terça-feira, 17 de setembro de 2013

O Jordão


   Toda a minha vida, pra cada momento, tem uma canção pra lembrar, minha memória funciona como se a música fosse à bateria.
 Estávamos de bobeira, do lado de fora do refeitório central e cantávamos.
Havia alguns meses que a comida não era mais feito no pavilhão 23 e o chefe era o Ivo. Nós (eu, o chumbinho, o Téquinha e o Viana) estávamos em horário de descanso, já havíamos servido o almoço e lavado a cozinha.
Tínhamos o habito de cantar, como se fossemos um coral, os quatro juntos, éramos todos jogadores do infanto-juvenil (por conta disso, eu estimo que eu estava com uns 12 anos) os outros tinham um ano a mais que eu... se não me falha a memoria, nesse dia, era Fagner que cantávamos...Ai,Coração alado desfolharei meus olhos nesse escuro véu.

Ainda cantando, pudemos observar que o Jordão descia a rampa do pavilhão 15, vinha em nossa direção, com ares de quem ia nos mostrar uma coisa surreal. Carregava no ombro direito um grande radio portátil (aquele dos anos 80) ao aproximar-se de nós, tirou do deck uma fita cassete branca... Clube da esquina 2, e ria, um riso desafiador que nos incomodou.
O Jordão era mais velho, tinha uns 16 anos, cantava num coral profissional e ainda fazia teatro.
Batia a fita no peito e ria.
-Vocês acham que isso é musica?
-E o que é que você tem aí? Perguntei-lhe, já constrangido.
-Milton Nascimento.
-Ah, já conhecemos Milton-disse o Téquinha - e
nem é tudo isso.
O Jordão era um negro alto e magro, com sua cabeleira Black Power ele ficava bem mais alto, pôs a fita no deck, sem ainda o fechar, colocou com zelo o radio no chão e passou a bater no cabelo, como quem os arredonda.
Crianças inocentes... sentem-se e prestem atenção.
Sentamo-nos e ele fechou o compartimento da fita, em seguida apertou o botão de ligar e foi bobinando até chegar a faixa.
De repente a musica tirou-nos do chão, era como se levássemos, ao mesmo tempo, um soco no estomago.
O que era aquilo?...Que som era aquele?...Que letra agressiva. Que tipo de poesia era essa... e o Milton cantava em duas vozes???
Ele ainda tocou a musica duas vezes mais e foi embora.
Ficamos ali, por algum tempo atônitos. Desse dia em diante, o Jordão virou nosso GURÚ.

O lendário time do 14


Tinha muita história, anteriores à minha chegada no lar 14, já era consagrado, todo mundo sabia que esse era o rival a ser batido.
Na distribuição dos menores nos pavilhões havia uma certa discriminação e, por consequência disso os lares 14 e 12 eram os pavilhões que mais tinham negros no EDD, somando ao fato, tinha um larista analfabeto, que andava com um 38 na cinta e, tinha tendência à violência.A maior área territorial tambem pertencia ao 14, então o que mais se fazia no cotidiano, era capinar, Quilômetros e mais Quilômetros de plantação.O que dava boa renda para o "seu Odilon" um sujeitinho de maus bofes que manquitolava da perna esquerda.Posteriormente, essa atividade foi proibida no colégio, bem como o pino e a olaria.Uma comissão de direitos humanos denunciou-as como trabalho escravo.Longe de entrar no mérito da questão, só citei o fato, pra dizer que, enquanto os outros internos treinavam muito, nós (do 14) trabalhávamos e muito.No ano de 1979 tive o privilégio de ver o time sagrar-se campeão nas 3 categorias(pequenos,médios e grandes) e, sem contestações, eu jogava nos pequenos, jogava???não, propriamente.Eu era grande pra minha idade, me constrangia jogar com os pequenos e como na panelinha dos médios não tinha vaga, eu ficava sem jogar.Mas como eu era fã do time acompanhei os 3, na verdade já estava nascendo o futuro professor, nessa condição, pude testemunhar quando, jogando com o 15,( que era o segundo melhor entre os grandes) o Roda deixou o time todo no chão, prendeu a bola na linha e virou-se, fez sinal que não estava nem aí, tocou a bola de calcanhar e saiu, sem comemorar, foi beber água na bica.Se nos grandes, o Roda equivalia a metade do time(sem ele o time era uniforme), nos médios prevalecia o conjunto, os irmãos Lucena (Helio e João) discutiam entre si e, comandavam o time, tinha o Spók no gol, o Tadeu, o Téquinha, o Feliz, os irmãos Edson e Chumbinho, o Luis bandido e o Neguinho do 14 (que era do 20), esse time defendia bem e atacava em bloco.Já os pequenos tinha o Adilson (Ovinho), que fez mais gol nesse ano, que os caras do profissional.
Assim, aqueles caras que vestiam a camisa preta e vermelha do 14, perpetuavam a tradição do 14, o futebol.
Numa surpreendente reorganização, a administração do EDD, na virada do ano, mudou tudo.Por conta dessa remodelação(que teve como pivô, denuncias de maus tratos), alguns funcionários foram dispensados e, muitos internos foram desinternados, alguns foram pras suas famílias, outros(a grande maioria) foi remanejada para as FEBEM da capital e do interior.
Metade do lar 14 foi-se, é certo que o fato aconteceu em todos os pavilhões, mas o futebol unia os internos e...a união é um perigo eminente, e aquele grupo já estava se tornando uma ameaça, o 14, nesse sentido, era ameaça.Como eu disse, muitos funcionários foram desligados, mas estranhamente, o mais brutal de todos, ficou.
Com o Odilon ainda no lar, daquele time extraordinário, sobraram o Tadeu, que era craque, o Silvio Mamede, o Zé Jose Antonio, e o Luis Carlos da Silva(Feliz), era a minha chance de honrar a camisa do 14.Primeiramente tínhamos que restituir a tradição, virei técnico dos pequenos, já que todos eram novatos e, sequer se conheciam.Recrutamos o Marcos(Pato Roco), que era novato tambem, para nosso goleiro, ainda tinha o meu irmão, que apesar da idade inferior era um zagueiro de mão cheia, havia tambem o Luis Sergio, que tambem viera da Casa da Infancia.E, se formou assim, o melhor time que eu joguei na minha vida

Fazendo historia


É verdade que, o que unia a todos os internos, sempre foi o futebol, quando o Grêmio Educandário entrava em campo, todos esqueciam suas diferenças territoriais e seus times do coração e, torciam pelo time preto, que uniforme lindo.
Mas num belo dia, acabou-se o time.
  E passamos a nos reunir nos bailes ou, nos jogos de futebol, nos jogos era complicado, posto que, nem todos torcíamos pro mesmo time.
  Então, numa tarde de muito sol, dispensamos a matinê de Pinheiros e fomos assistir o clássico no Morumbi, 
na época, o Santos era a segunda maior torcida de Sampa e, eles tinham "os meninos da vila" (Juari, João Paulo e sei lá quem mais) e...o Corinthians, sempre forte. 
  Eramos, no total, uns vinte menores, meio a meio, entre Corinthianos e Santistas e, por sermos todos amigos, saímos juntos do E.D.D, na saída, pegamos no pé do seu Felipe(o porteiro), que era São Paulino, entramos no buzão na maior algazarra, feito uma torcida só, primeiro gritavam os maloqueiros, depois as viuvinhas e para não ter que ir até a Paineiras e pagar outra condução, (pagar é força de expressão) descemos na Raposo Tavares, no posto Batalha,  perto do parque da Previdência, ali tinha um acesso prum escadão, que, entre as arvores levava direto pra avenida Elizeu de Almeida, íamos bagunçando o caminho todo, jogando pedras no gatos, tocando as campainhas das mansões e arrancando os retrovisores dos carros e, é lógico, entoando cantos de guerra, cada turma do seu time.
  Na avenida Elizeu de Almeida(que não era canalizada) havia um córrego largo, para atravessa-lo, tinha-se que, passar por uma ponte feita de toras de madeira.
  Esse era o ponto que haveria a separação das torcidas, é provável que só nos veríamos no dia seguinte, O Valdevino gritou que os Santistas tinham o direito de sair na frente, o Zé Almir questionou esse direito, eu apoiei o Zé, o Lourival apoiou o Santista...Bafafá formado, então decidimos da forma mais democrática do mundo, o Valdevino pediu par e o Zé Almir pediu impar, perdemos, o Corinthiano chamou uma melhor de 3, perdemos de novo, os Santistas sairiam primeiro, os Corinthianos esperariam um tempo.
  Ficamos ali, uns 10 minutos, e saímos.
  Quando chegamos na ponte, vimos a coisa mais surreal de nossas vidas.
  Centenas de torcedores dentro da lama, não tinha branco e preto ou preto e banco, todos eram de uma só cor, marrom.
Nesse dia o Timão ganhou de 2x0, dois gols do Palhinha, ficamos um mês zoando a cara dos Santista.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A trêta


O time juvenil disputava o campeonato do D.E.F.E, eu jogava no infanto e estava de torcedor, já que à essa altura estávamos desclassificados.Era o jogo de volta das semi-finais, o adversário era o poderoso time da UE-16(Febem da Raposo Tavares),que, aliás nem existe mais.Era o jogo da volta, porque o primeiro tinha sido na casa deles...meteram a mão e o jogo terminou empatado em 1x1.
Naquele jogo, nosso time teve que esperar a escolta da policia, pra sair da UE-16...Então, nem precisava anunciar que ia ter revanche.
Na bola mesmo, era quase impossível segurar o Tadeu(14), o Valdevino(12) e o Baianinho(13), portanto...é claro, foi um chocolate.E a torcida provocava.
Sabe quando todo mundo pode prever o final da historia???pois é, mas havia em nossa torcida, um tal de José Carlos, o Biriba(20), dentre todos os torcedores, era o que mais apupava, ofendia os adversários.Os jogadores já estavam de olho nele.
Metade do segundo tempo e o placar era 4x1 pra nós...o gol deles foi contra, é claro, marcado pelo Zé Almir(12)...outro gol contra.
O técnico Ditinho resolve substituir o Vagner(20), pelo Celso Baiano(24).Bom...todos sabiam que o Celso só entrava pra brigar, ( O Telê Santana fez o mesmo com o Anselmo, quando o Flamengo foi campeão mundial) portanto estava desenhado o final do jogo.Nesse momento o Tadeu ganhou uma bola, no meio de campo, levou 5 adversários, fintou o goleiro, o goleiro caído, ele tocou a bola pro Baianinho, que parou a bola na linha do gol e saiu, o Valdevino vinha correndo e pulou de peixinho na bola parada.Foi demais, antes de se comemorar qualquer coisa, o Celso já estava botinando alguem no meio-campo, outros jogadores trocavam chutes.
Sururu formado, mas antes que a torcida entrasse em campo, como se fosse combinado, os jogadores da FEBEM correram pra arquibancada...pra pegar o Biriba.
A tragédia anunciada virou comédia.O Biriba correndo e os caras atrás dele, em direção ao pavilhão 11.Eles aproveitaram a corrida e sairam do colégio, pelo mato da Sabesp, onde o ônibus os esperava.O Biriba???Tá correndo até agora.

O caso dos 12 cavalos

     O caso dos 12 cavalos Tinham os internos do Educandário Dom Duarte, oriundos da Casa da Infância do Menino Jesus, o habito se reunir, independente de estarem em pavilhões (geograficamente) distantes. Era a convivência da primeira infância e a saudade das freiras, que os mantinham juntos, posto que, foi lá que começaram as amizades. Em ocasiões específicas, como domingos de visitas, quando a atenção dos administradores e funcionários estava desviada, ou nas férias, quando o efetivo de moradores se reduzia a menos da metade, que eles se encontravam e saiam pelo espaço do Educandário em aventuras. 
Então, era comum que eu, que morava no 14, que se localizava no extremo sul, encontrasse com regularidade com (por exemplo) os irmãos Lustosa, que moravam no 24 (extremo leste), por vezes essas aventuras chegavam até a caixa d’água (João XXIII) ou no Pirajuçara. Por vezes, essas andanças acabaram em tragédias, cito o caso do Alaor, que, brincando com combustível, acabou morrendo carbonizado no 19, ou o caso do Ratinho e o Xodó, ambos do 21, que jogaram BHC na caixa de água, que abastecia o colégio, ou a ocasião que invadimos a escola Luiz Elias Attiê, ainda em obra. Num dia de domingo, como estávamos com a tarde livre, eu, o Fabiano (12), o Donizete (12), o outro Donizete (19), os Paulo e Valdir Lustosa (24), o Celso (13), fomos ao pomar, que ficava atrás do Cenáculo, que era mais conhecido como lar 25, vizinho da igreja, que ficava ao lado do 18. Costumávamos colher mexericas e jabuticabas, por lá e depois tínhamos que correr, já que o vigia costumava receber os visitantes a tiros de sal, ele costumava esconder-se, enquanto recolhíamos as frutas e só aparecia quando já havíamos enchido nossas camisas pulôver, aí ele saía, gritando palavrões e atirando. 
Terror puro, correr carregando uns sete ou 8 quilos, com um maluco atirando em você, mas, ele não corria muito e sempre dava pra escapar, ainda tenho na pele essas marcas. 
Descemos pela mata que chegava à olaria e subimos em direção ao 14, no caminho que dava na estrada do 18, havia o campo e acima, o que chamávamos de bosque, esse era o limite territorial do pavilhão, do lado esquerdo uma grande extensão de terra, que havia sido a horta do japonês, mas, já tinha dado tudo que tinha dar e estava já abandonada, ali crescia um alto capim e, uns cavalos pastavam ali, era o local ideal para matar o tempo. Às vezes empinávamos pipas, mas a maioria das vezes, ficávamos brincando e montando os cavalos, foi ali que aprendemos a montar, demos até nomes pros cavalos, o meu se chamava Odilon e era malhado, era o mais calmo de todos, que não sou bobo. 
O fato é que, numa bela tarde de primavera, apareceu na estrada, um senhor bem vestido, disse ser o dono dos cavalos, muito educado, tinha um Corcel II marrom, disse que ia dar um dinheirinho, caso a gente ajudasse na remoção dos animais, na hora topamos. 
Na estrada, um segundo homem estacionou um caminhão, desses que transportam cargas vivas, com a esteira para subir na carroceria. Buscamos os animais, que se espalhavam pelo terreno e, um a um, levamos para o caminhão, não gastamos mais de meia hora. Pegamos o dinheiro e fui pro mercado Paraná, gasta-lo, eu comprei três pacotes de bolacha, um pote de Amendocrem e um desodorante de limão. 
Tá rindo do que? Eu tinha 11 anos, isso foi uma compra de responsa. Quando já anoitecia, dispersamos a turma, orgulhosos de um dia legal. Eu já dormia á muitos, quando me acordaram aos gritos: 
_Tem uma viatura da polícia, estão te chamando. Assustado e confuso, as mãos no cordão que segurava o meu pijama, fui pra área do pavilhão, uma Veraneio preta e vermelha estava estacionada lá, abriram a parte de trás e eu pude ver o Paulo e o Fabiano, mas tive a impressão que os outros amigos estavam todos amontoados lá dentro, pensei que iam me jogar lá também, mandaram que eu me sentasse no banco de madeira, bem ao lado do tanque, sentei-me. Só então, fui perceber que conhecia os policiais, sempre que eles passavam pelo milharal pediam umas espigas e eu dava, uma vez recolhemos um saco, desses de 60 litros, cheios de milho, então, eles já sabiam meu nome: 
_Nilton, Conta pra gente como foi o seu dia, todo mundo se sentou pra ouvir. Comecei a história com riqueza de detalhes, desde o apanhar das frutas, que isso eu sei fazer desde muito pequeno... tudo, do jeito que acontecera e todos prestando atenção. 
Quando terminei a narrativa todos riram, riram tão alto que os meninos, de dentro do camburão esticaram-se pra saber a boa. Respectivos pavilhões. 
Um dos policiais falou ao rádio e outro foi tirar os meninos da traseira e conduzi-los aos bancos do carro, iriam leva-lo, cada um a seus respectivos pavilhões 
Quando se despediram, ainda riam e depois disso, sempre que nos encontravam, faziam piadas de cavalos. 
Nunca soubemos quem de fato era o dono dos cavalos.
                                                                                                          

Um Ioda Negão??


   É certo que, todo discípulo carrega pra sempre, uma marca, aquilo o difere dos outros, um jeito que vai ficar pra sempre, a marca peculiar do aprendizado, na idade média, todos os cavaleiros de Orleans-norte de França, tinham um modo específico de empunhar a espada, podia-se perceber (por essa sutil diferença) todos os alunos de Pierrette, mestre de armas daquela região, eles não precisavam se identificar, bastava que alguém os visse em batalha e o manejo da espada, denunciava-lhes a escola.
  Assim também aconteceu com os atletas do Dínamo, o jeito de chutar a bola passou a ser uniforme, todos chutavam da mesma forma... 45 graus de distanciamento, corpo apoiado na perna esquerda, a batida, entre o calcanhar e o peito do pé e, bola no angulo esquerdo do goleiro. O Victor Luther Zeus, o Erasmo Anderson, o Maciel Henrique, o Maicon Melo, o Dener Alexandre Camargo Dos Santos, o José Jose Roberto Sales Roberto, o Lagoa, o Rodriguinho, o Alex, o Alessandro Diniz, a Adriana Dourado, a Cacilda e muitos outros, batiam faltas do mesmo jeito, o jeito que eu ensinei-o a fazer, que era o meu jeito, minha assinatura.
  Mas pra se tornar mestre, faz-se imperativo que se tenha de onde aprender, só se chega a mestre, através da mão de outro mestre. Vou contar como eu aprendi a bater na bola, ou, como eu me permiti aprender o futebol.
  Eu tinha, entre nove e 10 anos e morava num orfanato, o Educandário Dom Duarte, muito magrinho e com dificuldades no trato da bola, em outras palavras, pereba mesmo. No campo do lar 14, como em todo lugar, prevalecia a "lei do mais forte", por conta disso, quando os grandes desciam pra jogar bola, nós pivete, saíamos do campo e se ficássemos, eles nos atropelariam (simples assim). Mas, diferente dos outros meninos, eu não ia embora, ficava no barranco, assistia-os jogar. Procurava assimilar tudo, quando eles cansavam e saiam do campo, eu descia e os imitava, assim eu fui aprendendo. E por mais que eu me esforçasse, a evolução era lenta, meus amigos, que já tinham a habilidade natural, estavam anos-luz, na minha frente, resolvi que tinha que ter uma arma a mais pra me igualar, ter uma batida potente, me colocaria na vantagem e todos teriam que me engolir no time.
Entre os grandes, havia o maior de todos, seu nome era José Aparecido dos Santos, mas só atendia pela alcunha de Roda, tinha uns 15 anos e era o tuba. Tuba era a definição que se dava ao mais forte, o bambambã, é uma derivação de tubarão, o que valia dizer que ele devorava os outros peixes do aquário. Meninos tem, por habito, admirar os maiores, mas nesse caso não, tínhamos medo do Roda. Ele era o mau humor em pessoa, gostava de bater, batia em todos, por puro prazer, vendia sangue, pra comprar cerveja e cigarros, caçava cobras e vendia ao Instituto Butantã, pra manter o vício da maconha. Era provavelmente a pessoa mais odiada da face da terra, mais quando começava uma partida de futebol, todo mundo o amava, jogador completo, tudo o que os outros consideravam ótimos ele superava e, de longe.

 Eu era inteligente, observava tudo e executava certa manhã, jogando um contra no campinho do 17, nós jogamos contra o time dos grandes, o Roda observava atendo, do alto do barranco, eles tinham o Moacir, o melhor de todos os goleiros do E.D. D, simplesmente uma lenda. Não tínhamos a mínima chance de vencer, mas, não queríamos passar em branco, reuni meus amigos: O Tequinha, o Spock, o Lucídio e o Feliz, falei-lhes que o Moacir telegrafava os movimentos e mostrei como fazer para vencê-lo. Toda vez que contra-atacávamos, fazíamos um triangulo na frente dele, o da frente ameaçava, o goleiro caía, ele tocava pro cara da direita e quando esse chegava em cima do Moacir, tocava pro da esquerda, esse só tinha o trabalho de conferir, conhece a satisfação de um guri de 10 anos, que acaba de fazer gol num goleiro de seleção e que tinha 16 anos? Não ganhamos o contra, mas fizemos oito gols, do mesmo jeito, revessando as posições do triangulo, na hora da saída o Moacir, que não gostou nada de tomar gols dos pivetes, achou que o Tequinha estava muito feliz e disse que ia nos dar uma lição, veio correndo, pra bater em nós. Já havíamos começado a corrida, quando o Roda gritou:
-Se bater nos meninos, vai se ver comigo. E, quando fomos agradecer pelo favor, ele sorriu e deu uma piaba em cada um.
Pela primeira vez, vimo-lo sorrir.
  Dias depois, eu estava assistindo o jogo da seleção, como de costume, no campão do EDD, eu ficava sempre no mesmo lugar, na lateral esquerda, perto do fosso, gostava muito daquele lugar. Nesse jogo, nosso time não estava bem, o time deles tinha uma defesa muito boa, marcavam em bloco e o Roda tinha três marcadores, no contra-ataque, eles fizeram um gol, por mais que ele tentasse, não conseguia vencer a defesa. Quando terminou o segundo tempo, o Moacir acenou pra mim, quando se dirigia ao vestiário, pensei que fosse ameaça e não fui com ele. Pouco depois, vieram, ele e o Roda em minha direção, Moacir bateu na minha cabeça e disse:- Fala sabidão... como é que se faz agora? A Roda se abaixou, pra poder ficar da minha altura enquanto eu falava:- Todos os seus marcadores são destros e te levam para o lado esquerdo, sabem que você não usa a perna esquerda, leve-o pra esquerda e corte pra direita, mas seja rápido, enquanto falava, mostra o campo e com a mão, mostrava a diagonal. Todo mundo achou estranho, menos os meus amigos, esses se juntaram a mim, pra ver o que dava.

Começou o segundo tempo, bola na mão do Moacir, chute preciso, a bola acha o Roda na intermediaria, três marcadores estão a sua frente, ele dá um leve toque com o pé direito, ajeita ela no lado esquerdo, com velocidade, põe a bola do lado esquerdo, dominando-a com a perna esquerda, os marcadores também estão em velocidade, quando a bola parece que vai sai na linha de lado, ele ajeita o corpo, com a perna direita corta, no corte, ele tira os três do jogo e está na cara do goleiro, goleiro no chão e a bola já tinha passado, por baixo dele. Ele fez mais quatro gols, dizem que esse dia ele virou canhoto, no final do jogo o Moacir foi agradecer, o Roda deu um sorriso amarelo e foi embora.
Eu não achava de fato, ele fosse agradecer, a satisfação de colaborar com o meu time de coração me bastava, a vida segue, eu segui a minha, sozinho no campo do 14, eu treinava, eu e a trave.
Num belo dia ele desceu, pegou a bola e na educação, que lhe era peculiar disse:- Olha aí, seu FDP, é assim que se faz. Doou meia hora de seu tempo no mundo pra me ensinar e, nunca mais falamos disso e por menor habilidade que eu tivesse, eu sabia chutar.
...E foi assim, por causa do chute, que um guri pereba saiu do banco, pra ser o camisa 10 do Grêmio Educandário.

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