, ficava observando o Roda, dono de uma bomba que fazia a trave zunir, toda tarde, no campo do 14, pegava a bola de capotão e sentava o dedo nela. O pobre do Zé Maria queria reclamar, mas a miséria do negão era cabuloso, todo mundo tinha medo dele, vira e mexe, ele quebrava as traves de madeira, quando não estourava a bola. 
Num belo dia, durante o campeonato interno expliquei pra ele o que ele tinha que fazer para escapar da marcação cerrada do time do 15 e ele marcou três gols, com isso, consegui o respeito dele, o medo que eu tinha dele se foi e essa foi à primeira lição: Se existir o respeito, não tem necessidade do medo.
Pra pagar o favor, no campo do 14, o Roda, que era a pessoa mais antissocial do mundo, me ensinou a arte de bater na bola. Passei a cobrar todas as faltas, escanteios e tiros de meta.
Pra ser convocado, aprendi a segunda lição: “Uma andorinha não faz verão”.
Junto com o Feliz e o Viana, formamos um trio que assombrou o campeonato interno de 1980, a convocação veio porque o Matheus do 11, que já jogava no Grêmio, convenceu o professor Claudinei que o trio do 14 era muito bom, o professor teve que chamar nós três.
Quando chegamos ao Grêmio, tinha o Faustino do 16, o André do 20, o Dalcides do 13, o Matheus do 11, o Celso do 24 e o Mocó do 21... Todos fora de série e todos eram volantes, entendi que, dificilmente eu vestiria a camisa 5. Terceira lição: Adéquo o seu sonho à sua realidade.
Nessa altura, já havia aprendido tudo, sobre todas as posições e já era o técnico do time dos pequenos do 14, virei coringa e dono da camisa 15, entrava no segundo tempo e segurava o jogo... Quarta lição: “A paciência é a maior de todas as virtudes”.
Nesse ponto, aconteceu uma coisa estranha, ao lado do professor, observando os jogos, aprendi a chave do jogo.
Não fazia mais questão de entrar em campo, perdíamos o jogo contra os “Pequeninos do Jóquei” e o professor me chamou, disse que eu tinha que consertar a falha na lateral esquerda, o chamei de lado e disse que ele tinha que colocar o Celso, que era mais forte e mostrei pra ele o lateral que começava todas as jogadas, completamente atordoado, ele chamou o Celso e passou as instruções que eu havia dado, fiquei ali, ao lado do professor Claudinei, que era uma espécie de Robin Hood, que trabalhava numas três escolas particulares, ganhava muito dinheiro delas e trabalhava de graça no Educa.
Bom, o Celso entrou em campo e marcou o adversário certo anulado a saída de bola deles, nosso time cresceu e empatou o jogo, depois da expulsão do Celso e do guri que ele marcava viramos o jogo.
Ganhei o respeito do professor e virei auxiliar dele, ali, ao lado do campo o professor me ensinou o que me faltava de esquema tático e de amizade.
Mas, treinava junto com os guris, o sonho do gol ainda estava presente, a quinta lição: “Esteja preparado pra quando a sorte lhe sorrir”.
E a sorte sorriu, o Baianinho do 11 estava suspenso do campeonato do DEFE e o Arthur do 19 estava doente, o professor mandou que eu usasse a camisa 9 nesse jogo, quando passei perto da arquibancada, vestindo a camisa preta do Grêmio, os amigos aplaudiram... Lembro-me da alegria do Pelezinho do 12, cujo talento justificava o apelido, usava a camisa 10 e disse que ia me ajudar.
No outro lado do campo, estava o Guarani de Campinas, caso o jogo terminasse empatado, a vaga seria deles, enquanto amarrava os cordões do Ki chute agradecia aos céus a oportunidade e a honra de servir o meu time em companhia dos meus amigos, tinha a certeza que faria um gol naquela manhã nublada de domingo, nem que fosse de canela, nem que fosse de nariz.
Começa o jogo e mesmo o Guarani podendo empatar, foi pra cima, nosso time estava nervoso e sem comando, mal conseguimos passar do meio campo, dois jogadores marcavam o Pelezinho e ele mal conseguia dominar a bola, me dava vontade de voltar pra defesa, ajudar os amigos, quando eu ameaçava em fazê-lo, o professor gritava pra eu ficar no ataque, defendendo do jeito que dava, conseguimos ficar sem tomar gol.
Estava posicionados entre os dois zagueiros do Guarani, na linha de meio campo, na hora do escanteio do adversário percebi que o Pelezinho fez sinal pro André, o Pelezinho entrou na área e o André saiu, foi se posicionar na intermediária, percebi que estavam tramando, com os olhos mostrei pro volante que estava exatamente no meio dos zagueiros, o passe teria que ser com curva e isso ele sabia fazer com maestria.
Cobraram o escanteio, o Faustino tirou de cabeça, a bola foi cair no pé do Pelézinho, correram pra pegar o camisa 10 e esqueceram-se do André, o neguinho ameaçou de correr pelo lado esquerdo foi seguido e sem olhar, tocou no lado direito pro André que livre de marcação dominou rápido e com rara habilidade enfiou a bola nas costas do primeiro zagueiro, tirando-o da jogada, quando eu a matei no peito do pé, interrompi a curva que ela ia fazer, o último zagueiro passou lotado, rompi a linha do meio e tinha a bola sob meu domínio, vendo que eu vinha sozinho em sua direção, o goleiro se apavorou e saiu pra me pegar fora da área, tarde demais, antes que ele chegasse toquei de chapa e fiquei. Olhando o arco que ela fez, caiu perto do travessão e estufou a rede, queria correr pra comemorar a beleza daquele gol, qual nada, os amigos pularam em cima e me derrubaram, quando consegui sair do bolo de gente, o juiz estava tirando a torcida de dentro do campo.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

O arrependimento


Dia desses, de posse da enxada, capinei um eito de dois equitares e, pra espanto dos nativos, não estava cansado.
Contrariado com o que vira, perguntou o João:
_Como pode um paulista, capinar como se fosse um homem do campo.
_É claro que nem todo paulista foi criado em apartamento ou nasceu em berço de ouro_Disse eu.
Aprendi o ofício quando era criança e não era ofício, era castigo... quando se é criança, se quer viver e ver a vida, todo trabalho duro é castigo.
Ninguém espera que uma criança vá acreditar que, arrancar matos com uma ferramenta primitiva, no futuro, vai fortalecer-lhe o caráter.
Contragosto, digo que, os calos deixados pelo cabo da enxada, me deram a noção de que nada vem cai do céu.
O Odilon era uma espécie de coronel vindo do Rio Grande do Norte, apossava-se dos territórios vizinhos e, por conta disso, a área de cultura do pavilhão 14 era a maior, entre todos os pavilhões do Educandário Dom Duarte, consequentemente, nós carpíamos e os outros brincavam.
Isso fazia crescer um sentimento de revolta, crianças com esse sentimento não são propriamente felizes e sonhavam com o fim dessa escravidão.
Como um bom coronel, tinha um capataz, esse papel cabia ao Salvador.
O Salvador era um interno que tinha uns 14 ou 15 anos, pra todo trabalho forçado, o chefe dava as ordens e se retirava supervisionar o andamento do que fora mandado, cabia ao Salvador.
Esse trabalho dava ao Salvador um status de subchefe ele gostava de tudo e, por vezes, lhe subia a cabeça.
Era muito comum, ver uma turma de crianças poeirando na enxada e o feitor com uma vara nas mãos.
É da natureza do oprimido, o sentimento de vingança e, clamavam os meninos por justiça.
Não havia, entre todos os meninos do 14, um que não sonhasse com o dia em que o Salvador teria o seu castigo, não vou me isentar disso, eu sabia que isso, mais cedo ou mais tarde se daria.
Sábado de sol, o vento fazia ondas nas pontas do capim gordura e os pinheiros cantavam, os meninos pequenos, pacientemente, esperavam nos barrancos que ladeiam o campo do 14, por uma questão de hierarquia, só podiam entrar no gramado quando os grandes saíssem.
O Roda sempre foi muito temido por todos, não havia entre todos os internos daquele tempo, quem lhe fizesse frente, no campo ele se transformava, dono de um futebol que unia força, velocidade e muito estilo e, jogava sorrindo.
Se no campão ele dava show, no campo do 14, a coisa ganhava requintes de poesia pura, os meninos assistiam com gosto, às vezes, fazia uma linda jogada e exigia aplausos, abusado que era, ia na arquibancada exigir isso dos meninos.
O Salvador era volante, do tipo que carrega piano, pura raça, a falta de habilidade era compensada com muito empenho, mas não tinha um fã entre os meninos.
Numa jogada no meio de campo, o Salvador foi meio duro, o Roda foi ao chão, ao dar a mão para ajudá-lo, o Salvador disse:
_Desculpa aí, negão.
Todo guri do 14 sabia, quase todo mundo do Educa sabia, todo branco que chamou o Roda de "negão", perdeu o rumo da casa, quem estava em campo pressentiu a tragédia, os meninos se juntaram na arquibancada.
O Roda se limpou, deu um olhar de ódio voltou a jogar, essa era a hora exata pro Salvador sair de campo, ávidos por vingança, os meninos contavam os segundos. A bomba fora armada.
A vingança é sempre ruim e, ninguém vai ver o Roda como um anjo, porém crianças não tem noção de certo e errado.
Recebeu a bola do goleiro Zé Maria e partiu pro ataque, saiu da lateral e foi pro meio, onde estava o Salvador, de frente com ele soltou a bola e pulou com os dois pés em seu peito, caiu o Salvador e tentou correr, na lateral do campo iniciava o barranco que levava ao pavilhão, não chegou à metade dele, foi alcançado e os socos emitiam um barulho surdo, o Roda sabia bater e ria.

Diante da cena, sem poder fazer nada, alguns meninos agora choravam.