sábado, 23 de janeiro de 2016

Tiros na noite.


 
  Os cenários mudam, a vida é uma evolução e, devemos vivê-la plenamente... num sentido mais pleno, a vida é um aprendizado, mesmo quando viramos a cara, ela nos dá ensinamentos.
  As tardes ociosas do pavilhão 14 me deram as aventuras com os amigos e um gosto pelo viver, mesmo quando sozinho, sabia que ia crescer e ser livre, as tardes também me deram a trilha sonora da infância.
  No teatro do Educa, uma fina seleção musical era exibida e, aonde que eu me encontrasse, essas músicas me acompanhavam, no fim, viraram a trilha sonora da minha adolescência. Dentre essas músicas, algumas da banda "The Commodores" e, entre essas, "Sail on" era a minha predileta, daí por diante, sempre que ela fosse exibida, eu daria uma atenção especial, ainda hoje, ela mexe comigo.
  Nas imediações do teatro, eu cantava para acompanhar o Lionel, mais tarde, nos bailes, eu tirava uma dama e cantava no ouvido dela.
  Como eu disse, a vida é evolução e, eu cresci... estamos em 1982, moro no pavilhão 22, estudando no Vidigal e trabalhando na P.G.E, não era mais o coadjuvante de costume, não buscava mais a gloria no futebol, o coração das meninas, agora me movia.
  Ainda que o mundo tivesse alargado e ultrapassado as fronteiras do E.D.D, a sorte me protegia e os amigos ainda eram os mesmos, na escola, nos bailes e nas ruas, costumávamos andar em bando.
  Um dia, uns alunos encrenqueiros resolveram fazer bulling com o Flávio do 16, esse tinha o apelido de Fú, o apelido era uma alusão ao personagem da série da TV que se chamava "Kung Fú", posto que, o Flávio, como o personagem, andava sempre com os cabelos cortados à zero.
  Assim que fizeram a rodinha em volta dele, os outros amigos correram a me procurar pela escola.
  Eu estava perto da quadra, abraçado à Lúcia, assim que me avistaram, me contaram do que estava ocorrendo, esses amigos eram: O Djalma do 15, o Coquinho do 24, o João Augusto do 12, o Pelezinho do 12, assim que soube do ocorrido, corri em socorro do amigo.
  O Fú era pequeno para a idade e estava rodeado por cinco valentões, em volta do círculo deles, os outros alunos formaram uma barreira e deu trabalho furá-la, empurrei os outros elementos e fiquei frente a frente com o líder, perguntei o que o meu amigo havia feito e antes que ele respondesse, já havia lhe desferido um soco na boca.
  As poucas coisas que sabíamos sobre ele era que morava no Parque do Lago, gostava de andar com malandros e tinha o apelido de Vassoura.
  Agora estávamos frente a frente, os meus amigos nas minhas costas, os amigos dele às suas costas e o resto dos alunos nos circundavam e torciam em silêncio, do lábio do meu oponente escorria um filete de sangue, a adrenalina fazia o meu suor escorrer, ambos mantínhamos os pulsos em frente ao rosto e olhávamo-nos.
  Como eu já havia atacado fiquei esperando o movimento que partiria dele, ele arfava de raiva, os olhos lagrimejavam, me mantive calmo, qualquer coisa que ele fizesse seria em desespero, assim que ele se projetou em minha direção e a sua mão direita procurou o meu rosto me esquivei, um segundo soco e mais uma esquiva, quando voltei a me levantar, segurei os braços perdidos dele e, como ele havia aberto mão da defesa, inclinei o dorso para trás e joguei a minha cabeça na direção dele, a minha testa atingiu em cheio o nariz, quando ele tombou houveram gritos e a pequena multidão se abriu, no meio da multidão apareceu a Sonia, que era a inspetora do pátio e todos chamavam de "Monga".
  Queria saber o motivo da balburdia, o Vassoura já havia se levantado e tinha uma camisa na mão, limpava o sangue, que agora, também lhe escorria do nariz, a inspetora perguntou e ele nada disse, olhou para mim e eu fiz cara de que não sabia de nada, ele saiu em direção à sala de aula, achei a Lúcia no pátio e voltamos para a quadra.
  Na hora da saída, todos os internos ficaram me esperando sair da escola, mesmo os que não haviam participado na hora do recreio, feito o Gil do 20 e o Miguel do 13.
  Atravessamos as ruas do Peri-Peri, éramos uns 15 e sabíamos que quando chegássemos ao ponto da Raposo Tavares, nos encontraríamos com os moleques do Parque do Lago e seria uma briga épica.
  E, como eu digo sempre, posso não ter amealhado dinheiro na minha jornada, mas, a sorte sempre foi minha companheira.
  Naquela sexta-feira, todos os internos que estudavam em Pinheiros resolveram nos visitar, na verdade, eles vieram atrás das meninas do Vidigal, o total da turma subiu para uns 35, os caras do Lago sumiram.
  Lógico que a coisa toda se empurrava para a segunda feira, mas a sorte é má conselheira, ela te tira o medo, vestido nela você pensa que nada, nunca te fará mal.
  No 12 da Raposo Tavares, havia o "Pombal", um salão improvisado que a equipe D’Paulus dava um som muito bom, sábado à noite era o dia.
  Enquanto eu me aprontava, o Djalma usava toda sorte de argumentos para me demover da cabeça a ideia de ir para lá, já que, a turma do Parque do Lago costumava frequentar aquele salão.
  Disse-lhe que não deixaria de ir a lugar algum, por medo de alguém, se fizesse isso, seria refém do medo e não poderia sair nunca mais, já que não conseguiu me fazer mudar de ideia, ele iria para me acompanhar.
  Era bom mesmo, o som do D’Paulus, assim que entrei na pista percebi que uns olhos grandes e castanhos me seguiram, já me pus à disposição da dama, larguei a turma e fui até ela, queria saber se estava sozinha, não eram só os olhos mais lindos que eu já havia visto, ela era toda linda e, exalava um odor de Lavanda.
  Ainda tocava um balanço e ela já havia contado parte de sua vida, quando eu já me aproximava do beijo, o Djalma me bateu no ombro e disse que o Vassoura estava lá fora, eu disse para a moça que já voltava, só iria lá fora, resolver um probleminha.
  A turma reunida se encaminhava para a porta de saída, o Djalma me puxava e eu olhava os enormes olhos castanhos, a música dava seus últimos acordes, fez-se um silêncio e pôde-se ouvir a agulha cair no vinil, o som foi subindo... Sail on down the line, 'bout...
  Livrei-me do Djalma e empolgado com a música tirei a dama dos olhos castanhos, nada poderia ser mais importante que isso, colei meu corpo ao dela, repousei a mão esquerda no rosto dela e a direita na cintura, minha face se uniu à dela e cantei a letra em seu ouvido, conforme a música, nossos corpos floreavam no ritmo, o mundo não tinha qualquer sentido, isso era viver e seria também a melhor das mortes.
  Sempre que tocava essa música eu me levava em mente no tempo dela, então, na imaginação levei a dama dos olhos castanhos direto para o teatro do Educandário Dom Duarte​.
  Quando a música chegou ao fim, encaminhei a moça para a companhia das amigas delas e me desculpei, tinha mesmo que sair.
  Á meio caminho da porta de saída, soaram quatro tiros e houve pânico no salão, algumas pessoas entraram para se abrigar, saímos e vimos um corpo no chão e conversas desencontradas, chegamos mais perto e pudemos ver o rosto da vítima... o tal do Vassoura agonizava numa enorme poça de sangue, em sua mão havia um revolver carregado.
  Disseram-nos que, o outro sacou mais rápido... 4 minutos, foi o tempo que durou a música, 4 minutos de atraso com o inevitável.
  Maria era o nome da moça dos olhos castanhos, nunca mais a vi e, até hoje, nem sei se ela existiu mesmo.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

O Pelézinho.


Essa história é diferente das outras, é feito a vida e a vida não é feita apenas de boas lembranças, fatos ruins são somente fatos, se contarmos só as alegrias, caímos no erro de omitir a verdade.
No dia 2 de outubro de 1992, ocorreu o massacre do Carandiru, 111 mortos, segundo os dados oficiais, entre as vítimas estava o Pelézinho do 12.
Não julgo ninguém, é prerrogativa de cada qual seguir o caminho que lhe convém, caminhos levam às consequências, assim é a vida.
Pelézinho se chamava Wilson Roberto e chegou ao Educa em 1977, mesmo ano que eu, vindo da FEBEM.
O apelido, não era só pela aparência com o personagem do Maurício de Souza, a habilidade no campo, lhe conferia o merecimento de ser chamado de rei, e dos meninos de todos os pavilhões, do meu tempo, ele era o mais famoso de todos, portar a camisa 10 do Grêmio era lhe fazer justiça.
No campeonato de 80, eu, o Viana e o Feliz nos reuníamos pra traçar as estratégias do próximo jogo, nossa função era destruir o meio campo adversário e o próximo jogo seria contra o 12.
Sentados na caixa de alvenaria, ao lado da primavera, discutíamos sobre como parar o Pelézinho, éramos duros em campo, pra não deixar o adversário jogar era comum algumas jogadas mais violentas e discutíamos justamente isso... como parar o Pelézinho sem bater.
Diferente dos outros adversários, o guri era nosso amigo e vizinho, por outro lado, se permitíssemos que ele jogasse solto, perderíamos o confronto.
Passamos um bom tempo nessa conversa, sem que achássemos uma solução, pra falar a verdade, o Feliz nunca falava nada, eu e o Viana falávamos por nós e por ele.
Acabou que não chegamos a lugar nenhum e encerramos a reunião, à noite a gente falava sobre isso, seguimos na direção do pomar, roubar mexericas como fazíamos quase todas as tardes, descemos pela horta do Japonês, antes, porém, uma nadadinha no lago.
Quando chegamos ao lago, já estava lá o pessoal do 12, ao nos ver cumprimentaram, à beira do lago havia umas arvores os longos troncos das arvores serviam de trampolim, se o guri tivesse as manhas, poderia saltar do galho pro meio do lago, lá estava o Pelézinho.
_Ó, o tripé de meio campo do 14. Disse isso com tom de ironia.
Pulou na agua fazendo pose, mergulhou uns metros, subiu e com braçadas firmes, foi ter conosco.
Ficamos ali conversando amenidades, sabendo que o jogo se aproximava, falamos de um tudo, menos de futebol, depois as duas turmas subiram pelo lado da mata, em busca das mexericas.
A mesma história de sempre... dar nó nas mangas e na gola das camisas, vencer a vegetação da mata fechada, esgueirar-se no arame farpado, subir nas arvores, encher as camisas, desviar dos tiros de sal, correr dos cachorros, voltar pra casa e dividir o produto com os amigos.
Voltamos pelo mesmo caminho, beirando a horta dava pra ver o campo do 14 e seguimos a estrada onde uma majestosa araucária fazia uma sombra absoluta, nesse ponto os meninos do 12 se despediram, o Pelézinho ficou.
Não desviou o assunto, com a camisa carregada de mexericas às costas disse:
_Amanhã vou destruir vocês e não levem a mal.
Diante de tal sinceridade, eu disse:
_Neguinho, a gente estava discutindo um jeito de não picar a bota em você...
A risada que ele deu foi estrondosa, beirava mesmo o desprezo:
_Se eu fosse vocês, batia mesmo, por que eu vou deixa-los no chão, isso é uma promessa.
Falou isso e ajeitou a camisa nas costas e, ainda rindo, foi-se.
Ficamos ali, sorrindo, conforme ele se afastava de nós, nos mostrava no balançar do corpo um gingado de malandro e ria de nós.
_Ó, que carinha cabuloso. Disse o Viana.
Depois que o Pelézinho sumiu, o Feliz disse:
_Amanhã vou bater nesse guri feito mala velha, pra tirar baratas.
No jogo, fomos impecáveis, sem o recurso da violência, literalmente paramos o craque adversário e quando se anula o craque não dá outra, chocolate.
Não falou o jogo todo, parecia mesmo resignado o Pelézinho, em qualquer lugar do campo que ele pudesse pegar a bola, lá estava o trio, se ele fintasse um, os outros lhe tomavam a bola, a cada roubada de bola, imitávamos o riso que ele dera na véspera.
Quando o jogo chegava a final e a nossa vitória já se consolidava, o Feliz achou de sair brincando da defesa, passou o pé em cima da bola e, sem perceber que o dito cujo estava em cima dele, iniciou uma corrida pela esquerda, o Pelézinho emparelhou-se no lado oposto e tomou-lhe a bola, vendo isso, eu e o Viana corremos pra socorrer o Feliz, um de cada lado.
Assim que teve a pose da bola, parou e ficou esperando o Feliz dar o bote, o Feliz foi com sede pro bote, muito rápido e sem espaço, o neguinho enfiou a bola no meio das pernas dele, eu vinha no embalo, travei a chapa e tomei o meu, passou por mim e ficou de cara com o goleiro Marcos, entrou na área e o Viana corria nas suas costas, era só bater no gol, levantou a bola e tirou o corpo, no espaço que ele saiu o Viana passou lotado, aparou a bola com o pé esquerdo e completou a touca, com o mesmo pé ajeitou a bola, soltou o corpo no ar e deu um voleio.
Eu, o Viana e o Feliz vimos àquela obra-prima deitados, ao invés de comemorar o gol, me deu a mão, se não fosse isso eu estaria lá no chão até hoje.
No final do jogo, o Feliz argumentou:
_Que adianta isso tudo? Nós ganhamos o jogo.
Muito senhor de si, o neguinho sentenciou:
_Não disse que ia ganhar o jogo, eu disse que ia deixar os três no chão.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

De sonhos, bicicletas e papagaios.


  Tem pouco tempo, com a ajuda do meu neto Miguel, abri uma fabrica de pipas.
Somos três sócios ao todo, eu, o Miguel e o nosso cachorro Nino, um poodle que acha que é Pitbull.
Devidamente aposentado, quis fazer uma coisa que me fazia feliz na infância e, por gosto, contei essa passagem pro meu neto.
Verão de 1979, já o velho Odilon havia ido embora e o seu João era o larista do 14, respirávamos uma liberdade que nunca havíamos podido antes, já se podia andar em qualquer lugar do Educa, sem ter medo do corcel II do Domingão.
É claro que o parceiro de sempre era o Viana, havíamos acabado de perder uma pipa, um cara, lá na colchoaria empinava uma enorme pipa preta e cortava todos os outros, um a um.
Isso representava guerra, já que, o Viana se considerava o dono dos ares, juntamos o pouco dinheiro e fomos comprar papel e linha.
Ao lado do mercado Paraná, a meio caminho do Guiomar, havia uma papelaria e estavam muito caro, fomos pela Asdrúbal, no sentido da Moreninha, onde havia outra papelaria, no caminho encontramos o Zanella montado numa bicicleta, ele parou e nos cumprimentou, desceu e nos mostrou à magrela, ficamos maravilhados com as modificações e a conservação. Disse-nos o preço e que o pai havia entrado nas prestações.
_Puts, ainda vou ter a minha. Disse o Viana.
O Zanella disse que ali perto, havia um senhor que estava vendendo uma usada, descemos a rua que sai do ponto final do Arpoador, seguindo as casa do BNH, quando chegamos, a vimos na garagem, uma linda Caloi barra forte com garupa e lanterna no guidom e foi paixão à primeira vista.
Batemos palma e o dono da casa veio nos atender, seu Hélio era um militar aposentado da Marinha e tinha historia ótimas da caserna, fora precocemente aposentado por conta de sua postura socialista, agora o filho havia crescido e se alistado, não ia usar mais a bicicleta.
_São 90 cruzeiros, a exata metade do preço de uma nova na loja.
Disse isso e deve ter percebido as nossas caras de tristeza, quase não olhamos pra ele, todos os olhos estavam naquela maravilha de duas rodas. Despedimos-nos do amigo Zanella compramos as coisas na papelaria, no caminho de volta só falamos na Caloi.
Descendo a João de Lorenzo, o motorista do ônibus da Castro buzinou e abriu a porta trazeira, subimos e era o China ao volante, seu filho estudava comigo no Attiê, agradecemos e ele nos deixou no portão do Educa, uma saudação ao seu Felipe na portaria e seguimos a estrada de paralelepípedos que leva ao SENAI e quebramos à esquerda, paramos na escada do teatro, a conversa foi toda sobre como levantar 90 cruzeiros, ideias e mais ideias vinham e eram descartadas e nada de concreto.
A certa altura da conversa, olhamos pro céu e uma pipa verde fazia manobras no céu, um menino sentado no barranco da piscina se divertia, soltava a linha, segurava e dava soquinhos, sua pipa desbicava no ar, ficamos admirando as evoluções.
Coisa duns 10 minutos ficamos ali em silêncio.
Por detrás da casa da dona Camila, veio de roldão, uma enorme pipa preta, em diagonal desceu a linha só tocou na linha do guri e cortou solto no ar a pipa do guri voou ao vento, a pipa preta foi buscá-lo, subiu e desceu, enrolou-se na rabiola e a recolheu.
O guri da piscina chorava, pasmos com a habilidade do vilão, falamos juntos:
_Cortou e aparou.
Corremos pro 14 e juramos inimizade eterna ao cara da colchoaria, antes era por vaidade, agora era por fazer um guri chorar.
No dia seguinte, afinamos o bambu e modelamos uma gigantesca pipa branca, desenhamos uma cruz vermelha dos templários e a colamos ao centro, batizamos-a com o nome de Justiceiro do ar.
Confeccionamos outro, de tamanho normal, que seria a isca, plano bolado por dois neguinhos desaforados...
Eu iria levantar o meu, assim que o vilão se mostrasse, o Viana vinha e zás, exibiríamos a pipa preta na trave do campão.
Quando terminamos, já se fazia noite e deixamos a vingança pro dia seguinte, nessa noite... Sonhamos com pipas e bicicletas.
Vingança não é uma coisa saudável pra uma criança, o bom do destino é que ele não escolhe a hora de fazer o mal virar bem, sem perceber, ele muda as coisas.
Costumávamos empinar as pipas na estrada do 12, mas desta feita iríamos mudar o local, queríamos que todos vissem a nossa vitória.
Peguei o pipa grande, sua envergadura cobria toda a extensão das minhas costas, do pescoço até a cintura, fomos em sentido à jaqueira, no meio do caminho o Viana se lembrou que tinha uns abacates para enrustir, fiquei na estrada e ele adentrou o bananal, sentei-me na caixa de alvenaria ao lado do milharal e fiquei a esperar.
Vindo do Cenáculo, uma Veraneio parou do meu lado, um homem que aparentava uns 30 anos abriu a janela e disse:
_Ô menino, quer vender essa pipa?
Fiquei em silêncio e fiz uma cara de que não havia entendido a isso se dá o nome de presença de espirito, na verdade, eu não fazia a menor ideia de quando devia fazer o preço. Ele repetiu a pergunta.
_Moço, eu acho que você não teria o dinheiro suficiente pra pagar essa pipa aqui...
O homem perdeu a paciência, saiu do carro e gritou:
_Comprei uma pipa na Vila Borges e paguei cinco cruzeiros.
_Conheço essas da Vila Borges, nem chegam aos pés dessa, pode observar.
Com a gigantesca pipa na mão, ele pareceu hipnotizado, era dos nossos, jogou a pipa dentro do carro, tirou a carteira e disse:
_Só dou 10.
_15?
_10.
_15.
_12.
_Fechado.
Quando o Viana saiu, teve um susto ao me ver de mão abanando, mostrei as notas e fomos pra papelaria, compramos o material pra confeccionar 30 pipas e um troquinho pra Tubaína, confeccionamos as pipas e vendemos na feira de quinta e na de domingo.
Apuramos 78 cruzeiros e ficamos com medo de alguém comprar antes de chegarmos à quantia exata, resolvemos entregar ao seu Hélio o que tínhamos e ele tirava a placa de venda, até a gente conseguir o resto.
Quando o homem viu o dinheiro em nossas mãos, ficou boquiaberto, contamos o que fizemos e fizemos a proposta.
_Então, vamos recapitular... eu fico com o dinheiro, guardo a bicicleta e quando me derem a quantia restante, levam a bicicleta?
_Isso mesmo.
Estava espantado com a nossa disponibilidade, coçou a cabeça e disse:
Guardem o dinheiro, venham amanhã, vou pensar e amanhã faço uma contra proposta, quando íamos embora, o vimos levar a bicicleta pra dentro.
No dia seguinte, lá estávamos nós e haviam duas bicicletas na garagem.
Impressionado com a nossa atitude, o homem não só não aceitou o nosso dinheiro, como deu uma bicicleta pra cada.
E, os guris que queria ser os reis dos ares, tiveram que se contentar em ser os reis da estrada.