segunda-feira, 2 de maio de 2016

O arrependimento


Dia desses, de posse da enxada, capinei um eito de dois equitares e, pra espanto dos nativos, não estava cansado.
Contrariado com o que vira, perguntou o João:
_Como pode um paulista, capinar como se fosse um homem do campo.
_É claro que nem todo paulista foi criado em apartamento ou nasceu em berço de ouro_Disse eu.
Aprendi o ofício quando era criança e não era ofício, era castigo... quando se é criança, se quer viver e ver a vida, todo trabalho duro é castigo.
Ninguém espera que uma criança vá acreditar que, arrancar matos com uma ferramenta primitiva, no futuro, vai fortalecer-lhe o caráter.
Contragosto, digo que, os calos deixados pelo cabo da enxada, me deram a noção de que nada vem cai do céu.
O Odilon era uma espécie de coronel vindo do Rio Grande do Norte, apossava-se dos territórios vizinhos e, por conta disso, a área de cultura do pavilhão 14 era a maior, entre todos os pavilhões do Educandário Dom Duarte, consequentemente, nós carpíamos e os outros brincavam.
Isso fazia crescer um sentimento de revolta, crianças com esse sentimento não são propriamente felizes e sonhavam com o fim dessa escravidão.
Como um bom coronel, tinha um capataz, esse papel cabia ao Salvador.
O Salvador era um interno que tinha uns 14 ou 15 anos, pra todo trabalho forçado, o chefe dava as ordens e se retirava supervisionar o andamento do que fora mandado, cabia ao Salvador.
Esse trabalho dava ao Salvador um status de subchefe ele gostava de tudo e, por vezes, lhe subia a cabeça.
Era muito comum, ver uma turma de crianças poeirando na enxada e o feitor com uma vara nas mãos.
É da natureza do oprimido, o sentimento de vingança e, clamavam os meninos por justiça.
Não havia, entre todos os meninos do 14, um que não sonhasse com o dia em que o Salvador teria o seu castigo, não vou me isentar disso, eu sabia que isso, mais cedo ou mais tarde se daria.
Sábado de sol, o vento fazia ondas nas pontas do capim gordura e os pinheiros cantavam, os meninos pequenos, pacientemente, esperavam nos barrancos que ladeiam o campo do 14, por uma questão de hierarquia, só podiam entrar no gramado quando os grandes saíssem.
O Roda sempre foi muito temido por todos, não havia entre todos os internos daquele tempo, quem lhe fizesse frente, no campo ele se transformava, dono de um futebol que unia força, velocidade e muito estilo e, jogava sorrindo.
Se no campão ele dava show, no campo do 14, a coisa ganhava requintes de poesia pura, os meninos assistiam com gosto, às vezes, fazia uma linda jogada e exigia aplausos, abusado que era, ia na arquibancada exigir isso dos meninos.
O Salvador era volante, do tipo que carrega piano, pura raça, a falta de habilidade era compensada com muito empenho, mas não tinha um fã entre os meninos.
Numa jogada no meio de campo, o Salvador foi meio duro, o Roda foi ao chão, ao dar a mão para ajudá-lo, o Salvador disse:
_Desculpa aí, negão.
Todo guri do 14 sabia, quase todo mundo do Educa sabia, todo branco que chamou o Roda de "negão", perdeu o rumo da casa, quem estava em campo pressentiu a tragédia, os meninos se juntaram na arquibancada.
O Roda se limpou, deu um olhar de ódio voltou a jogar, essa era a hora exata pro Salvador sair de campo, ávidos por vingança, os meninos contavam os segundos. A bomba fora armada.
A vingança é sempre ruim e, ninguém vai ver o Roda como um anjo, porém crianças não tem noção de certo e errado.
Recebeu a bola do goleiro Zé Maria e partiu pro ataque, saiu da lateral e foi pro meio, onde estava o Salvador, de frente com ele soltou a bola e pulou com os dois pés em seu peito, caiu o Salvador e tentou correr, na lateral do campo iniciava o barranco que levava ao pavilhão, não chegou à metade dele, foi alcançado e os socos emitiam um barulho surdo, o Roda sabia bater e ria.

Diante da cena, sem poder fazer nada, alguns meninos agora choravam.

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