terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O castigo

Nessa, vou pedindo desculpas pras moças.
As mulheres, esse maravilhoso presente de Deus, que fazem os meninos suspirarem, que silenciam uma conversa animada, que nos causam dores na alma e nos tiram o sono, nos faz poetas e patetas.
Tudo isso, num tempo mais tarde, na infância nosso maior material de adorno tem outro nome... bola.
Feito isso, deu pra perceber que vem aí mais uma aventura de futebol, futebol e amizade.
_Caramba Niltão, você só pensava em bola? Perguntará o leitor.
_Absolutamente, eu pensava em coisas como, a paz mundial, ganhar na loteria esportiva, conhecer o Simba Safari e quebrar a cara do George Foreman. É... pensando bem, eu só pensava na bola mesmo.
Na verdade, eu não conseguiria falar desse amigo, sem falar de uma partida de futebol memorável.
Antes disso, um prólogo que vai, no fim do texto, dar sentido à narrativa:
No final de 1979, mais ou menos, houve uma verdadeira revolução no Educa, quase todos os grandes foram "expulsos", os buldogs da dona Camila passaram a fazer parte da paisagem, os irmãos foram embora, o pavilhão 11 foi desativado e mais tarde viraria a creche, livre dos grandes o pavilhão 15 virou um lar de meninos com idade de seis e sete anos.
Os meninos do 15 viraram a grande atração, quando eles desciam, em fila indiana, para o refeitório central, causava certa euforia nos outros internos, qualquer um que estivesse na frente da fila, dava licença pra eles, eram os caçulinhas de todos. Vendo um deles, que se movia muito rápido e entre todos era o mais bagunceiro, meu amigo Viana disse:
_Aquele ali parece o Ligeirinho, aquele ratinho das histórias infantis, todos concordamos e o apelido pegou.
Então vamos ao assunto:
O Valdir Lustosa havia vindo da Casa de Infância, mais um dos meus amigos mais velhos, tinha o irmão Paulo e eles moravam no lar 24.
Disse em outra postagem, quando falei do Sebastião, que na Casa da Infância haviam dois grandes goleiros, o outro era o Valdir.
Ainda que ele fosse um "fora de série" no gol, o time do 24 era de medíocre à ruim, suas belas defesas não salvavam o time.
Nosso próximo adversário seria o 24, a hegemonia do 14 era tão grande que a expectativa era um massacre, com muitos gols.
Cego pela arrogância encontrei o Valdir no Attiê, na hora do recreio, falamos sobre o jogo próximo e devo ter sido bem pretencioso, ele ameaçou de partir pra pancada, formou-se uma rodinha em volta, uns me seguravam e outros o seguravam.
_Tá pensando que vai ser fácil assim? Vamos deixar vocês de joelhos, vão ver, vão ver.
Alterado, mas tentando me manter calmo disse, entre o riso sarcástico:
_Só um milagre vai salvá-los da ruína.
É, fui prepotente, arrogante e nada humilde, vai dizer o leitor.
Sabendo que, se eu alegasse ter doze anos à época, não seria uma boa desculpa, admito que fosse bem canálha nesse episódio. Pessoa mais espiritualizada, diria que eu iria pagar nas próximas encarnações.
Porém, isso não acontece no meu caso, se Deus espera o momento certo pra ajustar as contas com todos... no meu caso, o castigo vem na hora, sempre foi assim.
Da sexta pro sábado, sem aviso nenhum, caiu um verdadeiro dilúvio, fomos dormir com uma chuva medonha e ela perdurou a noite toda, a manhã toda e cessou as 13:00 horas e o jogo estava marcado pras 14.
O campão do Educa era um sonho, grande, bem localizado e imponente, mas em termos de drenagem...
Quando chegamos ao local do combate, veio-nos uma vontade de chorar, o campão havia se transformado numa gigante piscina de lama, pensamos em conversar pra adiar a partida.
O Luís Paulo que, já era preto, trajava um uniforme muito preto. Olhou-nos de rabo de olho, o apito já à boca, balançou a cabeça numa negativa.
O time do 24 chegou, vestindo camisa, calção e meiões cinzas, o Valdir vinha sorrindo na frente da fila, olhei pro céu e o sol era firme, a torcida estava disposta a ver um espetáculo pastelão e gritava pra partida começar logo.
Naquele lamaçal nada adiantaria nosso toque de bola, se o Negão e o Mamede eram os mais rápidos laterais ou se o Tadeu era o melhor jogador de todo o Educa, se o trio de volante do 14 era o mais eficiente do campeonato, a gente mal conseguía nos manter em pé.
Na hora que os times se cumprimentavam, o Valdir ainda ria quando me apertava a mão:
_Eu acredito em milagres, e você?
Nesse momento eu fui ao inferno e voltei e, se tinha uma coisa que pouca gente sabia era que o Valdir era feito o Ayrton Senna, normalmente um ótimo goleiro, na lama ele era imbatível.
Estava em silencio quando nos juntamos no meio do campo, o Viana falou:
_Vamos jogar feio, se tiver espaço, paulada no gol.
E foi mesmo um jogo feio, sem passes, sem toque de bola, sem jogadas de efeito e a torcida se divertido com o espetáculo, a chuva voltou e todos se amontoavam na casinha da arquibancada.
Fizemos o combinado, de qualquer lugar batíamos pro gol, cada chute que dávamos o Valdir fazia uma defesa mais linda e ele ganhou o carinho da torcida.
No primeiro tempo ainda, o Luís Paulo marcou uma penalidade pra nós e ninguém contestou, fui pra bater, posto que, eu era o batedor oficial.
Ajeitei a bola na única parte de grama da área do gol que fica na frente da bica, a torcida gritava o nome do Valdir, ignorei e bati com convicção, esticou-se e buscou a bola, nunca havia perdido um pênalti na minha vida, quando o rebote voltou pro meu lado, me desequilibrei e cai na lama. É claro que virei à piada do jogo, parte da torcida gritava o nome do goleiro, a outra parte me xingava.
Poucos minutos depois, outra penalidade foi marcada, fui pra bola pensando em vingança, antes disso o Tadeu pegou a bola e disse que ele ia bater, minha liderança havia sido desafiada e ninguém do time me apoiou puro pesadelo eu vivia.
Naquele instante, fazer um gol era imprescindível, a vergonha batia em nossos ombros, gente que geralmente torcia por nós, agora gritava o nome do Valdir e ele sorria.
Se na minha vez a defesa foi plástica, o Tadeu bateu firme no canto oposto, à meia altura e o miserável do Lustosa buscou e encachou ela e sorrindo uma gargalhada alta, bateu no peito.
É do brasileiro, essa coisa de torcer pro mais fraco, ainda que eles nem chegassem ao meio do campo, a torcida gritava 24, em alto e bom som.
O pesadelo perdurou o jogo todo, sem poder jogar, chutávamos de qualquer lugar e o Valdir fechava o gol, empurrados pela torcida, todos os jogadores ficaram dentro da área, 11 goleiros e o desespero aumentavam e isso nos contagiou, paramos de agredir, tudo se caminhava pro zero a zero.
O Luís Paulo já consultava o relógio, faltavam poucos minutos pro fim do jogo, uma falta foi marcada na intermediária, conforme eu ajeitava a bola, o arbitro olhava o relógio, o Viana foi pra ponta da barreira, ajoelhei e fiquei falando em voz baixa, falando com a bola, o Luís Sérgio passou por mim e perguntou o que eu estava fazendo, respondi que estava fazendo uma promessa.
Última chance coloquei o pé esquerdo ao lado da bola e calculei um perfeito angulo de 45 graus, dei três passos pra trás e bati.
A bola passou a quatro dedos da cabeça do Viana, rodando na caminhada pra trave e ia no endereço certo, O Valdir saiu com o corpo todo no ar, a impulsão o fez deitar, pareceu um voo, foi lá no angulo pegou a bola com as duas mãos e, ainda no ar, a trouxe para o peito, quando caiu espalhou a lama, entre os olhares de todos e a euforia da torcida, ficou uns breves centésimos de segundos no meio da lama, deu um grito desafiador e esse grito foi pra mim.
Já o Luís Paulo tinha o apito na boca, só faltava soprar, pra aquele pesadelo chegar ao fim.
Ainda com a bola na mão e olhando na minha direção, tive a impressão de que ele ia jogar a bola em mim, deu uns passos pra trás, pra tomar distancia e dar o chutão.
Mais um passo pra trás e escorregou na lama, com a bola na mão, caiu pra dentro do gol.
O silencio que se fez, foi um misto de comédia e tristeza, ninguém acreditava naquela cena, antes de apitar o gol, o Luís Paulo soltou uma longa gargalhada.
Depois do jogo, o próprio goleiro fazia piadas de si, os dois times se cumprimentaram cobertos de lama.
Pra cumprir a minha promessa e me redimir, passei um mês ajudando o a tomar conta dos pivetinhos do 15.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Nobreza


Completei 51, nesse blog eu conto histórias de um tempo passado, que determinou toda a estrada que eu ia trilhar pra me tornar o homem que eu me tornei.
Minha historia não foi feita só por mim, fatos e acontecimentos foram divididos por meus amigos, cada amigo meu deu um pouco de material e inspiração e eu me apropriei disso, juntei tudo e usei pra construir o meu caráter.
No instante crucial, anos mais tarde, quando partimos pra cima dos escudos e cassetetes da tropa de choque no largo da Batata, na conquista dos meus troféus no esporte ou quando vi minha filha dar a luz ao meu neto, nunca me esqueci do menino que eu fui no Educandário.
No livro "Conta comigo", Stephen King conta a história dos seus amigos de infância, na hora de terminar o conto, deu um branco e ele não sabia o modo mais bonito pra encerrar, ficou uns dias pensando e escreveu a frase mais simples de todas:
"Eu nunca mais tive amigos, como os que eu tinha, quando tinha 12 anos"...
E nessa frase simples, expressou a mais verdadeira de todas as frases.
A vida era dura, vão dizer os meus contemporâneos, claro que sim, concordo eu, mas dureza molda a vida e te põe uma armadura, quanto maior a integridade, maior é o brilho de sua espada ao sol.
Poderia gastar linhas e linhas pra enumerar coisas que lhe arrepiariam os cabelos e te faria dizer:
_Nossa, eram endiabrados esses internos.
Eu contaria coisas engraçadas e coisas que você desconfiaria da veracidade e diria que sou um contador de anedotas ou talvez eu pudesse ser chamado de historiador, aliás, é assim que a minha esposa me define.
Não falo da nobreza que a posse de dinheiro ostenta, nobreza é a coisa que te separa da besta, nobreza é fazer o certo, mesmo quando não existe razão pra tal, eram nobres meus amigos e não acho que tenha sido uma coisa isolada do pavilhão 14, meu lar, creio que isso era a atitude do interno em geral.
Já contei que o Sebastião era respeitado por todos os outros meninos, também contei do zelo que todos tinham pelo Lucídio e que fui ameaçado, se não cuidasse dele.
O Adalberto era portador de uma doença que atrofiava os músculos, sendo assim, não podia jogar bola e sempre aparecia alguém que trazia um apito, no campo ele apitava os treinos, sem entender coisa nenhuma de regras, meninos que tinham o pavio curto, relevavam e acatavam as decisões dele, caso ele expulsasse alguém, ninguém reclamava.
Acreditavam os meninos que isso faria o Adalberto se sentir tão bem quanto os jogadores e isso é nobreza.
De vez em quando, o Odilon esquecia que ele não podia fazer esforço físico, os meninos nunca.
O eito era medido com duas enxadas deitadas, o chefe media e se retirava os meninos mandavam o Adalberto ficar na sombra, cada um carpia o seu eito e mais alguns centímetros, isso feito por todos, facilmente cobriria a parte do Adalberto, enquanto isso ele fica à sombra, se o chefe aparecesse no barranco, ele pegava a enxada e fazia que capinava, quando o chefe saía, ele voltava pra debaixo da jaqueira.
Quando todos terminavam, conforme um acabava, ajudava os demais, a última touceira arrancada determinava o fim do trabalho, todos jogavam o cabo no ombro, se juntavam ao amigo e subiam pro pavilhão.
O mais estranho é que nunca se fez uma reunião, pra combinar isso.

Só fazíamos pelo fato de ser a coisa certa a se fazer... eram nobres, meus amigos.