quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A paisagem da estrada

  Um dia, pela manhã, enquanto esperávamos dar 6:00 horas e o seu Deoclécio abrir o portão e a gente poder voltar pro lar 22, o Dooley disse que tinha medo de dar mancada na minha frente, disse que tinha certeza que eu ia escrever tudo aquilo.
  Sei lá, na época eu não tinha a menor intenção de fazê-lo, pra falar a verdade, eu nem sabia que ia viver tanto tempo, nesse tempo, a gente estava chegando de um baile, frequentar bailes nessas madrugadas era arriscar a vida, é claro que passamos maus momentos, porém, perigo mesmo eu corria uns tempos antes.
  Na inquietude da minha adolescência, eu achava que não tinha nada a perder, sabendo do perigo que corria, eu, o Miguel e o Satírio nos filiamos ao partidão, frequentávamos as reuniões e saboreávamos da cartilha de Marx, no meio de todos os frequentadores daquelas reuniões clandestinas, eramos os mais jovens, fazíamos aniversários no mesmo mês, com diferença de dias de diferença, em 1979, completaríamos 12 anos, na ficha de filiação, constava que faríamos 15, as estudantes jamais se interessariam por nós, se disséssemos a verdadeira idade.
  Na ocasião, apareceu uma viagem à Mariana-MG, se não me falha a memória, apoiar a greve do sindicato dos fabricantes de vidro.Sem termos qualquer tipo de renda, para garantir o preço da passagem e sem ter um pai pra patrocinar, recorri ao seu Tinoco.
  Esse, protestou, falou grosso, gritou, bateu na mesa e tudo e, por fim, me deu um maço de cruzeiros, amarrado por um elástico e dentro d'um envelope, quando eu o abri, tinha dinheiro suficiente para alugar o ônibus todo só pra nós.
 
O ônibus em questão era tão velho quanto o do Educandário, portanto, houveram algumas paradas no caminho, numa delas, fomos beneficiados com um lindo por-de-sol, nós 3 ficamos apreciando uma casinha num vale de montanhas e, enquanto o sol baixava, por trás das pedras, as cores iam se modificando, até ficar azul e cinza.
  Antes que chegássemos ao fim da viagem, fomos parados pela polícia e fizemos o que todo interno do E.D.D fazia com maestria, corremos muito e rápido, os 3 juntos, só nos desapartamos quando já não ouvimos mais tiros.Nessa noite, antes de nos render ao sono, na traseira de um caminhão que voltava pra São Paulo, nossas orações foram todas pro capitão Pazelli, que nos ensinou a correr.
  E não voltamos de imediato, deu pra ver um show do Lô Borges, no caminho.
  Dois dias depois, enquanto jogávamos rebatida no campão, o Satírio desceu com o cavalete, a tela e as tintas, instalou o cavalete e se sentou na cadeira, mandou o pincel na tela, achamos que ele ia nos imortalizar na tela, jogando bola, enquanto ele pintava, olhava pra nós e fechava os olhos.
  Meia hora depois, chamou por mim e pelo Miguel, fomos olhar a tela e tivemos uma grata surpresa.
  Ele havia reproduzido, com riqueza de detalhes, a paisagem da estrada, tinha até as mudanças de cores acima das montanhas.
  Era mesmo genial, o amigo Satírio.