quarta-feira, 29 de junho de 2016

De versos e garota cruel.


Em alguma postagem dessas, disse que nunca neguei o fato de ser interno, ato falho meu, houve uma única ocasião em que eu, como Pedro, neguei três vezes.
Não quero dar a mim, a mesma importância que o pescador, mas o fiz pra preservar a minha integridade física e ainda, de quebra, vou contar de dois personagens que deixaram saudades.
O Oscar, que todos chamavam de sarará era, na verdade albino... aquelas pessoas que nascem de cruzamento de indivíduos de pele escura, no entanto, algo anormal ocorre em seus cromossomas, e o resultado são filhos com a coloração da pele muito alva e são geralmente deficientes visuais.
Ah, o Oscar tinha um pequeno desvio de caráter, como eu o conhecia desde o outro orfanato, posso garantir que o defeito já veio de fabricação e ele não podia controlar, por vezes ou sempre, costumava afanar coisas das pessoas, o que lhe rendeu a justa alcunha de ladrão.
A Lígia era a menina que eu cortejava, estudava comigo no grupo escolar e me tinha como um bom amigo, como eu escrevia versos e tinha doze anos, fiz pra ela alguns e, duvido que a ingrata os tenha lido.
O jeito pra conquistar as mulheres, eu só aprendi mais tarde e como um cavaleiro que investe contra moinhos imaginários, fazia o meu possível, a moça resistia e, só me queria como amigo mesmo.
Ah, a crueldade daquela menina... desprezar os versos e o amor puro de um carinha feito eu.
O próprio pai da moça me ajudava, até a mãe dela falava bem de mim, e ela?
Como na canção... "Me fazia de escravo do seu bel prazer", Tom Jobim também falou dela, ah menina sem alma.
Como eu não desistia nunca, todo sábado pela tarde, ia à sua casa fazer a corte.
Num sábado morno de primavera, deixei meus amigos no campo do 14, tomei um banho e vesti a minha roupa de domingo, na parte interna da porta do meu armário havia um caco grande de espelho, enquanto jogava em mim o desodorante de limão, admirava o meu rosto e me sentia feliz, o Luis Antonio passou e me deu um tapinha no ombro:
_Ah, moleque... agora vai.
Todo mundo do pavilhão sabia da minha luta e torcia por mim, a minha história era de domínio público, sempre me perguntavam:
_E aí, conseguiu ganhar a magrinha?
Sempre a negativa da minha parte e, invariavelmente, vinham palavras de conforto.
Quando sai de frente do aprendizado, vi que o Oscar já saía na portaria, imaginei que ele fosse ao seu lugar predileto... o mercado Paraná, já até podia prever o que iria acontecer por lá.
A Lígia morava na Professor João de Lorenzo, na casa onde o João Bellini construiria o seu bar, anos mais tarde.
O mesmo de sempre, eu falava em compromisso sério e ela falava da matéria da escola, eu recitava-lhe uns Vinícius de Moraes e ela vinha com a geometria de professora Anésia.
Passadas duas horas de tentativas infrutíferas, preparei-me pra ir embora, quando saía no portão da casa, vi o Oscar numa carreira desabalada rumo ao Educandário Dom Duarte, só vi mesmo o vulto e como eu sabia as roupas que ele usava, supus que fosse ele mesmo, quando o procurei já havia feito a curva do ponto de ônibus, na descida, vinham uns homens gritando a plenos pulmões:
_Pega ladrão.
Meti as mãos nos bolsos e me pus a caminhar, um dos homens parou e veio em minha direção, era o dono do mercado, como os outros três, carregava um pedaço grande de pau nas mãos:
_Ei moleque, você é interno também, né?
_Eu?De jeito nenhum.
Os outros homens, vendo que jamais alcançariam o Oscar, voltaram-se pra mim, um era o seu filho, os outros eu conhecia da Vila Operária, olhavam pra minha figura e batiam com os paus nas palmas das mãos:
_Esse moleque é interno, eu tenho certeza. Disse um deles.
_Tá maluco, eu? Um FEBEM? De jeito maneira.
Convencidos de que eu falava a verdade, continuaram o caminho pra portaria, eu continuei andando, sabia que não entrariam no colégio, o mesmo que me acusou de ser interno voltou a falar:
_Se você não é interno, porque se encaminha naquela direção?
_Gênio... vou pegar o ônibus no ponto do Educa.
_Você jura que não é interno?
Nesse momento, parei e me certifiquei que nenhum galo cantaria, olhei pros lado e disse:
_Jurar eu não vou que é pecado, mas não sou interno.
Frustrados, pararam em frente da portaria e passaram a se lamentar.
Ao perceber a minha aproximação, o seu Felipe abriu a portinha pequena e me cumprimentou, apressei o passo e entrei, agradeci ao porteiro e, estando do lado de dentro do meu lar, me senti intocável, ganhei os paralelepípedos e me virei.
Os quatro me olhavam em cólera e me xingavam, com um resto de sol que já se ia, posto, que já se findava à tarde, estendi-lhes a mão direita e levantei o dedo médio e me fui embora.
Na escada do teatro, o Oscar se escondia e saboreava um pacote de Mirabeau, fui ao seu encontro:
_Caramba, precisas parar com essa coisa de roubar, quase que eu apanho no seu lugar.
Sentei ao seu lado, além do pacote que ele abrira, havia mais cinco, não falou nada porque estava com a boca cheia, depois de engolir me ofereceu um pacote, recostei nos degraus e passei a abrir o meu pacote, ele então me perguntou:
_E aí... ganhou a magrinha???


domingo, 26 de junho de 2016

Um conto, um ponto.


Lá, pros lados do 20, contavam histórias de almas que passeavam de noite nas estradas do Educa, todo mundo que trabalhava, esperava um tempo na escada do mastro da bandeira pra engrossar a turma e partir pros pavilhões, se uma pessoa morava no 24, por exemplo, esperava alguém de algum pavilhão vizinho, pelo menos o mais próximo de seus pavilhões, pro nosso lado, acontecia a mesma coisa.
Se tivéssemos que subir de noite, a companhia de alguém do 13 e do 12 ajudava, o problema é que da curva da jaqueira o caminho era só, quando se chegava à subida, se ouvia nitidamente passos no milharal, se se apertasse o passo, se podia ouvir as pegadas te seguindo, se se corresse, podia-se ouvir gemidos às suas costas.
Cientes disso, os internos jamais andavam sozinhos à noite, eu tinha pena dos caras do 11, o pavilhão mais isolado de todos.
Esses medos eram do tempo que éramos crianças, crescemos então e, no 22, viramos adolescentes e, por via das dúvidas, continuamos a andar em bandos, se aparecesse alguma coisa no caminho, correríamos juntos.
Por essa época, pegamos o hábito de caçar rãs no lago da olaria... eu disse caçar e não pescar como deveria ser e eu explico:
Quem pesca rã, o faz com fisga, uma espécie de garfo com três dentes e, nós o fazíamos com torrões, aquele pedaço de barro que se seca na estrada.
Íamos pro lago com um farolete e colhíamos os torrões pelo caminho, atraídas pela luz do farolete, as rãs se viam hipnotizadas, enquanto elas estavam distraídas, os torrões eram arremessados, ploft... E depois de uns poucos segundo, umas quatro ou cinco estavam boiando na superfície, só recolher e fazer o banquete.
Em quase todos os finais de semanas, eu o Japonês e o Viana, fazíamos essa verdadeira Savana, íamos pelo caminho do campo de cima, beirando a Sabesp, que era o caminho mais fácil.
Com a licença do leitor, vou descrever esse trio, no final isso vai ajudar na história, creio eu.
O Japonês era palmeirense e católico fervoroso, o Viana era são paulino e simpático às religiões afras e, eu, corintiano e mariano. Quis o destino que, naquela noite, estivessem os 3 juntos.
Quando já havíamos passado do campo de cima, bem na bifurcação que divide a estrada em duas direções (à direita, para a assistência e em frente, para a olaria) vimos o mato se agitar à nossa frente, a lua era cheia e não precisamos iluminar o mato alto foi empurrado e paramos pra poder enxergar o que podia vir dali, instintivamente, soltei os torrões, me abaixei e troquei-os por pedras, o Viana fez o mesmo e o Japonês ficou estático.
Com pedras grandes nas mãos, ficamos esperando, o Japa ligou o farolete e jogou a luz naquela direção, o mato se abriu e um rosto negro surgiu, seu olhos não tinham órbitas e a boca parecia contorcida, uma nesga de sangue lhe escorria da testa.
Reféns do horror, soltamos as pedras e queríamos correr, o Japonês deixou o farolete cair, nesse instante o homem se sai todo do mato e vem em nossa direção, só então percebemos que ele media uns dois metros e suas roupas eram nada mais que trapos rasgados, quero gritar e a voz não sai.
A menos de metro e meio de nós, o sujeito faz menção de que vai se comunicar, sai um grunhido gutural, horrendo a nossos ouvidos, como alguém que não sabe falar, pigarreia e tenta firmar a voz:
_Você não acredita?
Ao dizer isso, estica a mão em minha direção e eu estava no meio, o indicador vai direto pra mim, se eu já não estivesse gelado, gelaria agora.
_Não acredita?Sábado você vai ver.
Ao dizer essas palavras, sorri e bate no peito, gritando um nome inaudível, a força do grito derruba o Viana ao chão, já chorava o Japonês ao meu lado, petrificado eu estava petrificado fiquei.
O homem, ou aquilo, correu e se meteu no mato, do lado oposto do que havia saído.
Ficamos ali uns bons segundos a esperar o barulho no mato que indicaria que ele tivesse ido embora, nada, voltamos à estrada e nos encaminhamos pro 22 em silêncio, eram mais de meia noite e concluímos que algo aconteceria no sábado, não falamos pra ninguém.
O Japonês e o Viana eram os meus amigos inseparáveis, na manhã daquele sábado percebi que os dois haviam sumido logo cedo, lógicos que, se eu fui o apontado, a coisa ia cair nas minhas costas, não lhes culpo pelo medo de ficar em minha companhia.
E eu, por incrível que possa parecer, levei o susto como coisa normal, racionalmente falando, o que podia um espírito fazer de efetivo contra mim?Então, quando a tarde se findou, botei a minha roupa de baile, levantei o Black e fui pra balada.
Bom, balada mesmo não houve... assim que dobrei a esquina da João de Lourenzo com a Osvaldão, uma viatura freou do meu lado e os ocupantes gritaram:
_Mãos pra cabeça, todo mundo na parede.
Já estavam na fogueira, o Nando, o Zóinho, o Galego, o Mauricinho, o Adir, o Valdevino, o Cezar e o Carlos, assim que eu me juntei a eles, começou uma sessão de espancamento, soco no estômago, coronhadas e tapas na cara, um dos policiais me tirou da fila e me deixou na calçada ao lado, a certa altura, um policial gritou:
_Vocês não tem vergonha de dar mau exemplo pra aquele garoto?E apontou na minha direção.
Seguiu-se uns 10 minutos disso e ninguém me encostou um dedo, algemaram todos, uns nos pulsos, uns na canela e jogaram-los no camburão e um deles fez com a mão que era pra eu embarcar, sentei-me no espaço que me coube, antes de fechar a tampa, o homem quis saber se eu estava bem.
No caminho até a delegacia da Vila Sônia, a barca acelerava e freava, os amigos eram jogados pra lá e pra cá e gemiam com as pancadas, eu estava solto e constrangido, permaneci em silêncio o caminho todo, simplesmente não acreditava naquilo.
Quando a viatura encostou-se ao estacionamento da delegacia, além dos quatro ocupantes dessa, outros policiais se juntaram, cerca de uns 10 e, formaram um corredor Polonês logo atrás do nosso carro.
Um policial abriu a tampa da viatura e foi tirando as algemas, livre das algemas, agora era passar pelo corredor, o primeiro foi o Zóinho e ele deu azar, depois de dois socos, tropeçou e caiu, juntaram-se todos os policiais e passaram a chutá-lo e a pisar.
E seguiu-se a ordem, um por um, os batedores gritavam de prazer e, chegou a minha vez.
Não fui o último, desci da viatura e andei o corredor inteiro, isso dava uns vinte metros, e andei em passo lento... nenhum policial levantou a mão, depois que eu passei recomeçou tudo.
Todos foram indiciados, tocaram piano e entraram no xis, quando cheguei à mesa do delegado, o Ditinho já estava lá, e gritava com ele, por conta da violência que eu havia sofrido.

E então... nem me venha perguntar se eu acredito ou não.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Tempo de fúria


Passos não tem endereços certos, caminhos são escolhidos na hora propícia, alguns hão de escolher o lado de lá da ponte, outros vão ficar deste lado, onde as águas são claras e límpidas e, ainda existem os que não escolherão caminho algum, penderam pra sempre entre o bem e o mal.
Uns poucos, muito poucos, podem abrir um portal e ver o seu futuro e, talvez assim, podem mudar os passos que a vida lhe reservou.
Fui criado pra ser católico, amar como Jesus amou e tal e coisa... mas a percepção, me deu o livre arbítrio, e vendo que a maioria dos pregadores da palavra se perdiam na vaidade mundana, entre a escravidão e a devassidão, me tornei um cristão reservado, depois da primeira comunhão abri mão dessa condição e, se Maria substituiu a minha mãe, virou meu símbolo de fé.
E, sempre houve uma Maria a endireitar o meu caminho ou virar o meu olhar na hora exata do perigo, todas as freiras da ordem que administrava a Casa da Infância tinham Maria no primeiro nome, os olhos castanhos de uma Maria me salvou da morte no baile do Pombal e, outra Maria seria decisiva na hora crucial.
Quando deixamos a brincadeiras dos pavilhões e o futebol parou de mover nossas vidas, crescemos e nos juntamos todos no 22, a infância havia passado e viramos adultos de uma hora pra outra, veio o tempo de fúria, em bailes mostrávamos poder e conquistávamos territórios, o número maior servia pra aniquilar e amedrontar a quem se pusesse no caminho.
Alguns de nós já andavam armados e já faziam suas vítimas, as noites de São Paulo passaram a oferecer perigo, saindo do Asa Branca, dois caras correram em minha direção e pararam, sacaram os revólveres e descarregaram-nos, surpreendido com a rapidez da ação, só deu tempo de fechar os olhos, os doze estampidos me ensurdeceram, quando abri os olhos, a multidão havia se espalhado e um corpo jazia na calçada da Rua Paes Leme, desse amigo eu sabia pouco, que morava no Campo Limpo e tinha 14 anos de idade, imaginei que houvesse uma mãe pra chorar a perda.
Ainda que ele estivesse a menos de um palmo de distancia de mim e, isso fosse um grande argumento pra eu sair dessa vida, me deixei ficar, a Sorte é um espírito que anda ao seu lado e te promete fidelidade eterna, o outro espírito se chama Medo e, ele não fala, por vezes sussurra.
Ainda que os amigos fossem os mesmos da infância, muitos deles já não eram os mesmos, uma sombra havia tomado suas almas e tudo indicava que eu seguiria o mesmo caminho.
Na festa da primavera do colégio Vidigal, tiveram a infeliz ideia de me convidar pra encenar uma peça, argumentei que não ficaria bem de príncipe, meu porte e a minha cor não combinavam com tal personagem, o argumento da turma era exatamente esse mesmo, apresentar um príncipe negro seria uma quebra de tabu, relutei o máximo que pude e, no fim aceitei.
A princesa da peça era a Ana Maria e, chamar a Aninha de princesa era a coisa mais natural do mundo, tal era a beleza da moça.
Sequer havia um beijo na cena, apenas um abraço rápido e a plateia delirou, os amigos do Educa apareceram por lá e puxavam o coro, o tio da moça estava lá e não gostou de nada daquilo, me fuzilava com os olhos.
Quando terminou a peça, ficamos ali pelo pátio a conversar e o cara ainda a encarar, incomodado com essa situação, resolvi que iria tirar satisfação, desse o que desse.
Antes que eu saísse do bolinho e caminhasse na direção do homem, um revólver foi posto no bolso da minha jaqueta, enfiei a mão no bolso e o segurei pela coronha sem tira-lo de lá.
A Aninha e a mãe dela seguravam o homem, ele tentava vir na minha direção, notei que a Aninha começava a chorar.
A arma pesava no bolso e meu dedo indicador já dormia no cão, só faltava o impulso pra partir, subitamente percebi que uma força me impedia de andar, naquele pátio lotado o tempo avançou e eu vi o futuro.
Como se eu não estivesse no meu corpo, vi as coisas de cima.
As pessoas corriam pra se proteger, o homem caído na escada de saída e o sangue a escorrer nos degraus, guardei a arma quente no bolso e desci a escada correndo, não tinha como não pisar na poça vermelha, ganhei a rua e corri em direção à Raposo Tavares, quanto mais eu me distanciava da escola, os gritos da Ana Maria se faziam mais altos.
Quando voltei pro presente, as duas já haviam arrastado o homem pra escada, sabia que a Aninha estava me defendendo, virei de frente pros amigos e entreguei a arma pro Viana.
_Vai ficar por isso mesmo?
_Vai.
_Talvez fosse até o certo a se fazer, mas tem um, porém.
_Qual é?

_Eu jamais faria Maria chorar.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

O irmão José.


Queria dizer umas boas do irmão José, mas o que dizer de uma pessoa cuja maior qualidade era o silêncio?
Partindo pras aventuras de fim de semana, fazíamos uma pausa pra comprar o filão com mortadela, que o irmão cortava com faca e embrulhava num papel de seda, com pouco dinheiro, o jeito era comprar as balas de astronauta mesmo e não importava a pressa do freguês, o atendente demorava sempre.
Trabalhei lá por uns meses, aprendi a verdadeira arte da paciência, às vezes eu tinha vontade de sair correndo, queria falar e o irmão José me mandava respirar, os assuntos ficavam nas reticências e ele nem se mostrava interessado em continuá-lo então, o assunto morria.
No fim do expediente, ele trancava a porta gigante e descíamos a escadinha pra rua, eu seguia pra direita e ele ia rumo à administração, o sentido inverso. Por vezes eu fazia as duas vozes da despedida:
_Até amanhã.
_Até amanhã.
A vida passava e o almoxarifado parecia um portal do passado, o prédio antigo, as porta de madeira maciça e a presença do velho e paciente irmão.
Cheguei muito cedo, numa manhã de verão e como de costume, fiquei sentado na amurada da entrada, aproveitando os raios de sol e ouvindo o meu radinho Evadin, claro... rádio Jovem Pan.
“Hora certa”...
Seis e quarenta em São Paulo...
REPITA
“Seis e quarenta em São Paulo”.
Absorto na minha liberdade, não tinha pressa de começar o serviço, mas, sempre saía cedo do pavilhão pra evitar a escala de limpeza.
De súbito fiquei de frente pra porta e estranhei a ausência do enorme cadeado que a ornamentava.
Talvez o irmão José já houvesse chegado, fui até a entrada e empurrei a gigantesca porta, ela abriu em frandes e mostrou uma enorme sala vazia, sacas e sacas de mantimentos haviam sido levadas, pra meu desespero, limparam também a parte dos doces. No balcão, jazia a faca que fatiava a mortadela.
Desci a ladeira íngreme que dá no pátio do grupo escolar e cheguei à residência dos irmãos e desacelerei pra acompanhar os passos do meu chefe.
E subiram todos, até o seu Bernardo e o seu Mates motorista, que levou o cachorro Viele consigo.
Quando estávamos na curva acima da administração, o cão latiu e correu na direção da caixa de força, o povo não ligou pra isso, eu e o seu Mates fomos ver do que se tratava.
Ali, no espaço alto do barranco sobrara dois sacos de feijão, o de cima estava rasgado e o produto se espalhara pelo chão.
_Rota de fuga. Disse o irmão José, com um ar de Sherlock Holmes.
O seu Mates sorriu enquanto acariciava o cão detetive:
_Sabe tudo, esse menino, sabe tudo.
Meia hora depois chegou o Fusca da polícia civil, uma hora depois trouxeram dois adultos algemados pra confirmar o roubo e esclarecer os fatos, ambos haviam sido interno do Educa.
Repostas todas as mercadoria, a vida voltou ao seu curso e, o almoxarifado voltou pro começo do século.

terça-feira, 7 de junho de 2016

O Gugo


Primeiro, devo dizer que, não consigo associá-lo com qualquer ideia de morte ou violência que o levaram a partir cedo demais, na minha memória ficou o guri magrinho que eu vi nascer e tinha em consideração como se fosse um dos meus filhos.
E em segundo, só escrevo sobre ele, por saber que ele não mais está entre nós, se estivesse, diria com seu sorriso amarelo e desafiador:
_Olha lá, meu pai escreveu sobre mim.
E isso me levaria a dar-lhe mais um cascudo, mais um.
Nasceu com o nome de Reinaldo dos Santos, filho da minha amiga Cecília no ano de 1988, esse ano houve quatro barrigadas na Rua Osvaldão, o Gugo, o Luther Victor meu filho, o Lucas GoncalvesGuilherme, da minha amiga Jussara, o Bruno Henrique da minha cunhada Sandra e o outro Bruno, neto da dona Avanir, dentre eles, o Gugo era o mais ativo, o mais infernal.
Juntam-se os meninos na rua a brincar, um se sobressai invariavelmente, tem uma música que diz:
"Moleque novo, que não passa dos 12, já viu, viveu mais que muito homem de hoje”... Pois é, esse era o nosso menino, continuando o verso, ainda está falando dele.
Frágil corpo de guri e uma mente de adulto, a minha proximidade com os meninos da minha comunidade o encorajou a me chamar de pai, ele e o irmão André começaram a brincar com isso, dei-lhes um cascudo e não pararam.
Em épocas de aula, foram matriculados na escola do Educandário Dom Duarte, por habito, eu levava os meus filhos.
Naquele ano a prefeitura não forneceu a camisa da escola, comprei as dos meus filhos e quando subíamos pra escola, pisando nos paralelepípedos da minha infância, reparei que na pequena multidão, uns poucos meninos se destacavam, não portavam a camisa branca que padronizava os alunos, esses alunos eram da minha rua, o Gugo passou e eu gritei:
_Cadê a camisa da escola, moleque???
Sem o medo que é característico das crianças, exibiu o seu sorriso amarelo e sem cerimônia, disse:
_Quando você assumir a minha paternidade vai comprar uma pra mim, minha mãe não tem condições.
Ao dizer isso, não esperou o tapa, correu.
Quando cheguei em casa, percebi que havia um dinheiro de sobra, a Angela concordou, meu dinheiro dava pra umas 10 camisas, juntei com os fundos da Associação de bairro e encomendei 20 camisetas pros meninos da Osvaldão.
No dia seguinte, deu gosto ver que todos os meus meninos não estavam mais fora do tom e, mesmo que eu não tivesse feito publicidade, ao passar pela casinha do campão, lá estava o Gugo, exibindo uma camisa branquinha pros outros meninos, ao notar a minha presença, gritou:
_Olha que beleza, foi meu pai que me deu.
Se éramos todos uma família só, veio o Dínamo e consolidou a teoria, outros membros se juntaram ao grupo.
Quando alguém lhe chamava a atenção pelo fato de ele sair e voltar do grupo, dava de ombros e dizia:
_Não esquenta não, o dono é meu pai.
No campo era leal e raçudo e campeão em ser expulso, não dizia Dínamo, dizia FAMÍLIA.
Quando o meu filho Victor foi convidado a participar de um torneio pelo interior, compondo uma equipe do Corinthians, eu disse que não seria possível, não confiava em ninguém pra cuidar do meu filho, por atuar nesse segmento, sei o quanto é perigoso, nunca achei que alguém pudesse ter o zelo que eu tinha com os meus filhos.
Meu filho iria ficar triste, mas não daria pé mesmo, passei uns dias tentando achar uma solução.
Da janela do meu apartamento, na Chácara Bela Vista, se tinha uma vista quase panorâmica do terrão, ouvi gritos e me debrucei pra ver melhor o que acontecia.
Na grama, debaixo da minha janela, a Cecília se esgoelava a chamar o filho caçula que empinava uma pipa e fingia não ouvir.
_Ô Bolinha, vem pra casa comer.
Do outro lado da pista havia um descampado, debaixo das redes de energia, os meninos chamavam-no de "Terrão", o menino fazia manobras na pipa, a mãe gritou mais uma vez e nada.
Do nada, o Gugo veio correndo, atravessou a pista, ao vê-lo o irmão iniciou um a corrida, em vão, foi alcançado, imobilizado e levado à mãe.
Diante da minha gargalhada, a Angela quis saber, expliquei o meu plano e ela sorriu cúmplice.
No dia seguinte fui ter com o técnico do time:
_Imponho uma condição pra o meu filho ir ao torneio.
_Qual é???
_Tem que levar o Reinaldo junto.
Por incrível que isso possa parecer, dormimos tranquilos na ausência do nosso filho, sabíamos que ele não estava sozinho, o Victor nos disse depois, que o Gugo, ainda que fosse menor que ele, espantava todo mundo que se aproximava como se fosse um irmão mais velho.
Dias depois do torneio, me veio o Gugo:
_Tá vendo, como sou mesmo seu filho???
Pah, esse tapa foi um dos mais perfeitos que eu já dei na minha vida.