terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O castigo

Nessa, vou pedindo desculpas pras moças.
As mulheres, esse maravilhoso presente de Deus, que fazem os meninos suspirarem, que silenciam uma conversa animada, que nos causam dores na alma e nos tiram o sono, nos faz poetas e patetas.
Tudo isso, num tempo mais tarde, na infância nosso maior material de adorno tem outro nome... bola.
Feito isso, deu pra perceber que vem aí mais uma aventura de futebol, futebol e amizade.
_Caramba Niltão, você só pensava em bola? Perguntará o leitor.
_Absolutamente, eu pensava em coisas como, a paz mundial, ganhar na loteria esportiva, conhecer o Simba Safari e quebrar a cara do George Foreman. É... pensando bem, eu só pensava na bola mesmo.
Na verdade, eu não conseguiria falar desse amigo, sem falar de uma partida de futebol memorável.
Antes disso, um prólogo que vai, no fim do texto, dar sentido à narrativa:
No final de 1979, mais ou menos, houve uma verdadeira revolução no Educa, quase todos os grandes foram "expulsos", os buldogs da dona Camila passaram a fazer parte da paisagem, os irmãos foram embora, o pavilhão 11 foi desativado e mais tarde viraria a creche, livre dos grandes o pavilhão 15 virou um lar de meninos com idade de seis e sete anos.
Os meninos do 15 viraram a grande atração, quando eles desciam, em fila indiana, para o refeitório central, causava certa euforia nos outros internos, qualquer um que estivesse na frente da fila, dava licença pra eles, eram os caçulinhas de todos. Vendo um deles, que se movia muito rápido e entre todos era o mais bagunceiro, meu amigo Viana disse:
_Aquele ali parece o Ligeirinho, aquele ratinho das histórias infantis, todos concordamos e o apelido pegou.
Então vamos ao assunto:
O Valdir Lustosa havia vindo da Casa de Infância, mais um dos meus amigos mais velhos, tinha o irmão Paulo e eles moravam no lar 24.
Disse em outra postagem, quando falei do Sebastião, que na Casa da Infância haviam dois grandes goleiros, o outro era o Valdir.
Ainda que ele fosse um "fora de série" no gol, o time do 24 era de medíocre à ruim, suas belas defesas não salvavam o time.
Nosso próximo adversário seria o 24, a hegemonia do 14 era tão grande que a expectativa era um massacre, com muitos gols.
Cego pela arrogância encontrei o Valdir no Attiê, na hora do recreio, falamos sobre o jogo próximo e devo ter sido bem pretencioso, ele ameaçou de partir pra pancada, formou-se uma rodinha em volta, uns me seguravam e outros o seguravam.
_Tá pensando que vai ser fácil assim? Vamos deixar vocês de joelhos, vão ver, vão ver.
Alterado, mas tentando me manter calmo disse, entre o riso sarcástico:
_Só um milagre vai salvá-los da ruína.
É, fui prepotente, arrogante e nada humilde, vai dizer o leitor.
Sabendo que, se eu alegasse ter doze anos à época, não seria uma boa desculpa, admito que fosse bem canálha nesse episódio. Pessoa mais espiritualizada, diria que eu iria pagar nas próximas encarnações.
Porém, isso não acontece no meu caso, se Deus espera o momento certo pra ajustar as contas com todos... no meu caso, o castigo vem na hora, sempre foi assim.
Da sexta pro sábado, sem aviso nenhum, caiu um verdadeiro dilúvio, fomos dormir com uma chuva medonha e ela perdurou a noite toda, a manhã toda e cessou as 13:00 horas e o jogo estava marcado pras 14.
O campão do Educa era um sonho, grande, bem localizado e imponente, mas em termos de drenagem...
Quando chegamos ao local do combate, veio-nos uma vontade de chorar, o campão havia se transformado numa gigante piscina de lama, pensamos em conversar pra adiar a partida.
O Luís Paulo que, já era preto, trajava um uniforme muito preto. Olhou-nos de rabo de olho, o apito já à boca, balançou a cabeça numa negativa.
O time do 24 chegou, vestindo camisa, calção e meiões cinzas, o Valdir vinha sorrindo na frente da fila, olhei pro céu e o sol era firme, a torcida estava disposta a ver um espetáculo pastelão e gritava pra partida começar logo.
Naquele lamaçal nada adiantaria nosso toque de bola, se o Negão e o Mamede eram os mais rápidos laterais ou se o Tadeu era o melhor jogador de todo o Educa, se o trio de volante do 14 era o mais eficiente do campeonato, a gente mal conseguía nos manter em pé.
Na hora que os times se cumprimentavam, o Valdir ainda ria quando me apertava a mão:
_Eu acredito em milagres, e você?
Nesse momento eu fui ao inferno e voltei e, se tinha uma coisa que pouca gente sabia era que o Valdir era feito o Ayrton Senna, normalmente um ótimo goleiro, na lama ele era imbatível.
Estava em silencio quando nos juntamos no meio do campo, o Viana falou:
_Vamos jogar feio, se tiver espaço, paulada no gol.
E foi mesmo um jogo feio, sem passes, sem toque de bola, sem jogadas de efeito e a torcida se divertido com o espetáculo, a chuva voltou e todos se amontoavam na casinha da arquibancada.
Fizemos o combinado, de qualquer lugar batíamos pro gol, cada chute que dávamos o Valdir fazia uma defesa mais linda e ele ganhou o carinho da torcida.
No primeiro tempo ainda, o Luís Paulo marcou uma penalidade pra nós e ninguém contestou, fui pra bater, posto que, eu era o batedor oficial.
Ajeitei a bola na única parte de grama da área do gol que fica na frente da bica, a torcida gritava o nome do Valdir, ignorei e bati com convicção, esticou-se e buscou a bola, nunca havia perdido um pênalti na minha vida, quando o rebote voltou pro meu lado, me desequilibrei e cai na lama. É claro que virei à piada do jogo, parte da torcida gritava o nome do goleiro, a outra parte me xingava.
Poucos minutos depois, outra penalidade foi marcada, fui pra bola pensando em vingança, antes disso o Tadeu pegou a bola e disse que ele ia bater, minha liderança havia sido desafiada e ninguém do time me apoiou puro pesadelo eu vivia.
Naquele instante, fazer um gol era imprescindível, a vergonha batia em nossos ombros, gente que geralmente torcia por nós, agora gritava o nome do Valdir e ele sorria.
Se na minha vez a defesa foi plástica, o Tadeu bateu firme no canto oposto, à meia altura e o miserável do Lustosa buscou e encachou ela e sorrindo uma gargalhada alta, bateu no peito.
É do brasileiro, essa coisa de torcer pro mais fraco, ainda que eles nem chegassem ao meio do campo, a torcida gritava 24, em alto e bom som.
O pesadelo perdurou o jogo todo, sem poder jogar, chutávamos de qualquer lugar e o Valdir fechava o gol, empurrados pela torcida, todos os jogadores ficaram dentro da área, 11 goleiros e o desespero aumentavam e isso nos contagiou, paramos de agredir, tudo se caminhava pro zero a zero.
O Luís Paulo já consultava o relógio, faltavam poucos minutos pro fim do jogo, uma falta foi marcada na intermediária, conforme eu ajeitava a bola, o arbitro olhava o relógio, o Viana foi pra ponta da barreira, ajoelhei e fiquei falando em voz baixa, falando com a bola, o Luís Sérgio passou por mim e perguntou o que eu estava fazendo, respondi que estava fazendo uma promessa.
Última chance coloquei o pé esquerdo ao lado da bola e calculei um perfeito angulo de 45 graus, dei três passos pra trás e bati.
A bola passou a quatro dedos da cabeça do Viana, rodando na caminhada pra trave e ia no endereço certo, O Valdir saiu com o corpo todo no ar, a impulsão o fez deitar, pareceu um voo, foi lá no angulo pegou a bola com as duas mãos e, ainda no ar, a trouxe para o peito, quando caiu espalhou a lama, entre os olhares de todos e a euforia da torcida, ficou uns breves centésimos de segundos no meio da lama, deu um grito desafiador e esse grito foi pra mim.
Já o Luís Paulo tinha o apito na boca, só faltava soprar, pra aquele pesadelo chegar ao fim.
Ainda com a bola na mão e olhando na minha direção, tive a impressão de que ele ia jogar a bola em mim, deu uns passos pra trás, pra tomar distancia e dar o chutão.
Mais um passo pra trás e escorregou na lama, com a bola na mão, caiu pra dentro do gol.
O silencio que se fez, foi um misto de comédia e tristeza, ninguém acreditava naquela cena, antes de apitar o gol, o Luís Paulo soltou uma longa gargalhada.
Depois do jogo, o próprio goleiro fazia piadas de si, os dois times se cumprimentaram cobertos de lama.
Pra cumprir a minha promessa e me redimir, passei um mês ajudando o a tomar conta dos pivetinhos do 15.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Nobreza


Completei 51, nesse blog eu conto histórias de um tempo passado, que determinou toda a estrada que eu ia trilhar pra me tornar o homem que eu me tornei.
Minha historia não foi feita só por mim, fatos e acontecimentos foram divididos por meus amigos, cada amigo meu deu um pouco de material e inspiração e eu me apropriei disso, juntei tudo e usei pra construir o meu caráter.
No instante crucial, anos mais tarde, quando partimos pra cima dos escudos e cassetetes da tropa de choque no largo da Batata, na conquista dos meus troféus no esporte ou quando vi minha filha dar a luz ao meu neto, nunca me esqueci do menino que eu fui no Educandário.
No livro "Conta comigo", Stephen King conta a história dos seus amigos de infância, na hora de terminar o conto, deu um branco e ele não sabia o modo mais bonito pra encerrar, ficou uns dias pensando e escreveu a frase mais simples de todas:
"Eu nunca mais tive amigos, como os que eu tinha, quando tinha 12 anos"...
E nessa frase simples, expressou a mais verdadeira de todas as frases.
A vida era dura, vão dizer os meus contemporâneos, claro que sim, concordo eu, mas dureza molda a vida e te põe uma armadura, quanto maior a integridade, maior é o brilho de sua espada ao sol.
Poderia gastar linhas e linhas pra enumerar coisas que lhe arrepiariam os cabelos e te faria dizer:
_Nossa, eram endiabrados esses internos.
Eu contaria coisas engraçadas e coisas que você desconfiaria da veracidade e diria que sou um contador de anedotas ou talvez eu pudesse ser chamado de historiador, aliás, é assim que a minha esposa me define.
Não falo da nobreza que a posse de dinheiro ostenta, nobreza é a coisa que te separa da besta, nobreza é fazer o certo, mesmo quando não existe razão pra tal, eram nobres meus amigos e não acho que tenha sido uma coisa isolada do pavilhão 14, meu lar, creio que isso era a atitude do interno em geral.
Já contei que o Sebastião era respeitado por todos os outros meninos, também contei do zelo que todos tinham pelo Lucídio e que fui ameaçado, se não cuidasse dele.
O Adalberto era portador de uma doença que atrofiava os músculos, sendo assim, não podia jogar bola e sempre aparecia alguém que trazia um apito, no campo ele apitava os treinos, sem entender coisa nenhuma de regras, meninos que tinham o pavio curto, relevavam e acatavam as decisões dele, caso ele expulsasse alguém, ninguém reclamava.
Acreditavam os meninos que isso faria o Adalberto se sentir tão bem quanto os jogadores e isso é nobreza.
De vez em quando, o Odilon esquecia que ele não podia fazer esforço físico, os meninos nunca.
O eito era medido com duas enxadas deitadas, o chefe media e se retirava os meninos mandavam o Adalberto ficar na sombra, cada um carpia o seu eito e mais alguns centímetros, isso feito por todos, facilmente cobriria a parte do Adalberto, enquanto isso ele fica à sombra, se o chefe aparecesse no barranco, ele pegava a enxada e fazia que capinava, quando o chefe saía, ele voltava pra debaixo da jaqueira.
Quando todos terminavam, conforme um acabava, ajudava os demais, a última touceira arrancada determinava o fim do trabalho, todos jogavam o cabo no ombro, se juntavam ao amigo e subiam pro pavilhão.
O mais estranho é que nunca se fez uma reunião, pra combinar isso.

Só fazíamos pelo fato de ser a coisa certa a se fazer... eram nobres, meus amigos.

sábado, 14 de novembro de 2015

O pai ausente


Ainda naquele assunto de ser órfão, fui-o desde os três anos e nunca tive problemas com esse fato, no Sampaio Viana era tudo muito confuso e muito escuro, na Casa de Infância veio a luz e a alegria e no Educa me tornei homem.
Diz-se que, órfão não tem mãe e isso é um erro gigantesco, eu tive umas 20 mães e umas 50 madrastas. Funcionárias de orfanatos e freiras não resistem a um menino carente e eu tinha um rosto de anjo e, sabia usá-lo nas conveniências.
O pai do órfão aquele que lhe providencia o lugar onde dormir, comer, estudar e passar a infância em relativa segurança, então o órfão tem como pai legal, o juiz de menores.
E ele é um nome na ficha do interno, é ele quem responde pelo interno, até que ele atinja a maioridade.
Eu fui o primeiro interno a estudar numa escola fora dos domínios do Educandário, me mandaram pro Vidigal, se desse certo, mais internos poderiam estudar fora e deu muito certo.
Nos dias de reunião dos pais, meu pai era o padre Paulo, o cabeça-chata nunca usava a batina, no dia da reunião dos pais, ele vinha de batina.
Sempre tinha um guri mais engraçadinho que fazia a piada:
_Aquele ali é o seu pai?
E eu vinha logo de voadora:
_É, e a minha mãe é a mula sem cabeça.
O padre Paulo foi mais um dos homens que cuidaram de mim pôde contar uma dezena deles, mas, meu pai legalmente era o juiz de menores, cuidava de mim de longe e fazia bem o seu trabalho, a vida toda eu sabia que não o conheceria, mas o destino é brincalhão e a minha vida é uma comédia.
Em Agosto de 1983, eu já completara 16 anos, trabalhava, namorava, ia pras baladas e estudava. Mandaram-me chamar na administração do Educa, em sua sala, a dona Néri tinha a companhia do padre Paulo.
Cumprimentei-os e entraram no assunto que mudou a minha vida.
Disse-me que eu ia ser transferido pra um pensionato na Vila Carrão, o pensionato recebia menores do Educa e da FEBEM, tinha horários e regras...
Enquanto ela contava os prós e os contras, um filme me veio à mente, lembrei-me do dia que eu cheguei ao Educa, a dureza de ser novão, a adaptação à nova vida e percebi que havia crescido, minha prisão havia me ensinado o gosto pela liberdade.
Paciente, esperei que ela terminasse o padre Paulo que me conhecia e sabia que eu não ia aceitar aquilo, desviou o olhar.
_ Isso foi o que determinou o juiz de menores. Arrematou ela.
Levantei-me da cadeira e numa tranquilidade assustadora, estendi-lhe a mão, assim que ela apertou-me os ossos eu disse:
_Desculpe-me, mas meu tempo de ser mandado acabou agora, a partir desse momento eu me dou a maioridade, nunca mais alguém vai dizer o que eu tenho ou não que fazer.
Apertei a mão do padre Paulo e agradeci, sai dali e segui para o pavilhão 22, juntei minhas poucas coisas e me despedi dos meninos, sem qualquer drama, como fora toda a minha vida no Educa, fui-me, de cabeça erguida e mil planos na cabeça, quando cruzei o portão, o seu Felipe, bem mais velho do que no tempo em que eu cheguei ali, me perguntou:
_Não vai se despedir do amigo? O velho sorriso de sempre.
_Mas que despedir, todo santo dia vou estar aqui, pra esperar o ônibus, seu careca ridículo.
Apertei-o contra o peito, um abraço pra um amigo que me viu entrar criança e sair adulto.
E fui morar ali, na Osvaldão. Trabalhava na Procuradoria Geral do Estado e o diretor me mandou chamar e disse que nesses casos o juiz emitia um mandado de captura contra o menor evadido, se isso acontecesse ele teria que me demitir.
Bom, aproveitei o correio e escrevi uma carta ao tal juiz, não me lembro com exatidão do conteúdo da carta, nela eu agradecia os anos de ajuda e tudo mais e saiu com um capricho tão grande a carta, que teve resposta.
Dois dias depois, recebi um telefonema, a secretária do tal juiz marcou uma audiência, finalmente eu ia conhecer o meu pai, ri interiormente e tive medo de rir na presença dele.
No dia marcado, a secretária me conduziu a uma sala ampla com ar condicionado, sentei-me na cadeira que ficava na frente de uma enorme mesa de magno, acabada num verniz quase vermelho, do outro lado da mesa havia uma cadeira estofada, atrás da cadeira uma porta de cerejeira, dali sairia o juiz.
Esperei um quarto de hora, o estranho é que havia uns barulhos confusos que vinham da direção daquela porta, finalmente a porta se abriu e saíram umas 30 pessoas, todas com papeis na mão, levantei-me em sinal de respeito.
Um homem grisalho postou-se a minha frente e disse que era o juiz que me representava os outros todos também eram juízes de menores, ficara tão impressionado com minha carta, que fizera copias dela, mandou pros amigos e todos eles estavam ali pra me conhecer.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

A vida segue seu rumo...


Toda vida e todo destino segue o rumo que tem que seguir, alegrias e sofrimentos vem, conforme o merecimento de cada um.
Minha mãe, alguns anos atrás, pediu desculpas pelas coisas que aconteceram e me levaram a viver uma vida de órfão, sorri pra ela e disse:
_Não tem o que perdoar, jamais abriria mão da vida intensa, das aventuras, dos aprendizados e dos amigos que conquistei.
E não é média não, se eu vivesse uma vida comum, lá no Bexiga, tenho certeza que não teria metade das coisas que tenho pra contar, aprendi a olhar o comportamento humano e a ser tolerante com a vida, medir as consequências dos meus atos e a respeitar a opinião alheia.
Relegado ao meu papel secundário e sempre na posição de observador, vi a injustiça aflorar, vi milagres e lições que, só quem presta atenção vê e nada disso eu poderia ver, senão na pele do interno.
Sempre poupado pela sorte que, me virava os olhos nas horas do perigo pude ver que na vida não cabe espaço para “mocinhos e bandidos”, cada qual dá o seu melhor e a vida se desenrola, independente se alguém a observa.
Minha vida no Educa se desenrola na passagem da infância para a adolescência e, convenhamos... esse é o tempo melhor da vida.
O Ovinho do 14, tinha o nome de Adilson, o apelido era devido ao formato da cabeça, em época de corte de cabelo obrigatório, o tampo da cabeça dele lembrava um ovo deitado.
Era daqueles guris hiperativos, vindos da FEBEM muito pequeno, tão pequeno que, nem fazia a mínima ideia de sua família, como todos nós tínhamos problemas nesse departamento, não costumávamos falar desse assunto, a melhor terapia era bater uma bolinha e esperar as coisas se ajeitarem.
É claro que isso era uma fuga do assunto, geralmente funcionava bem, mas em domingos de visita essa condição ficava insuportável e, depois do almoço, sumíamos do Educa.
Na Rua Santa Barbara, o Ovinho tinha uma namorada e fugindo do fusquinha do irmão Domingos, íamos pra lá. Pra não ficar segurando vela, aproveitava pra visitar os amigos da escola e o Edson Pirata (ex-interno do 17) que já tinha mulher e duas filhas, quase de noite, voltávamos pro Educa.
Ambos tínhamos 11 anos idade certa pro time dos pequenos, não me sentia pequeno e, não tendo vaga pra mim no time dos médios, me recusei a disputar o campeonato de 1978, torci pro meu pavilhão e ensinei o Ovinho a se posicionar como centro avante na área, ele terminou o campeonato com 47 gols, não parece muito, mas, em 12 jogos disputados é muita coisa.
Assim crescem as crianças, alheias as condições e circunstancia, o importante é se divertir. Se o seu mundo é limitado, sua capacidade de ser feliz não conhece limitações.
Num belo dia, quando assávamos milho verde na brasa, bem perto do milharal, apareceu no lar 14 um senhor dizendo ser o pai do Ovinho, digo Adilson, foi um susto.
O homem contou uma historia com passagens complicadas e circunstancia triste, não que tenhamos entendido metade de tudo aquilo, mas ficamos felizes pelo amigo e foi-se embora o amigo Adilson.
Fui algumas vezes visitar a sua família, que possuía residência na Consolação e escritório na Paulista e podia se perceber que o Adilson se sentia um peixe fora d’água, tinha saudades de ser o Ovinho.
Todo domingo de visita, saía do luxo de sua vida nova e visitava os irmãos que a vida lhe dera.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O professor


 
Antes de falar do Max, quero relembrar alguns mestres do grupo do Educa, porque eram corajosos esses, aturar alunos que estavam em classe pra fazer algazarra, não é trabalho fácil.
  Em 1978, havia uma sexta-série terrível, em meus anos de estudo nunca vi uma turma como aquela, eram 32 alunos, 30 internos e dois externos.
  Não vou correr o risco de tentar enumerar todos os alunos, fazendo isso, corro o risco de esquecer algum, porém, se alguém que ler se identificar com os fatos, pode dizer em comentário, que fez parte dessa turma, mas vou lembrar-me da lista de chamada desta sala...
  Havia cinco Joãos... João Pinheiro (do 17), João Rosinha (do 13), João Cavallo (do 19), João de Bunda (do 24) e João Lucena (do 14).

  Entre os meninos, somente dois não eram internos, o Luciano e o Claudio Matão que eram filhos do seu Matos do forno, mas esses, por serem filhos de funcionário, tinham o comportamento igual ao dos internos, portanto, quando a professora Anésia passava um descompostura, eles estavam junto no bolinho.
  Anésia era professora de Educação Artística, daquelas professoras que não tem medo de cara feia, se alguém gritasse ela devolvia na mesma moeda, levava as aulas no cabresto, a grande estatura dela intimidava qualquer aluno mais afoito, não obstante, era de uma ternura sem medida.
  A professora Cristina lecionava Inglês, muito linda mesmo, ensinava fácil e usava sempre uma música pra assimilar a matéria, às vezes, no meio da bagunça, ela parava em sua mesa e fazia um rosto muito triste, a ver a professora desse jeito, a bagunça cessava e ela voltava a sua aula.
  Fala sério, ninguém aguenta uma mulher linda, triste.
  O professor de Matemática era o Nadinho, esse, quando morrer vai pro céu sem escalas... nunca vi um sujeito ter a paciência igual, sempre tinha um aluno que fazia piada de sua careca e ele permanecia calmo e dava aula sorrindo de tudo e, o pior, ensinava mesmo.
  Eram professores que não se vê mais por ai, cujo objetivo maior é o de ensinar.
  Começamos as aulas, na última sala, de quem sai da diretoria e vai ao corredor à esquerda, em dois meses, por conta da bagunça, fomos transferidos para aquela sala que ficava fora da escola, feita de madeira.
  Na época não havia sido construída a cozinha central, todo esse terreno onde agora é a cozinha e o prédio da OZEM, era o milharal do lar 21.
  Sabe-se que, em época de milho seco, é de costume tocar fogo no milharal... alguns meninos aproveitaram o fogo e queimaram a tal sala.
  Alguns alunos alegaram que estavam sendo discriminados, postos numa sala fora da escola.
  Bom, não vou entrar muito nesse assunto pra não fornecer provas contra a minha pessoa... Teve, o diretor Sergio, que voltar a alojar a sexta-série dentro da escola e para que pudesse controlar melhor, realocou-os na primeira sala ao lado direito da diretoria.
  Essa medida não fez muito efeito, posto que, o diretor não punha medo em nenhum aluno.
  Sou sistemático, já à época o era, em qualquer sala que estudo, me sento na segunda cadeira da fileira à esquerda da lousa, se ela estiver ocupada eu negocio até ela me pertencer.
  A coisa estava tão sem saída, que eu já havia me mudado pro fundão, já que ninguém queria estudar, eu é que não seria o único, troquei de lugar com o Augusto e me tornei mais um bagunceiro da sala.
  A dona Aimar lecionava Estudos Sociais, não tinha muita paciência e isso fazia da matéria a menos querida entre os alunos, já tinha certa idade e estava gravida, logo no começo da prenhe, entrou de licença e ficou a sala sem professor... Ótimo, muitas aulas vagas.
  O diretor Sergio se empenhou em procurar um substituto para o cargo, sentados no bambuzal, tendo o lago aos nossos pés, curtíamos nossas folga escolares e especulávamos acerca do novo professor, é claro que a folga já acabaria.
  A solução viria num nome já conhecido, o Maximino era irmão do Domingão, autoridade maior do colégio, isso era o ponto negativo, e como ele já lecionava no Guiomar, fomos lá saber sobre o novo professor.
  Ali, ele tinha a fama de ser o mais querido entre os alunos, disseram-nos que dava gosto as aulas dele e olhe que, lá ele ensinava Matemática. E me desculpe quem gosta, mas, não entra na minha cabeça, achar agradável uma aula de Matemática.
  Outro ponto a favor do Max era o fato de ele ser casado com a mais linda entre as mulheres do Educa, sua esposa era a Lucia, filha do seu João do lar 13.
  Entrou na sala de aula, vestindo um conjunto de blusa e calças jeans, bem despojado pra época, posto que, combinava com o seu cavanhaque e aquelas botas de bico fino, disse boa noite e sorriu com ar de quem está no comando, escreveu o nome na lousa e permaneceu em pé, olhando firmes os rostos dos bagunceiros, a primeira batalha estava ganha.
  Era habito dos meninos da época gostar filmes de artes marciais, bangue-bangue e principalmente de guerra, portanto, em silêncio, esperavam a atitude do professor, conforme as atitudes dele viriam às reações.
  Lá do fundão, observei que ele estava tranquilo, feito alguém que está com uma carta na manga.
  Puxou da mochila de couro, o livro de Estudos Sociais, perguntou em que ponto havíamos parado, perguntou por perguntar, sabia que ninguém responderia, ao acaso, escolheu um ponto e pediu que alguém lesse, assim que alguém lia um paragrafo ele explicava e seguia o texto com outro leitor, ao fim do paragrafo ele explicava, com calma e em palavras fáceis.
  Esse capítulo fazia parte da história da guerra dos emboabas, e esse ponto se chama “O capão da traição”, conforme as coisas se desenvolvem, os meninos vão dando atenção e se envolvendo na narrativa.
  Portugueses e Paulistas numa rivalidade, pra saber a quem pertencia a terra, entram em conflito, toda a sala em silêncio, tentando imaginar a cena, o professor tem os alunos em suas mãos, ninguém fala nada, sentado em cima da mesa ele tem a certeza que todos o ouvem.
  E vai a narrativa, como quem narra um documentário:
  Estão frente a frente, armas em punho, os portugueses na parte mais alta do capão, os valentes paulistas, em menor número e na parte inferior, não se entrega antes morrer a se entregar...
  Os meninos sorriem, entendem a bravura dos seus antepassados, se ajeitam nas cadeiras pra ouvir melhor.
  Nesse instante, o diretor Sergio invade a sala e vê uma cena que jamais imaginaria ver, todos os alunos em sua cadeira e em silêncio, atônito e contrariado não diz nada, o professor sorri tranquilo, o diretor sai coçando a cabeça bate a porta atrás de si.
  Nada, nenhum comentário a respeito da sandice do diretor, todos os olhos ainda estão fixados no professor.
  Os portugueses pedem trégua, se os paulistas abaixarem as armas não será tratado com hostilidades, tudo será perdoado.
  São homens de honra, os paulistas e aceitam a palavra empenhada, depõem as armas...
  No capão existe uma enorme vala, é ali que estão os paulistas, assim que o último paulista entrega a arma, os portugueses abrem fogo.
  Há um descontentamento geral na sala, vaias e indignação por todo lado, um guri mais empolgado grita a plenos pulmões.
 _Portugueses filhos da puta.

  O professor, muito calmo, responde às perguntas que não são poucas, todos querem falar ao mesmo tempo, me levanto do fundão e volto pra minha cadeira.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Rebola Sebastião, rebola.



É um fato que o Sebastião do 14 morreu... Modelou o corpo, pôs peruca, trocou o sexo e nasceu “Lene Summer”, uma mulata que fazia shows e morava do Edifício Copan.

Conheci-o, ainda na Casa de Infância, ambos tínhamos quatro anos, e pra quem acha que a convivência influencia na opção sexual, garanto que não, ele sempre foi assim, um menino com alma de menina e não sofria por conta disso, criança não tem preconceito e as freiras não viam nisso uma falha de caráter, portanto, cresceu assim.
Caçula de uma família que já tinha quatro filhas, o pai com idade avançada e viúvo, resolveu interna-lo num colégio, na esperança que ele virasse homem, do pai, que era palmeirense roxo, herdou o gosto pelo futebol e virou goleiro, mas torcia mesmo pro Santos.
_Por que o Santos, Sebastião?Perguntavam os outros meninos.
_São muito mais lindos, os crioulos da Vila Belmiro.
Jeito de quem não veio ao mundo a passeio, ria com facilidade, em dia de visita, uma de suas irmãs vinha visita-lo com roupas brancas e turbante, como é habito de praticantes da umbanda, ele se aproveitava bem disso, dizia que se o aborrecessem, faria uma mandinga e já era... Crianças criadas no rigor do catolicismo morrem de medo de magia, ninguém ousava discutir com ele.
No último ano neste colégio, tive meu momento de glória, cobrei o pênalti que levou meu time ao título e não vi a bola alcançar as redes, na minha mente ficou o goleiro se esticando no canto, quase rente à trave, quase que ele pega a bola. Na Casa de Infância, haviam 2 grandes goleiros, o outro era o Valdir Lustosa.
Quase chegando o dia da apresentação do nosso show no Educa, a madre Dolores nos mostrou a roupa que usaríamos na ocasião, no alto dos meus nove anos, dono pleno da minha vontade, disse à religiosa:
_Madre, eu respeito e amo a senhora com todo o meu coração, mas, por nada e por ninguém nesse mundo, eu subirei num palco, pra cantar e dançar vestido em meias calças.
Fui enfático, quando terminei de falar, o Gilberto e o Fabiano pularam pro meu lado e,  fizeram deles, as minhas palavras. Ante o olhar triste da freira, o Sebastião olhou-me com o seu olhar de cólera, juntou as mãos nas ancas, bateu o pé direito no chão e com um ar de desprezo, fuzilou:
_Ai Nilton... Como você é grosso.
E garantiu à freira que o show continuaria, fomos substituídos pelo Paulo Régis e o Hélio e assim, deu-se a catástrofe da festa da Liga de 1976.
Quando nos mudamos pro Educa, o Sebastião estava gozando as férias e não chegou conosco na Kombi do Paulo, chegou umas semanas depois, trazido pela irmã.
Quando disseram que havia chegado o “NOVÂO”, fui lá pra, se fosse o caso, defenderia o amigo.
  Logo que ele se despediu da irmã, foi à rouparia, o ajudante da dona Ana era o Téquinha, eu e os outros meninos ficamos perto, quando me viu o Sebastião sorriu, o Téquinha estava com as roupas marcadas com o número, o irônico 124, que ele adotaria dali em diante, entregou-lhe o monte de roupa, o novato agradeceu, saiu rebolando e sorrindo, vendo isso o Téquinha não resistiu e gritou:
_Ei novão, você é viado?
Parou o Sebastião e voltou na direção do ajudante:
_Sou sim, está perguntando por quê? Você também é?
Contrariado, o amigo, vendo que o novato vinha em sua direção, não teve alternativas, a não ser a de correr, os meninos que acabaram de chegar, queriam saber o que havia acontecido, quando souberam, nos acompanharam nas gargalhadas, assim foi o primeiro dia do Sebastião, o esperto que queria fazer a piada, acabou virando a piada.
E então, vem uma coisa contraditória que acontece em internatos, tem graça fazer piadas e galhofas com quem não é homossexual, se xingar um menino de viadinho e ele não é, tem-se no mesmo instante, uma discussão, que pode se levar a uma briga, mas quando o menino é assumidamente, perde-se o clima da dúvida, não tem graça e ninguém fala mais nisso, com o passar do tempo, o Sebastião virou o ajudante da dona Ana, que o tratava com atenção diferenciada, o próprio chefe Odilon sequer brigava com ele, posto que, ele ainda era a babá de seus filhos, sequer pegava na enxada, feito os outros meninos, quase não saía dos arredores do pavilhão.
·... E vai a vida no seu caminhar contínuo e gradual, meninos crescendo igualmente, nas suas diferenças.
Por conta da fama do futebol dos internos, logo que fomos estudar no Attiê, uns meninos da Rua Santa Bárbara, me convidaram a levar um time de internos pra um desafio, valendo Tubaína.
O campo era na verdade um descampado perto da favela do Uirapuru, perto do campo do Palmeirinhas, levantaram duas traves de madeira e, no espaço só cabiam seis de cada lado, cinco na linha e o goleiro.
Topei na hora, chamei o Feliz e o Viana, meus parceiros e fui ao pavilhão 12 pra recrutar o Zé Almir e o Fabiano, o nosso goleiro era o Valdir Lustosa do 24.
Começou assim o time profissional “do Nilton”, o time não era meu de fato, e como não escolhemos um nome pro time, os outros meninos, quando eram interrogados acerca do que iam fazer, respondiam:
  _Vou jogar no time do Nilton.
Profissional, porque jogávamos por Tubaína, nessa brincadeira corremos e jogamos em vários campinhos da região e ganhamos o respeito dos moleques da área, representando os internos.
Um belo dia, me apareceu no 14, uma dupla de guris mal encarados que moravam no Taboão da Serra, queriam marcar um festival num campinho que ficava atrás do Cenáculo, a tomba seria 10 cruzeiros, meu sexto sentido me avisou que tinha coisa errada, chamei o Viana e falei pra ele, como meu melhor amigo, ele sabia que nunca falhava minha intuição, mesmo assim ele fechou com os meninos, aquele neguinho gostava de brigar mesmo.
Tinha que arrumar o dinheiro da tomba, meninos normais pedem dinheiro pros pais, eu não o tinha, a relação mais aproximada que eu tinha de paternidade era com o seu Tinoco.
  Desci na administração e joguei a conversa no seu Tinoco, o velho esperneou, disse poucas e boas, xingou e amaldiçoou, meteu a mão no bolsinho de dentro do colete e jogou 30 cruzeiros na mesa:
_Some daqui, menininho cacete.
No sábado, véspera do jogo soube que o Valdir havia trincado o pulso, bateu o desespero, corremos o Educa todo e não havia um goleiro, sequer um miserável de um goleiro num raio de 300 quilômetros quadrados, resolvi que, ou eu ou o Viana nos revezaríamos no gol, fomos ao 12 e chamamos o Lourival pra completar a linha.
Reunimos a turma na piscina e subimos a ladeira da jaqueira, sem o Valdir estávamos sem confiança, logo num jogo à dinheiro, lamentávamos o azar e eu com a sensação de perigo eminente, com a aproximação do perigo, o Viana esfregava as mãos.
Na estrada, ouvimos alguém cantando no pavilhão 14, olhamos pra saber de onde vinha a música e avistamos o Sebastião varrendo a área de terra batida, tinha uma vassoura feita de galhos de bambu e cantava com euforia:
_Menina, eu sou é homem, menina eu sou é homem...
Não pudemos evitar a gargalhada, pra rir eu fechei os olhos e assim a cena do pênalti me voltou como num filme:
_Ô molecada, o Bastião é goleiro.
Não pararam de rir os guris, depois que falei, riram mais ainda, perguntei então se alguém estava a fim de ser goleiro, cessaram-se os risos, rápida reunião, resolveu-se que, ter um goleiro seria bom, mas a postura do Sebastião iria nos desmoralizar.
Fomos eu e o Viana falar com ele, ele topou na hora, o Viana disse que ele teria que se postar feito homem.

  E, uma prévia aula de masculinidade foi ministrada.
No caminho que levava ao Taboão, passamos no Cenáculo e comemos as bolachas das freiras, com era do nosso costume e fomos procurar o campinho, o Sebastião tentava se postar feito homem e imitava o nosso andar, caminhava uns metros com o andar firme e rebolava outros metros.
O Viana que vinha atrás corrigia lhe a postura:
_Pare de rebolar miserável, pare de rebolar seu viado.
O Sebastião andava feito nós por alguns metros e tornava a rebolar e o Viana tornava a gritar:
_Pare de rebolar moleque. O resto de nós ria todos, com exceção do Viana, sabíamos que ali não haveria conversão.
Chegamos ao campinho, os outros três times já nos esperavam, casamos o dinheiro e fizemos o sorteio, ganhamos os dois jogos e fomos pra final, ganhamos a final nas cobranças de penal, erramos três chutes e o Sebastião defendeu quatro chutes.
Na hora de pegar o dinheiro da tomba, o menino que fez às vezes de mesário disse que não ia dar o dinheiro, enfiou-o no bolso e desafiou quem fosse macho pra tirar o dinheiro de lá, nesse instante os meninos dos três times se emparelharam todos contra nós. Mesmo assim o Viana deu-lhe um safanão e lhe tirou o dinheiro do bolso, ficamos de frente pra eles, além do futebol, tínhamos a coragem dos internos.
Não se deram conta que o Sebastião estava atrás deles, sem aviso deu uma rasteira que caíram três, assentou o pé que usou na rasteira e levantou o outro, esse acertou outros três no rosto, quando fomos perceber o que havia acontecido, havia seis guris no chão e o Sebastião com o dorso abaixado, os braços abertos numa ginga da mais perfeita capoeira, os meninos que caíram e os que ficaram em pé correram.
Ficamos olhando pro goleiro por um tempo, admirados e confusos, quando ele teve certeza que só haviam sobrado nós no campinho, relaxou e disse:
_Ai, esse negócio de ser homem me cansa, vamos embora que quebrei uma unha.
Na volta, a estrada parecia mais longa, fomos em silêncio tentando entender aquilo tudo, perto do parque das Hortênsias o Viana quebrou o silêncio:
_Rebola Sebastião, rebola mesmo.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O grande desafio


Na estrada velha do lar 15, onde Pinheiros antigos cantavam ao vento nas duas margens, meninos que trajavam camisas com cores divergentes se entreolhavam desconfiados, no canto direito, no exato ponto que dividia o território dos dois pavilhões, fora marcada a guerra.
Vestidos com camisas brancas e verdes, os meninos do lar 17 esperavam seu campeão, alguém sem muita perspectiva de crescimento das crianças, na hora da distribuição dos internos, havia juntado todos os nanicos nesse pavilhão e, ainda que fossem da mesma idade dos rivais, eram menores na estatura, mas, eram “marrudos” esses guris e olhavam os maiores com a petulância de meninos grandes.
Vestidos com camisas rubro-negras, os guris do lar 14 tinham por natureza o olhar de quem gosta de brigar, na hora da distribuição dos internos, o critério foi outro, foi racial.9 entre 10, dos meninos que habitavam o 14 eram pretos e sob a tutela de um larista tido como“carrasco”, mantinham-se unidos em qualquer ocasião.
Esse lado do Educa era um vale, acima do ponto que os meninos haviam marcado a guerra, tinha um aclive acentuado, que subia até a igreja, abaixo da estrada o campo do 17, num plano mais baixo, vinha o campo do 15, depois uma depressão maior e um enorme barranco, só então se chegava ao fundo do teatro, era um local ermo, poucas pessoas andavam por lá, ponto certo pra uma guerra.
De frente pra outra, uma turma não conversava com a outra, se olhavam em desafio permanente, num pequeno monte de terra à beira da estrada os meninos de branco se acomodavam, sentados na estrada, os de vermelho esperavam impacientes seu campeão.
Menos de meia hora atrás, as duas turmas haviam se enfrentado no campão pelo campeonato interno, ainda que fossem valentes os meninos do 17, os do 14 eram mais fortes fisicamente e não deu outra, 7 x 0 no placar e, nem se deram ao trabalho de tirar as camisas do confronto, saíram do jogo direto pro local, que já havia sido marcado antes do jogo.
Não se iludiam, os guris do 17 quando foram disputar o jogo de futebol, sabiam da superioridade dos adversários, mas agora seria diferente, o Brito ia lavar a honra dos seus e mostrar com a sua habilidade de mestre, que o 17 era imbatível.
Os guris do 14, sequer comemoraram a goleada no rival, afeitos que eram à uma boa briga e sabendo que seu campeão, o Spoc, que era, reconhecidamente, o melhor na antiga arte, não restaria nada aos meninos vizinhos, que não fosse a obrigação de se curvarem diante do óbvio.
O sol já se avermelhava e caía acima dos pinheiros quando o Brito apareceu no alto da estrada de cima, isso obrigou-nos a usar as mãos para proteger os olhos, descia ele, cercado d’uns quatro guris, tal qual um boxer, com seus assistentes a carrega-lo.
O Brito era meu amigo na escola, daqueles baixinhos desassombrados que não tinham medo de nada, o olhar frio que nos lançou, mostrou que ele não estava ali pra brincar, o Spoc desceu lentamente, vindo detrás do galinheiro do 14, tinha numa das mãos meio abacate cheio de açúcar e na outra uma colher e vinha sorrindo, como era o seu normal, tinha esse apelido maneiro, devido a um defeito na orelha e pra justificar a alcunha, costumava levantar as pestanas e dizer, em som soturno:
_Fascinante.
isso, acreditava ele, o aproximava do imediato da nave espacial “Interprise”.
Quando foi decidido que o Spoc seria o nosso representante na peleja, fui contra, pois achava-o muito brincalhão para o cargo, mas fui voto vencido e ele era o nosso melhor representante afinal.
Enquanto os dois se mediam, alguns meninos limparam o terreno de terra batida, exatamente na divisa dos dois pavilhões, nenhum centímetro a mais pra nenhum dos lados.
Os dois olharam desafiadores e o Brito puxou, da parte traseira do cinto, um enorme saco de pano, abriu a boca do saco e retirou uma bolinha de leite, nem grande nem pequena, branca num tom azulado e com ar de zelo, fixou o olhar carinhoso nela, essa era a matadora.
O Spoc não fez o mesmo mistério, enfiou a mão direita no bolso da bermuda jeans e retirou uma, das muita que tinham lá, não atribuía o mérito à uma bolinha, a habilidade vinha de suas mãos, eram mesmo diferentes os campeões, um era místico, o outro era prático.
Uma risca foi feita com um galho seco no meio da estrada, cada qual jogou a sua bolinha, elas caíram exatamente do lado da outra, ao lado da linha, todos os meninos pularam e foram conferir de perto, alguns se deitaram e encostaram o rosto no chão.
_É, a bolinha verde está mais próxima, gritou um guri do 14 e iniciou um bate-boca com troca de ofensas das duas partes, dedos nos rostos, ameaças de briga e já tinha dois guris se peitando feito galos de briga.
Lá no chão, a bolinha verde estava na frente da de leite por um inacreditável grão de areia, o Brito se conformou e deu a vez pro Spoc.
No triangulo haviam 15 bolinhas, com maestria jogou a bolinha entre o polegar e o médio, a bolinha descreveu um arco e bateu na bolinha da ponta direita, essa sofreu o atrito e jogou mais cinco pra fora, não se deu ao trabalho de recolhê-las, os meninos de vermelho o fizeram, limitou-se a recolher a sua bolinha e como ainda estava na vez, ajoelhou-se e mediu o palmo, acomodou a bolinha entre a unha do polegar e a parte interior do indicador, no desdobrar do polegar soltou a bomba, a primeira bola que sofreu o choque, chocou-se contra as demais e as espalhou, a bolinha usada voltou pro mesmo ponto que havia saído, somente duas bolinha ficaram no triangulo, quando foram recolhidas, só restaram as bolinhas das pontas opostas de onde ele havia começado o jogo.
Já haviam perdido as esperanças, os meninos do 17, toda torcida depositada na retratação e o Brito sequer jogou a matadora...os meninos do 14 riam, pau no campo e pau na bolinha.
Do mesmo lugar o Spoc mirou e acertou uma da bolinhas restantes, queria que a de uma ponta tirasse a da outra e não deu certo, a primeira bolinha triscou mas não o suficiente para arrancá-la da linha, faltava uma única pra decidir o confronto, ria o Spoc, o Brito tinha o olhar perdido, olhos de quem segura o choro.
O riso do Spoc me dava medo, cutuquei o Viana e ele passou as mãos na cabeça, com somente uma bola pra acabar o jogo, o pastel resolveu fazer graça, deu as costas pro triangulo e jogou a bolinha por cima da cabeça, costumava fazer isso o tempo todo, a bolinha subiu e caiu bem na cabeça da outra, do lado contrario.
Ao invés de tirá-la da linha, jogou-a pro meio do triangulo e a sua bolinha ficou pertinho da linha do triangulo, os meninos de branco, que já se preparavam pra ir embora, gritavam agora, o Brito esfregava a matadora entre os dedos e sorria, passamos a xingar o Spoc.
A vez agora estava nas mãos do Brito, um silêncio se fez, deu pra ouvir a algazarra da piscina, restava uma única bolinha no jogo, o Brito beijou a matadora com os olhos fechados, quando abriu soltou-a num repelão com a unha do dedo médio, não buscou a bola do centro, acertou a bolinha do adversário, fim de jogo, os meninos do 17 recolheram todas as bolinhas e carregaram o Brito nos braços.
Ficamos ali uns instantes, remoendo nossa vergonha...a dona Ana chegou-se na quina do pavilhão e gritou:
Nilton, Viana e Spoc...buscar a marmita. 
De castigo, o Spoc teve que ficar na frente da padiola na descida e a atrás na subida, com o caldo do feijão a escorrer nas suas pernas.