sábado, 25 de janeiro de 2014

A canção perfeita

As pessoas costumam dizer que, tem música que conta história... eu vou mais longe, todo momento que eu vivi, tem uma música para lembrar, minha memória e a música caminham juntas, a música é o combustível que ativa as minhas lembranças.
  Quando fui trabalhar na administração do Educandário Dom Duarte, com o seu Tinoco, pensei que estava sendo punido, não que eu não merecesse castigo, mas, quem imagina que um guri de 12 anos, vá se entender com um senhor, com mais de 80, ranzinza e caladão?
  No começo, havia só o silêncio, silêncio propriamente não, arrastava-se no ar aquela música que vinha do rádio dele, uma música marcial, aqueles acordes inflexíveis, aquela coisa monótona e repetitiva, muitas vezes, ele percebia que eu fechava os olhos na minha cadeira, dava um forte tapa na mesa e, eu acordava assustado, ele sorria feito uma criança, que acabou de cometer uma travessura.
  O ajudante do seu Tinoco, diferente dos ajudantes do seu Reginaldo e do seu Alones, não saía para entregar bilhetes ou comprar alguma coisa, portanto, eu tinha que ficar ali, naquela guerra de gerações, lá fora, os outros meninos escutavam The Commodores e Guilherme Arantes, lá dentro, a trilha sonora era, supunha eu, a de um campo de concentração.
  Na sala, haviam, além das fotos antigas, troféus enormes, de um tempo de glória da fanfarra e do futebol Educandariano, a minha curiosidade fez com que ele se abrisse e, do baú aberto, havia uma riqueza de detalhes, datas e acontecimentos, aquele velho mal-humorado era um narrador apaixonado, conhecia todas as histórias que os troféus não mostravam.
  Viciado em leitura, naquele tempo, não abri um livro, toda cultura que adquiri, foi via oral, minha mente viajava, as histórias eram dum tempo duro, nossa!.... Se no meu tempo era duro ser interno, imagina no tempo dele, onde reinava uma disciplina militar e os internos eram tratados como prisioneiros.      Aquilo foi tão bom para mim, que anos depois, fui entrevistar um velho combatente da revolução de 32, como trabalho de estudos sociais, o pracinha ficou impressionado com o meu conhecimento de causa que quis me adotar.
  Ainda assim, a música continuava a mesma, certo dia, faltando poucos minutos para o meio dia, entrei na questão:
  _Seu Tinoco, essa sua música faz pensar em suicídio, eu até que gosto de clássicos, mas convenhamos... Vagner é de lascar.
    _. Ué, eu gosto de Vagner disse isso e sorriu.
  _O Hitler também gostava e isso não fez dele um ser humano lindo.
  _E. o que o "programador" sugere ???_disse ele, ainda rindo.
  _Poe aí, umas músicas de negão, falei isso, mas, já estava saindo da sala e ganhado a garagem, ele saiu até o corredor e gritou:
    _. Amanhã, vou te mostrar o que é música.
  No dia seguinte, ele tinha, em cima da mesa, uma vitrola antiga com um disco de 78 rotações, na capa do disco, que estava em cima da mesa, um nome:
  Scott Joplin, confesso que isso não me impressionou nenhum pouco, o velho segurava o braço da agulha e com um ar misterioso, começou a narrar:
    _. Imagine um mundo, um mundo sem jazz, só havia as polcas e as valsas...
  Conforme ia contando a história, crescia e descia o tom da voz, conforme a emoção, contou que os negros, nos barcos que navegavam o rio Mississippi, aprenderam a tocar piano, olhando os brancos, mas, aprenderam do seu modo, usando a parte preta das teclas, isso deu um som diferente de tudo o que era conhecido e, muito mais rápido no seu passo, servia mesmo para dançar, essa música, foi dado o nome de Ragtime e, só então, soltou a agulha no disco.
  O som que ecoou na sala, me conduziu direto ao começo do século XX e a música era conhecida, aquelas músicas incidentais do cinema mudo.
  É claro que fiquei encantado, a evolução da música foi mostrada, cada dia um disco diferente e nem se eu tivesse um curso intensivo, eu teria um professor deste gabarito.
  Blues, Jazz, isso, no entender dele, era música de negão e ele conhecia tudo, de Glenn Miller à Sinatra, de Cole Porter à Nat King Cole, mas tinha uma paixão especial por Billie Holiday.
  Quando falava dela, seus olhos brilhavam, sabia tudo sobre ela, suas músicas e sua vida, todos os dias, ele trazia um disco de Jazz ou Blues e no final, sempre executava um da Billie.
  Minha canção preferida sempre foi Blue Moon, quer dizer, a canção preferida dele, virou a minha.
   Então juntos, chegamos à conclusão que a música perfeita seria ela e, na voz da Billie.
  Na minha vida, conheci muitos amantes de Jazz, desses, oito entre 10, eram apaixonados pela Billie... aos poucos, eu me tornei um deles.
  Anos mais tarde, eu já trabalhava na Procuradoria Geral do Estado, passeava para os lados do Metrô São Bento, quando ouvi a Billie interpretando. Estrange frut., jurei para mim que ia comprar esse disco, entrei na loja e havia um senhor sentado, ouvia a música com os olhos fechados, tinha uma coleção dos discos dela, passei em revista, disco por disco e, no meio de todos eles, achei um que me assombrou, peguei-o e levei para o vendedor:
  _A Billie gravou Blue Moon mesmo?
  Ele acenou com a cabeça que sim, não acreditei e pedi que ele a executasse na vitrola, ele obedeceu, quase chorei de emoção, comprei o disco.
  No dia seguinte, fui para o pavilhão 11, que agora estava convertido em asilo, o seu Tinoco sorriu a me ver adulto, quando lhe entreguei o disco, seus olhos brilharam e gaguejando disse:
  _A canção perfeita.
  Essa foi à última vez que vi, meu velho amigo de infância.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Risadas no cemitério.

   Quando cheguei ao Dom Duarte, em 1977, eu tinha 11 anos e estava no ginásio. Não parece grande coisa, mas, isso me deixava em vantagem, com relação aos meus amigos, primeiro que eu estava apto a trabalhar e isso me tirava do pavilhão, não tinha que trabalhar na enxada, trabalhava na olaria, na parte da manhã e à tarde eu estudava no Grupo Escolar anexo ao E.D. D, a maioria deles, ainda que fossem mais velhos, estudavam pela manhã, pela tarde, ficavam no pavilhão, ou seja, enxada e pino.
  A outra vantagem era capilar, que também não parece grande coisa, mas lembre-se que estamos nos anos 70... época de cabeleiras avantajados, calças boca de sino, suspensórios e chinelos franciscanos. Reparem que eu comecei a frase com. cabeleiras avantajadas, isso caro leitor, fazia um negão feliz, em 1977.
  Faltando poucos dias para o início das aulas, fomos ao barbeiro, o Castro cortava cabelos numa salinha, ao lado do teatro, era um sujeito calmo, que pigarreava a todo instante, pouco falava e ouvia a radio Jovem Pan, eu também ouvia, só que, à noite, na transmissão do meu Corinthians. Na sala só cabiam quatro, éramos uns 30, enquanto ele cortava o cabelo de um, três esperavam sentados nas cadeiras, o resto ficava lá fora, alguns em pânico, posto que, dali a alguns minutos ficariam carecas, era hábito, na época o corte do exercito (corte reco), uma pequena faixa de cabelo, no alto da cabeça e o resto raspado na zero, (Nossa Mãe, só de lembrar, me arrepia).
Sucessivamente, vi meus amigos entrando na sala com cabelos e saindo sem eles, a cara deles era um misto de saudade e melancolia, entrei na sala e fiquei na cadeira de espera, na minha sequencia vinham o Viana e o Téquinha, esse segundo exibia uma juba tão grande, que parecia o próprio Don King.
  O barbeiro acabou de raspar mais um, minha vez, sentei-me na cadeira, acomodei-me, ele ajeitou aquela camisa frontal e aquela proteção do pescoço, pigarreou e virou-se para o espelho, pegou a máquina, limpou-a e ligou, veio em minha direção, com ela ligada e sem pente, quando a maquina ia encontrar o meu cabelo... Esquivei tranquilo e disse:
  _Auto lá, amizade. Aqui é ginásio!
  O barbeiro pareceu não acreditar, olhou pros meninos que esperavam, eles confirmaram com suas cabeças´(ou devo dizer com os seus cabelos), o barbeiro sorriu, jogou a maquina e apanhou a tesoura, com muito capricho, baixou e arredondou. Assim começou uma boa amizade.
  Por via das dúvidas, fui passear, não queria ver meus amigos naquela hora, se os visse, iria rir muito... consequentemente, eu iria apanhar.
  As aulas no Grupo Escolar começavam às 03h30min horas da tarde e terminavam às 8:15 da noite, por conta disso, quando algum aluno chamava o outro pra brigar na saída, não usava a célebre frase de todas as escolas (_Vou te pegar na saída), no EDD, quando alguém queria deixar claro que iria brigar, dizia em voz alta:
  _Aí, fulano... Oito e quinze !!! Pronto, assim todos sabiam que haveria briga na saída.
  No final do horário da escola eu tinha que correr pro pavilhão, era muito divertido percorrer o caminho da escola até o lar 14, sempre uma aventura, quando eu chegava, enquanto os amigos já estavam na cama, eu ainda ia tomar banho e jantar, acabava assistindo televisão com os grandes, que chegavam dos seus empregos nessa hora.
  Nos dias de aulas vagas, eu não subia para o lar, ali perto da portaria, na entrada do campão, existe uma escada de alvenaria, conforme os grandes chegavam dos seus empregos, ficavam por ali, alguns esperavam os amigos que moravam no mesmo pavilhão, pra subirem acompanhados, outros ficavam ali pra conversar, algumas meninas da escola, namoravam com os caras, saíam da escola e desciam pra lá.
  Nós, os menores, ficávamos com eles, porque queríamos ser como eles.
  Numa noite, tivemos duas ultimas aulas vagas, eu, o Brito do 17 e o João do 24, o ultimo, por ter no queixo o formato de uma nádega, era chamado de João de Bunda, mas é claro que só os grandes o podiam chamar assim, o João era forte, bateria em nós.
  Naquela noite iria passar uma final de campeonato na televisão, por conta disso, os grandes não ficaram na escada, como era de hábito, decepção total, ficamos os três, sozinhos e desolados, num silencio de morte, dava pra ouvir os grilos no mato.
  Eu já ia propor que fossemos embora, a noite estava perdida... repentinamente ouvimos um barulho alto e vimos um clarão, olhamos pra cima e vimos aquela maravilha sobre as nossa cabeças.
  O balão em formato de charuto sobrevoava o campo em nossa direção, ficamos em silencio, maravilhados, estupefatos com a beleza do seu voo, descia feito uma nave que vai aterrissar, a chama a tocar na grama, corremos na direção dele, não podíamos deixar que ele batesse a boca no chão e se queimasse, vimos que o Augusto do 17, que havia ido embora, descia o barranco do campão.
  _Tá na mão. Ele gritou.
  _Tá na mão o cacete._Respondeu o Brito.

 Já estávamos chegando perto, as chamas nos iluminava, mais uns passos, uns poucos passos, pude sentir o seu calor... de repente, bateu uma aragem e ele nos escapou, ganhou altura e foi-se, atravessou o campo e continuou, chocou-se contra o galho do pé de eucalipto, que ficava depois da linha de fundo, à direita e continuou a viagem, atravessou a estrada do campão, sobrevoou a Sabesp e saiu do Educandário, nós ainda atrás do bruto, atravessou a Heitor Eiras Garcia e entrou em território do Cemitério Israelita, quando invadimos a Sabesp, o Augusto disse que não iria entrar no cemitério e voltou pro campo, nem olhamos pra trás, não dava pra conversar, proprietários de balão não ficam de conversinhas.
  Na época, não havia um muro naquela parte do cemitério, só uma cerca de arame farpado, nem paramos, passamos por ela e ganhamos território, o balão perdia altura e ganhava velocidade, ladeamos o riozinho em direção à portaria, seguimos a estrada à direita, percebemos uma gritaria e vinha da direção de onde ele baixara, entre os túmulos do campo santo, ele se acomodava, alguns meninos o cercavam, quatro meninos maiores que o João, que era o mais alto de nós.
  Desanimados, deixamo-nos ficar ali, sem sermos vistos, além dos quatro, que já estavam lá, desciam mais cinco na estradinha, eram da favela da Vila Operária, o Brito, já sentado numa lapide falou:
  _E agora? Brigar ou correr? Falou isso quase sussurrando.
  _Bora, sair na porrada com todo mundo, pegar o balão e sair fora. Falei isso de brincadeira, desde cedo eu tenho a mania de fazer piada em horas impróprias.
  O João, que ainda arfava, por conta da corrida, ao ouvir a minha proposta soltou uma gargalhada, dessas gargalhadas de Exu caveira, sua voz reverberou no campo santo e repetiu no eco, os meninos que desciam, puseram-se a correr de medo, os que estavam perto do balão, ameaçaram de correr, olharam pro nosso lado e os túmulos à nossa frente, impedia que eles nos vissem, ficaram parados, preparados pra correr.
  O Brito, o João e eu, rimos juntos, as vozes juntas ecoaram, os meninos correram gritando.
  Recolhemos o balão, com todo o cuidado do mundo, em silencio. No caminho de volta, o João, que tremia copiosamente, quebrou o silencio:
  _Vamos embora logo dessa porra, tenho muito medo de cemitérios, só vim por causa de vocês.
  Eu e o Brito respondemos ao mesmo tempo:
  _Idem.
  Voltamos, pelo mesmo caminho, chegamos à escada, passamos e sentamos embaixo do mastro das bandeiras, voltados pro campão, já não havia cansaço, a lua cheia brilhando, saía de trás do bambual, como se festejasse nossa proeza, ficamos ali, conversando sobre tudo aquilo.
  Depois do que o João disse, percebi que o medo era igual em todos, o medo fazia parte de todo ser humano, eu continuei a correr, achando que eles não tinham medo, eles acharam que eu não tinha medo, no dia seguinte, iríamos contar a aventura e diríamos que ninguém de nós teve um pingo de medo.

  Decidimos que o João levaria o balão pro 24, provavelmente, o soltaríamos no fim de semana, ouvimos a sirene da escola, os estudantes saíam, as luzes das salas começavam a se apagar, seguimos a estrada de paralelepípedos, rumo ao aprendizado, juntamo-nos ao grupo que saía da escola, em frente ao aprendizado o João se despediu de nós, seguiu à direita, ia pegar a estrada do 21, entramos à esquerda e seguimos, no jardim do teatro, o Brito se despediu de mim, ia seguir a subida do 15, rumo ao 17 e eu segui a estrada da jaqueira, o milharal do 14 não me punha medo algum, a lua cheia iluminava o caminho, fui pra debaixo da jaqueira e chutei de leve a vegetação, abaixei-me e resgatei meu material escolar, dentro de uma sacola plástica, tirei-o e enrolei o plástico, o material embaixo do braço e a sacola no bolso.

  

sábado, 18 de janeiro de 2014

3 paixões.

  Quando eu tinha 11 anos, haviam 3 coisas que moviam a minha paixão, confinado no mundo restrito que se apresentava na minha condição de cativo, sorria da minha falta de liberdade e, criava a minha versão de ser livre, ainda que eu fosse interno de uma instituição de regras duras e religião imposta, não me sentia cativo.
  Se, por um lado, minha liberdade se restringia ao território geográfico do E.D.D, por outro lado, o Educandário era maior que muitos bairros.
  Aos fins de semana não esperava a visita da família, minha família se resumia ao meu irmão menor e aos irmãos de colégio, esses tinham problemas tão grandes e maiores que os meus, alguns foram deixados em orfanatos, após o nascimento...eu, pelo menos, tinha sabido dos meus pais.
  A primeira coisa que me movia era o futebol, aquele Grêmio Educandário era realmente empolgante, comandado pelos Ditinho e Pivete, duas figuras que se opunham, o camisa 8 era chefe da gráfica, baixinho e ligeiro, o Ditinho tinha um toque de bola refinado, mais sempre optava pela pegada firme, a condição de capitão do elenco fazia dele um cara mal humorado, que gritava o tempo todo, o camisa 10 era o Pivete, como o outro, tinha sido interno e também trabalhava na gráfica, habilidoso ao extremo, levava a bola colada ao pé, alto e muito magro, levava todas no alto e, quando era acuado, saia sempre com a bola entre as pernas dos marcadores, sempre tranquilo, jogava com o pulso da  mão esquerda virado pra baixo e sorria o tempo todo, sempre que o Ditinho perdia a calma, o Pivete sorria e gritava:
  _Arrê...esmagueira.
  Quando o time estava em apuros, no meio de campo, eles se conversavam, quem via, do lado de fora, ria da cena, o Pivete tinha que, quase se agachar, pra ficar na altura do Ditinho, ficavam assim por alguns segundos e depois vinha a virada...sempre assim.
  A segunda coisa era a piscina, se a minha primeira experiência nela foi traumatizante, passou logo e eu ficava horas e horas dentro da água, já havia conquistado algumas medalhas e, pra não ficar longe dela, ajudava na manutenção, por vezes, ficava de salva-vidas, dos meninos menores, fazia qualquer coisa pra ficar por ali.
  A terceira coisa era o teatro, eu adorava as peças que eram apresentadas lá, naquela época o Sergio Camargo, ator da primeira versão da novela da Tupi "A viagem" deu aulas e implantou a companhia de artes cênicas no E.D.D, via de regra, os participantes dessa companhia, eram meios metidos à besta, se sentiam...Só um deles, não era arrogante, esse era o Jordão, ele era uns anos mais velho que nós e era o nosso herói, dono de uma voz invejável e uma postura digna, permitia que nós ficássemos na platéia, por conta disso, quando ele saía de cena, íamos embora.
  Geralmente, essas 3 paixões, nunca brigavam entre si, cada uma delas tinham tempos e durações distintas, havia o horário e os dias, pra cada uma delas.
  Mas, num dia de sábado, lá pras 4 da tarde, quando o sol começava a se esconder, as arvores que cercavam o lago, que ficava ao lado da quadra, já esticavam suas sombras, privando a área da piscina da sua luminosidade, estávamos nós, sentados no barranco acima dela.
  Eu, o Chumbinho, o Valdeci, o Dooley, o Zé Almir, o Spock, e...é claro, o Viana.Esperávamos o Ronaldo se aquecer fora da piscina, ele prometera quebrar o seu recorde e estávamos ali, pra testemunhar.O Ronaldo era um fenômeno de mergulho, com o corpo submerso, ele dava 7 voltas na piscina, agora ele ia tentar fazer as 8 voltas.
  O Ronaldo era daqueles crioulos, que já nascem com massa muscular avantajada, corria muito e subia em arvores com uma naturalidade que dava inveja, isso lhe rendeu o apelido de macaco d'água, seus rituais de aquecimento se alongavam, lá, do barranco, dava pra enxergar um pedaço do campão, que ficava num plano mais baixo, dava pra ver metade do campo, o gol da entrada e o vestiário, naquele exato momento, alguns jogadores chegavam e se aglomeravam do lado de fora do vestiário, começamos a ficar preocupados, o Ronaldo ainda se aquecia, falei pros amigos:
  _Não vou aguentar não, vou descer pro campo.
  _Pôrra, negão...Vai começar o jogo._Gritou o Chumbinho.
  Nas nossa costas, vinham barulhos do teatro, aquecimentos de vozes e instrumentos, viramos e vimos a porta aberta.E estavam alinhadas as minha 3 paixões, o teatro acima, numa linha reta, mais abaixo, tinha a piscina e, mais abaixo, na mesma reta, o campão...mas, era um dilema fácil de resolver, era só descer pro campão, assistir o Grêmio e depois passar no ensaio.
  O Ronaldo pulou na água, sabíamos que ele ainda ia demorar em seu aquecimento, que o negão fosse às favas, já havíamos levantado pra descer, quando vimos o Silvinho, vinha correndo pela estradinha, ao lado do lago, passou correndo ao lado da piscina e veio em nossa direção, esperamos ele, ele chegou em nós, mas não parou, arfando disse:
  _O Jordão vai cantar.E continuou a corrida, rumo ao teatro, sem saber onde íamos, sentamos, o Ronaldo, que vira o Silvinho correndo, dentro da água, perguntou o que é que estava acontecendo, o Spock gritou:
  _O Jordão vai cantar.O Ronaldo balançou a cabeça contrariado.
  Lá no campão, alguns jogadores já saiam uniformizados, calças, meiões e camisas pretas, iniciamos a descida do barranco, repentinamente, ouve-se um grito agudo, vindo lá de cima, seguiram-se notas dissonantes e virou melodia, eu estava na metade da descida, virei-me e segui a melodia, quando cheguei no alto do barranco, os amigos passaram correndo e já se aglomeravam, tentando olhar o palco, na porta entreaberta, havia uma cadeira impedindo a porta, ficamos ali, pra esperar alguém abri-la.
  Nessa espera, senti que meu tênis estava encharcado, que coisa estranha, dei um tapa na cabeça do Ronaldo:
  _Caramba, negão!Não dava pra ter se enxugado ???

sábado, 11 de janeiro de 2014

A escola nova.



   
Sempre fui avesso à condição de protagonista, de natureza retraída, vivia minhas aventuras sem me mostrar, me conformava em ser mais um participante ou a testemunha, se, por alguma eventualidade, as coisas me apontavam como autor de algo, me fazia de estátua e tirava o foco da minha pessoa e.… a vida continuava e, então essa aventura me pegou desprevenido e quase me custou muito caro. E cá estava eu, sendo interrogado por 4 milicos, na sala da diretora, achando que a minha história seria interrompida violentamente, optei por não responder nada, meus interrogadores davam sinais de estafa e um deles tirou do coldre a arma, jogou-a em cima da mesa e eu o respondi com um tumular silencio, queria que tudo se acabasse, queria dizer-lhes que tudo não passara de um engano, mas tinha certeza que não ia colar...
  Em 1979, o Grupo Escolar do E.D.D foi fechado, já não podia atender à crescente demanda da região, que crescia à passos largos, todos foram remanejados para a nova escola, que se chamava Escola Estadual do Primeiro Grau Luiz Elias Attiê.Quem saía do 14, descia o caminho da jaqueira e à direita do Aprendizado seguia sentido à administração, na estrada que levava à portaria, seguíamos pro lado oposto, passando pelo lago do 24, nessa altura, já terminava o território do E.D.D, seguia-se uma longa estrada de terra batida, de um lado a horta do Japonês, de outro, uma vasta extensão de mamoneiras, cana de burro e capim gordura, chegávamos ao fundo da escola, alguns mais afoitos, pulavam o muro.
  Quando saíamos do pavilhão, éramos uns 10, a turma ia aumentando, os outros internos dos outros pavilhões iam se juntando, entre as brincadeiras e as bravatas, sempre seguíamos cantando, essa caminhada fez com que as amizades se consolidassem, na nova escola os internos deixaram de ser a maioria esmagadora, mas ainda era a força dominadora. Na saída, pegávamos o sol à pino, mas a turma voltava cantando, muitos dos internos, que eram dispensados mais cedo, esperavam no portão, não tinha graça, a caminhada sem companhia.
  Sempre, um guri começava uma canção, em seguida todos acompanhavam:
  _. Quanto tempo temos antes de voltarem aquelas ondas, era um tipo de coral andante.
  Lembro do menino que morreu, apanhado por um raio, na quadra, eu nunca soube o nome dele, para falar a verdade, eu nem o conhecia, mas, estava lá.
  Havia uma aula vaga e ainda que as nuvens de tempestade apontassem ameaçadoras no céu, tínhamos a bola, a quadra ficava num plano mais alto, do lado de fora do pátio. Quando começou a chuva, estávamos com a partida empatada, ela aumentou e como ninguém fez menção de sair, fiquei em quadra, com a chuva forte, ouvia-se o barulho dos trovões e raios cortavam os céus.
  O tal menino estava no meu time, o escanteio, naquela época, era cobrado com as mãos, com a bola nas mãos, ele se preparava para arremessa-la na área, eu estava desmarcado na área, a visibilidade era pouca, mas se a bola viesse na minha cabeça...Um raio clareou aquela quina da quadra, sentimos a descarga elétrica, a claridade foi tanta e o barulho tão alto, que durante uns 5 minutos fiquei cego e surdo, lembro que alguns amigos me levaram, pelos braços o caminho da quadra até o páteo.Dizem que ele foi reduzido ao tamanho de um boneco.
Aquele foi um inverno muito rigoroso, as aulas tiveram que ser suspensas, não se podia ficar parados, sem que as mãos fossem congeladas, no pátio ouvíamos o Gil cantar: _"Observando estrelas, junto à fogueirinha de papel".
  E, literalmente as fogueirinhas de papel, fazíamos com os nossos cadernos.
  Era a época da "Disco", na sétima série, o Xodó fechava a sala e dava bailes, dançava feito gente grande, as músicas da Donna Summer.
  Minha alça de mira apontava em outra direção, na primavera, ensaiamos e encenamos Capitães de areia, sem a ajuda de nenhum adulto.
Em outubro, quando eu já havia passado em todas as matérias, aconteceu...
  Minha turma agora era outra, eu andava com um pessoal mais engajado, de boas notas e de comportamento não recomendado, que gostavam de política, música, futebol e garotas (não necessariamente, nessa ordem). Eram os: Arthur, o Gilvan, o Dalcides, o Romão, o Gibi, o Porfírio e o Aparecido. Na hora do recreio, enquanto esperávamos na fila do mingau, algum garoto soltou uma bola no pátio, como sempre acontece, a bola foi chutada por outro garoto, chutada por outro...e, virou um racha.
  Alheios à fila da merenda, eles passaram a correr e a driblar, um deles chutou com mais força, a bola subiu e bateu na parede lateral, ali havia um quadro, no quadro a foto do governador do estado de São Paulo, com faixa no peito, o quadro se espatifou no chão, os meninos que jogavam, recolheram a bola e saíram correndo, a merendeira chamou a coordenadora, quando a Maria Luiza chegou, deu de cara com o quadro no chão e como já havíamos pego nossas canecas, ficamos ali, é claro que ela achou que fomos nós os autores daquela façanha, fuzilou-nos com os olhos, o Aparecido disse-lhe que não tinha sido nossa culpa, quando ela perguntou quem tinha sido, ele se recusou a dizer, a faxineira juntou os cacos de vidro e a moldura, a coordenadora tinha a foto do governador nas mãos.
  Eu estava encostado no balcão da cantina, diante da cena, não pude resistir e falei:
  _. Não entendo todo esse carinho por uma pessoa que não foi eleita pelo povo.
   Irada, ela se virou e disse que eu estava sendo subversivo, eu retruquei à altura e iniciou um diálogo, ela atacava e eu contra-atacava, o pátio começou a ficar lotado, a cada resposta minha, seguia-se acalorados aplausos, sem o habitual constrangimento de ser o centro das atenções, permaneci firme.
Quando ela se retirou do pátio, seguiu-se uma balburdia, as pessoas gritavam palavras de ordem e se recusavam a entrar nas salas, à essa altura a polícia já tinha sido chamada, tentava entrar, meus amigos de classe já tinham tomado o controle e trancado o portão de entrada, alguns meninos estavam em cima do muro e atiravam pedras na viatura, lembro de ter visto a professora de Português, dona Claudia (comunista de carteirinha) passar por mim e dar um sorriso de orgulho. Se os meus amigos estavam gostando muito daquela brincadeira eu estava com medo daquilo tudo, ver as carteiras sendo arremessadas para fora das salas de aula e crianças na mira da polícia, não era o meu sonho de democracia.
  Mais tarde, quando a polícia dominou a situação, a coordenadora enumerou todos os cabeças, disse que eu estava sozinho, mandaram os outros embora e ficaram comigo na sala da diretora.